(António Guerreiro, in Público, 08/07/2022)

O pressuposto da actual colaposolgia é a de que já se ultrapassou o limiar em que a situação depende da acção humana e tudo o que está a acontecer se tornou irreversível. Isto chama-se niilismo e é o ambiente em que estamos mergulhados.
Um colapso estrondoso ocorrido no passado domingo, com uma dimensão de “terror” que é inerente ao conceito moderno de sublime, elevou aos picos a nova vaga colapsológica, fortalecendo as suas manifestações que têm a forma de uma nova mística. O colapso foi bem real, não se tratou de uma deriva profética: uma parte do glaciar da Marmolada, no nordeste da Itália, o ponto mais alto do maciço alpino, situado a 3309 metros de altitude, desmoronou-se e provocou uma avalanche de gelo e rochas.
Sete pessoas morreram e treze estão desaparecidas. As causas: as altas temperaturas (nesse dia e nos anteriores, tinham atingido 10º C no pico) provocaram o derretimento do permafrost, que é o cimento da montanha. À distância, turistas e caminhantes radicais filmaram a derrocada. Poderosa é a pulsão escópica; irresistível é o “disaster porno”
Toda a Itália tem sofrido desde Maio ondas de calor sucessivas que atingem nalgumas cidades 43º C. A última, que durou mais de duas semanas, chama-se Caronte, o barqueiro da mitologia grega que transportava as almas para o mundo inferior dos mortos. O maior rio de Itália, o Pó, secou numa grande parte do seu percurso e a água do mar subiu mais de 30 quilómetros a partir da foz. Estes acontecimentos, que dantes eram classificados como “catástrofes naturais”, entraram numa outra categoria: são vistos como antecipações de um colapso ambiental provocado pelo homem.
O discurso colapsológico — que vai subindo de tom à medida que é confirmado pela ciência — anuncia-o como iminente. Na sua versão mediática, a colapsologia folcloriza-se e psicologiza-se: o novo mal du siècle (em crescimento, segundo as notícias que vamos recebendo), chama-se “eco-ansiedade” ou, numa designação mais erudita, solastalgia, uma forma de angústia emocional perante os problemas ambientais e as alterações climáticas. “A ecologia torna-nos loucos”, escreveu Bruno Latour em Face à Gaïa.
Começa aliás a desenhar-se uma guerra inédita: a geração dos filhos acusa a geração dos pais e dos avós de terem devastado o planeta e de lhes roubarem o futuro. É claro que há aqui um equívoco: os processos que levam ao colapso estão em curso há muito tempo (muito embora se tenham acelerado enormemente nas últimas três ou quatro décadas) e desenrolam-se segundo ritmos múltiplos. Além disso, o imaginário colapsologista, na sua versão bíblica, tende a projectar uma queda (um “lapsus”) simultânea e comum, em que tudo e todos sofrerão o colapso ao mesmo tempo (“co-lapsus”), enquanto o que se verifica de facto é que enormes desigualdades determinam o desenrolar das catástrofes.
Ao mesmo tempo que se dava a derrocada da Marmolada, os principais aeroportos europeus e alguns nos Estados Unidos entraram também em colapso. A queda, o lapso, assume neste caso uma outra forma, que é a de uma catástrofe serena. Não houve quedas de aviões, apenas aconteceu que muitos não subiram e as multidões do êxodo estival e as respectivas bagagens acumularam-se, exasperadas, frenéticas, vulneráveis, confrontadas com maus presságios.
Umas férias felizes e verdadeiramente tranquilas é hoje uma prerrogativa de poucos. A ilusão de uma felicidade de massas, de que todos podem voar para o seu paraíso de lazer, conduz a um cenário apocalíptico, de multidões reféns das companhias de aviação, da logística dos aeroportos, da falta de trabalhadores, do controlo sobre aqueles que querem vir para cá trabalhar.
A canícula de Caronte, a avalanche da Marmolada, o êxodo estival com partida e chegada adiadas, em aeroportos que parecem campos de refugiados — tudo isto faz parte de uma “crise total” que põe muita gente a desejar de facto o colapso, a sentir o amor fati, o amor pelo próprio destino. O imaginário do colapso total provocado pela acção humana teve a sua primeira manifestação com o medo da bomba atómica. Mas aí tudo dependia da racionalidade ou irracionalidade humanas e da possibilidade de controlá-las.
O pressuposto da actual colaposolgia é a de que já se ultrapassou o limiar em que a situação depende da acção humana e tudo o que está a acontecer se tornou irreversível. Isto chama-se niilismo e é o ambiente em que estamos mergulhados.

Também o catastrofismo ou a colapsologia (soa mais científico) é uma fonte de receita para as indústrias farmacêuticas. O que está a dar no momento são as teorias do fim do mundo. Não são novas, mas para aqueles que as sabem reciclar é o negócio da sua vida. Quem cresceu com a Bíblia ficou com umas noções de dilúvios e apocalipses. Viver sempre foi uma aventura demasiado arriscada e então nos últimos anos com os luxos, exclusividades, confortos, qualidades, felicidades, enfim a eterna quinquilharia consumista das indústrias capitalistas, o simples acto de abrir os olhos, ver e reflectir, pode gerar um pânico histérico e transcendente.
O capitalismo que começou por ser uma benção para a humanidade, na sua fase decrépita transformou-se numa ameaça para a vida no planeta. São as castas privilegiadas que pregam o fim do mundo. Sabem que é o fim do SEU mundo. Outro não conhecem. Sabem que o medo tolhe e paralisa a acção e de uma cajadada fazem mais uns “cobres” com ansiolíticos e ainda adiam a sua queda. Creio que é de Brecht a frase: “Agora que sabes ao que isto chegou, que há aí que te retenha?”
Excelente comentário.
Quando o Rio se sente apertado no seu leito ,salta as margens e tudo invade ……Tvz não seja ipisis verbis o que terá dito…..mas o sentido é esse……as migrações ai estão e irão continuar ,quer se levantem Muralhas ,como faz a Europa ,sobretudo se esses “Refugiados económicos ou outros” não forem Brancos e de olhos azuis ……citação B.B.