Alteração da narrativa

(Major-General Carlos Branco, in Jornal Económico, 02/06/2022)

O general norte-americano Mark Milley deu recentemente nota de que as negociações seriam a solução lógica para o conflito ucraniano, salientando que “ambos os lados devem chegar, por eles próprios, a essa conclusão”.


As primeiras semanas da guerra na Ucrânia deram alento àqueles que pensavam ser possível a Ucrânia, devidamente treinada e equipada pelo Ocidente, vencer militarmente a Rússia.

A superioridade militar da Rússia começa a vir ao de cima. Não significa que a guerra esteja ganha por Moscovo, até porque não sabemos ainda o que significa para a Rússia, em termos territoriais e políticos, ganhar esta guerra. Não se conhecem declarações das autoridades russas sobre essa matéria.

Mas, no ar, paira uma tendência. Para além da evolução da situação tática no Donbass, há relatos de rendições e deserções entre as forças ucranianas. São públicas as mensagens de soldados desesperados, que se queixam da falta de munições, artilharia, equipamento inoperável, ao que se adiciona a dificuldade em rodar forças, situações que chocam com a imagem de um exército vencedor, como deu nota o “Washington Post”.

Estes desenvolvimentos parecem pressagiar o insucesso das forças ucranianas, uma realidade que não se pode negar. Interrogamo-nos também sobre a sua capacidade para lançar uma contraofensiva que inverta o atual rumo dos acontecimentos, e os revezes sofridos no campo de batalha.

Esta inversão da tendência tem sido acompanhada no plano político por vários desenvolvimentos, que apontam para a necessidade de se encontrar, quanto antes, uma solução política. O primeiro-ministro italiano Mario Draghi apresentou ao Secretário-Geral da ONU António Guterres um plano para terminar o conflito assente em quatro pontos.

Por outro lado, o “New York Times” referiu, que “à medida que a guerra continua, Biden deve deixar claro ao presidente Volodymyr Zelensky, e ao seu povo, que existe um limite para o empenho dos Estados Unidos e da NATO no confronto com a Rússia, e limites para as armas, dinheiro e apoio político que eles podem reunir.” Continuava afirmando “ser imperativo que as decisões do Governo ucraniano sejam baseadas numa avaliação realista de seus meios e de quanta destruição a Ucrânia pode suportar… confrontar esta realidade pode ser doloroso… é isso que os governos têm o dever de fazer, e não correr atrás de uma «vitória» ilusória.”

No mesmo sentido, pronunciou-se o ex-secretário de Estado Henry Kissinger, no Fórum Económico Mundial, afirmando que as negociações deviam começar dentro dos próximos dois meses, sugerindo que, “idealmente, a linha divisória regressasse ao statu quo ante.” Mais recentemente, frustrando a aspiração de Kiev, o Presidente Joe Biden decidiu não fornecer sistemas de lançamento múltiplo de foguetes, que pudessem atingir o território russo na profundidade.

Contrariando avaliações anteriores, parece que Kiev não vai gozar de um apoio de equipamento e armamento “ilimitado”, como inicialmente se pensava.

Divergindo das declarações do Secretário de Defesa Lloyd Austin, quando há mais de um mês referiu que o objetivo era enfraquecer a Rússia, o general Mark Milley deu recentemente nota de que as negociações seriam a solução lógica para o conflito ucraniano, salientando que “ambos os lados devem chegar, por eles próprios, a essa conclusão”.

Parece incontornável que algo está a mudar em Washington, acompanhando a evolução da situação no terreno, que tende a piorar para a Ucrânia. Quanto mais tarde Kiev negociar pior será. Em último caso, poderá não lhe restar mais nada do que assinar a capitulação.


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7 pensamentos sobre “Alteração da narrativa

  1. Não nego o horror de uma guerra e todas as pessoas mortas (de ambos os lados) por causa dos líderes loucos, mas é também uma guerra de ego, e perder uma guerra, nunca é bom para o ego, especialmente para aquele (o país) que invade!

    Pessoalmente, o que estou a ver agora, para além do resultado do conflito russo-ucraniano, é a atitude da Turquia em relação à Rússia e à Nato: que cenários possíveis?
    Reforçar o envolvimento turco na NATO, para se apresentar e limitar a influência russa no Mar Negro?
    Continuação do jogo da “zona cinzenta”, ou seja, não se envolver a 100% na Nato, enquanto se lida com o Estado Russo de acordo com os seus interesses, apesar das pressões de certos Estados (por exemplo, a Turquia está actualmente a bloquear o alargamento da Nato, enquanto os Estados Unidos estão a pressionar para os trazer para cá)
    Uma (improvável?) inversão da situação, com a Turquia cada vez menos envolvida na Nato e com os Estados ocidentais em geral, a fim de reforçar a cooperação com a Rússia (partilha mais ou menos explícita do Mar Negro para evitar tensões, cooperação na indústria do armamento (recorde-se que a Turquia não tem acesso ao F-35 apesar do seu envolvimento no programa.

    Penso que a Turquia será central na próxima década e não me surpreenderia se a NATO trabalhasse indirectamente contra Ancara, com a espada damocles de não ter sucesso e assim empurrar a Turquia para os braços da Aliança Oriental, o que seria estrategicamente um desastre para a NATO.

    Prevêjo então uma eventual anexação de todo o corredor marítimo ucraniano de Donbass à Crimeia (ou mesmo a sul da Transnístria?) pela Rússia?
    Acho difícil imaginar Putin a anexar apenas o Donbass depois de todos os problemas por que passou, nem sequer tenho a certeza de que isso iria piorar a sua posição internacional…

    O facto de a Rússia ter revisto os seus objectivos para cima significa que é muito possível que a Ucrânia venha a ser privada de todo o acesso ao mar, como resultado de uma classe oligárquica sob a tutela da NATO…

    A geopolítica não é tudo. Qualquer governo, especialmente um governo autoritário, precisa de inimigos para reunir a sua população e justificar a limitação das liberdades políticas.

    Estamos a caminho da Nova Russia quando Odessa for tomada ou cercada, no final do Verão, início do Outono? Está em curso um desmembramento da Ucrânia enquanto em Março poderia ter sido possível um acordo para pôr fim a este conflito.

    Como lembrete, Odessa é uma cidade fundada pela Rússia. A Crimea foi retirada dos turcos pela Rússia. Assim, este revisionismo histórico está a começar a instalar-se. Portanto, se estas pessoas quiserem voltar para antes dos soviéticos, têm de ser coerentes.

    Agora acabou, as negociações estão na prateleira. Assim, está a surgir uma nova ordem mundial, a multipolaridade, sendo a Rússia o gatilho e para dizer que os EUA forçaram a sua mão através da Ucrânia, outra infelicidade do Tio Sam e nós somos os que mais temos a perder e continuamos a ser dóceis e servis, uma complacência em todo o seu esplendor.

    Quanto às sanções , que a Rússia fez foi abrir os olhos do mundo, ao confiscar bens russos faz os países desconfiarem das moedas ocidentais, a China começou a diminuir a sua reserva e a Rússia colocou um sistema de pagamento que agora está a funcionar bem, a China e a Rússia comercializam yuan por isso vamos embora!!!

    Porque foi capaz de gerir as primeiras sanções. Porque ele foi capaz de reorganizar a sua economia em torno da auto-suficiência.Porque ele foi capaz de fazer parceiros no mundo?.Porque ele foi muito mais competente e inteligente do que muitos chefes de Estado neste mundo.

    Uma das coisas que a Europa esquece é que a RÚSSIA é um dos únicos países do mundo que é auto-suficiente em muitas áreas, especialmente na alimentação.

    As sanções só reforçam a auto-suficiência da RÚSSIA em tudo quando vemos a dimensão da sua população, a sua superfície e a inteligência dos russos. Basta olhar para a qualidade das suas publicações científicas, especialmente em matemática e física.

    Desde quando é que castigar alguém tem um resultado positivo. É preciso ser estúpido para acreditar nisso. As prisões estão lá porque pensa que elas estão lá…. Que tipo de pensamento é esse?
    E acreditar que não comprar petróleo russo vai mudar alguma coisa… isso também é simplesmente estúpido… Não é Putin que precisa do petróleo, mas sim a Europa. Putin tem-na em casa. Como resultado, como terá uma abundância, a energia será barata para eles, por isso, a economia russa experimentará outra ambigüidade que os senhores das sanções nunca experimentarão…
    O Ocidente não “sabe” pensar.. essa é a conclusão…

    • 30% do Petróleo usado pelos US nas suas bases Europeias vem da Rússia… A Rússia vai ficar com todo o Leste e o Sul da Ucrânia… onde a maioria dos cereais, o gaz natural e os minerais estratégicos estão. Também vai ficar com uns milhões mais de Russos-Ucranianos (& encher as fileiras com um reforço de cerca de uns 40,000, bem treinados e chefiados). Se entra Material de Guerra da Nato, pela porta do Oeste, as refinarias, as pontes, as ferrovias, e as auto estradas vão ficar muito danificaras… Nem armas chegam ‘ a Fronte, nem Cereal sai…Excepto por barco Russo. Os Rios estão a baixar muito e a lama a secar… muito mais fácil manobrar, para quem tem Gasolina. Claro que o Oeste vai falar muito e pagar ainda mais… mas Rússia não vai Negociar… (não há’ confiança)

  2. O espectáculo ucraniano é triste, muito triste. E não é só para Kiev. Washington fez uma figura das mais miseráveis que se pode imaginar. Promoveram o golpe de estado em Maidan, oito anos a fio a criar e a alimentar nazis, atiçar ódios contra a Rússia, cobertura militar aos ataques contra as repúblicas do leste que conduziram a 14.000 mortos. Criaram todas as condições para que a Rússia avançasse preventivamente com a operação militar. Milhares de mortos, destruição da Ucrânia.
    Fizeram de um comediante presidente um presidente comediante. Transformaram-no num fantoche da propaganda anti-Rússia. O fantoche andou semanas a fio a chiar pelos plasmas dos EUA e dos países europeus. Em Kiev, o fantoche abria a porta e recebia os vassalos da NATO que Washington lhe mandava. Uns prometiam-lhe a vitória certa, outros diziam-lhe que ficavam com o resto da Ucrânia que os russos não quisessem, outros prometiam-lhe armas terríveis, outros confortavam-no.
    Houve um que foi visitá-lo e assinou um cheque de 250 milhões de euros. Em geral um fantoche é também um corrupto. 250 milhões deveria chegar, podia ser pouco para um fantoche multimilionário, mas era de boa vontade.
    Agora que a situação é o que sabemos, fala-se de acordos, negociações, capitulação. E a Rússia deve fazer acordos com um fantoche, negociar com um fantoche, aceitar a capitulação da Ucrânia assinada por um fantoche. Até as galinhas se riem.
    Todo este trama criminoso encenado por Washington vai ter um desfecho. E certamente não será como num filme de Hollywood. Moscovo quer as suas GARANTIAS DE SEGURANÇA. Reforçadas!

    • Assino por baixo.

      Acrescento só o “detalhe” dos EUA saberem que a Rússia ia invadir, não devido a informações da sua “intelligence”, mas devido ao facto dos EUA assim terem ordenado a Zelensky para que este começasse a invasão do Donbass a 16 de Fevereiro, com milhares de bombardeamentos diários feitos por NeoNazis com armas da NATO e contra zonas civis ao redor de Donetsk e Lugansk (tal como nos 8 anos anteriores).

      Depois, no dia 19 de Fevereiro, o discurso de Zelensky na Conferência de Munique, provavelmente escrito pela quadrilha do Pentágono/CIA/Nuland+Kagan, a ameaçar alargar a guerra para território de facto Russo (Crimeia) e a ameaçar também em rasgar um acordo internacional de forma a obter armas nucleares, para as apontar a Moscovo às ordens da NATO. Já para não falar dos laboratórios de armas biológicas (financiados pelo Pentágono) que posteriormente foram “descobertos”, como se o país do KGB não tivesse já uma ideia do que ali se passava, com corrupção de Hunter Biden à mistura, e de ingerência de Joe Biden no sistema de Justiça da Ucrânia!

      Se isto não é uma sucessão de justificações para a operação da Rússia, então o que será?

      Ou, de outra maneira, se a Ucrânia de Zelensky tivesse feito o que ameaçou fazer, quantos segundos é que a “imprensa livre” ia perder com essas mortes? Tantos quanto os que perdeu com as tais 14 mil mortes no Donbass, com outras MILHÕES de mortes causadas pela NATO/EUA, ou as mortes a acontecer nos conflitos actualmente a acontecer.

      Quanto ao Major-General Carlos Branco, acho que hoje ou se enganou um pouco ou, sabendo que o resultado de qualquer guerra é imprevisível, recusou falar do que já se sabe:

      «não sabemos ainda o que significa para a Rússia, em termos territoriais e políticos, ganhar esta guerra. Não se conhecem declarações das autoridades russas sobre essa matéria»

      – em termos territoriais significa a anexação de pelo menos todos os 4 oblasts do sul, os 2 do Donbass (Lugansk e Donetsk) e dos 2 que completam a ponte terrestre até à Crimeia (Zaporijia e Kherson). Não é por acaso que nas zonas estabilizadas já se fazem mudanças administrativas, linguísticas, monetárias, ajuda humanitária em larga escala, reconstrução, reabertura da economia, e distribuição de passaportes russos. Além disso há a questão do abastecimento de água à Crimeia a partir do rio que divide a Ucrânia.

      E depois, Kharkiv, Mikolaiv, e Odessa, logo se vê… É que Putin declarou que a operação ia durar o tempo que fosse preciso, e que ia ensinar aos nazi-fascistas (Banderistas) e ultra-nacionalistas ucranianos o que é que significa realmente a “descumunização”: fazer a Ucrânia perder os territórios que anexou desde a revolução vermelha. Ora, são exatamente esses 7 oblasts que Lenin adicionou ao mapa da Ucrânia em 1922, e a Crimeia doada por Khrushchev em 1954.

      Depois, as novas fronteiras dependem ou do sucesso da operação (do ponto de vista Russo). Tanto podem ser essas fronteiras históricas exactas, como podem sofrer adaptações à orografia para facilitar a futura defesa contra os espectáveis contra-ataques. Se correr muito bem pode até “arredondar” as arestas e comer parte de Dnepr. Se correr mal, “arredonda” de outra maneira: não re-conquistando a parte ocidental do oblast de Kharkiv, e a saliência norte do oblast de Zaporijia.

      Para melhor explicação, o mapa em questão:
      https://orientalreview.org/wp-content/uploads/2017/08/map.jpg

      E ali do lado verde, a Polónia, a Hungria, e a Roménia podem querer recuperar alguma coisa. Mas isso cheira-me mais a propaganda Russa do que a outra coisa. A ver vamos. O fascista, homofóbico, lobbyista do carvão, e anti-Estado de Direito, o polaco Duda, um tipo exemplar dos tais “valores europeus”, já disse que graças a uma lei recente a fronteira da Polónia e da Ucrânia é como se já não existisse…

  3. Infelizmente, sou menos otimista do que o senhor Major-General Carlos Branco. Não creio que os mandantes desta guerra tenham alterado (ou pensem alterar) nenhum dos seus propósitos, orientados unicamente para o enfraquecimento da Federação Russa, como referiu Lloyd Austin, ou mesmo para a sua derrota e desintegração. Não vejo porque iriam agora mudar de intenções.
    Zelensky é um “pau mandado”, e só se sentará à mesa das negociações quando receber ordens dos “bosses”. E estes não estão interessados em negociar. A eles pouco lhes interessa que a Ucrânia arda, ou que os seus vassalos europeus fiquem de tanga e com uns largos milhões de refugiados nos braços.
    Se Zelensky receber ordens para negociar isso só pode significar que estará em preparação uma nova frente de guerra, noutro país fronteiriço da F.R.
    É visível que Biden dá claros sinais de senilidade, e que é a sua “entourage” quem decide e executa o plano de guerra. E essa “entourage” é composta por gente perigosa, aliada do poderoso “lobby” armamentista, que não está disposta a infletir na escalada, e que colocará nas mãos do Zelensky todos os instrumentos que forem necessários para que ucranianos e russos se exterminem mutuamente.
    Por isso é que o risco de isto descambar numa guerra nuclear é cada vez maior.

  4. A narrativa está a mudar de facto, e a questão que fica no ar é qual a razão, pois a situação actual era previsível há muito e ficou bem clara depois da queda de Azovstal… terá Putin usado algum trunfo nos bastidores, com tanto material que apanhou sobre as actividades dos EUA? Terão os neocons finalmente percebido que cairam na armadilha que montaram e que a guerra não é um videojogo ou um filme de Hollywood? Seja o que for não é por motivos humanitários que a narrativa está a mudar de certeza… certo é que os russos não deixarão de terminar o que começaram, isto é eliminar as forças neo-nazis e deixar a Ucrânia em tal estado que durante décadas seja impossível lá instalar armas ocidentais.

    E neste momento também já é claro para os ucranianos e para o mundo inteiro aquilo que Kissinger uma vez disse – é perigoso ser inimigo dos EUA, mas ser seu amigo é fatal. Esperemos portanto que Tawain tenha aprendido a lição…

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