A guerra das paixões

(Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 19/03/2022)

Há muitos anos, numa biblioteca da Berlim ainda dividida, perdi a pouca inocência que ainda me restava acerca da eventual superior capacidade que os intelectuais teriam – em comparação com a maioria esmagadora das pessoas que não são pagas para pensar criticamente – de, perante uma situação extrema, manter a capacidade de análise para a qual foram educados e treinados. Consultando revistas filosóficas, alemãs e francesas, publicadas na I Guerra Mundial, surpreendi algumas antigas e futuras vedetas filosóficas, das duas margens do Reno, a juntarem as suas penas agressivas ao esforço bélico dos seus exércitos, chegando mesmo a dar crédito à propaganda mais descarada que, como estamos outra vez a recordar com a guerra na Ucrânia, consegue ser uma arma de destruição maciça, nesse campo de batalha onde se ganha e perde a adesão dos espíritos.

A invasão russa da Ucrânia provocou uma tempestade emocional nalguns dos nossos comentadores da imprensa e do audiovisual, que está a atingir os limites da decência. Mesmo sem fazer nenhum esforço de pesquisa para tal orientado, já surpreendi estrategistas instantâneos a corrigirem militares profissionais, por escritos ou entrevistas televisivas, ou a censurarem cronistas como Miguel Sousa Tavares, ou académicos como Boaventura Sousa Santos, pelo simples facto de estes tentarem oferecer aos seus espectadores e leitores uma visão mais alargada e historicamente contextualizada da complexidade de causas e problemas que nos conduziram à actual guerra.

Repare-se que nenhum dos visados deixou de condenar o ataque de Putin, e de sentir solidariedade com as vítimas da ofensiva russa. Para aqueles plumitivos censores, traindo esse obscuro conformismo que também mora na nossa tradição cultural, tudo o que não se acolhe na sua grelha bicolor e binária, que arruma os contendores em demónios e anjos, implica uma cedência indesculpável ao “putinismo”…

Infelizmente, a delicadeza e gravidade da situação militar e política dispensa o daltonismo moralista destes vigilantes da opinião alheia. Para distinguir o essencial do acessório, importa não esquecer que estamos a viver dias muito semelhantes àqueles que, entre 28 de Junho e 4 de Agosto 1914, assistiram a sucessivos erros de cálculo que desaguaram no massacre da I Guerra Mundial. A paragem da ofensiva russa, mostrando Putin mais como medíocre jogador de poker do que xadrezista exímio, só poderia ser invertida com uma escalada russa nas forças envolvidas e baixas sofridas, comportando um preço político incalculável, tanto na frente externa como na doméstica. A Ucrânia pode resistir longamente, mas só poderia tomar a iniciativa com a aceitação do repetido pedido de Zelensky para a NATO fechar o espaço aéreo da Ucrânia. Esse passo, contudo, arriscaria generalizar o conflito, rumo à escalada nuclear. A prioridade é baixar a violência e não acicatá-la. O que une a Rússia e a Ucrânia é a urgência de escolher entre um processo negocial, em que ambas têm de fazer compromissos e cedências mútuas para calar as armas, ou mergulhar numa espiral de violência que poderá escorregar para uma guerra global.

É do interesse geral, incluindo ético e humanitário, encorajar Moscovo e Kiev a seguirem pelo primeiro caminho. Dar tempo à diplomacia para restaurar a paz. Exactamente o oposto de um aventureirismo que poderia fazer alastrar o incêndio bélico a potencialmente toda a Europa.

Professor universitário


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6 pensamentos sobre “A guerra das paixões

  1. Claro, concreto e conciso. Mas há quem não queira a paz, quem deseje o prolongamento do conflito e até a sua escalada (Os EUA estão felizes da vida, grandes negócios que estão em curso e matam-se dois coelhos de uma cajadada, a Rússia e os idiotas da UE). Os media do Ocidente, controlados que estão por interesses muito pouco recomendáveis, empurram o pagode para esta aventura de loucos. E o pagode come, como não comer, se não têm ferramentas de análise histórica e cultural para o não fazer?

  2. Do comentário de Lúcio Ferro, tiram-se duas conclusões: O Putin ou está louco e a cometer um acto que prejudica a sua Rússia, ou é um agente da CIA infiltrado no Kremlim…
    Qual delas a mais plausível? Cada um que tire as suas conclusões…
    Para mim, apesar de tudo, penso que a segunda hipótese é a menos tola…

  3. Subscrevo totalmente . Mas acrescento que o great reset que tentam impôr como consequência inevitável , o novo mundo e toda a panóplia de anormalidades que subitamente aparecem como necessárias vão ter um choque brutal . E o primeiro sinal é que o império russo pôs termo ao imperialismo europeu e americano . A guerra planeada e executada desde 2014 , matar russos e obrigar a Rússia a sair para a luta , tem agora um resultado ótimo … na tv podem tentar criar uma nova opinião pública internacional totalmente contra os novos bárbaros . O esplendor da nova sociedade do ” aquecimento global ” , da transição energética , do MADE IN CHINA , dos novos ricos que não pagam impostos mas beneficiam do nosso esforço , das tvs a viver com peças fabricadas para induzir comportamentos nos néscios , dos professores doutores vereadores autárquicos e outras incongruências senis está a atingir o climax . Vamos assistir infelizmente à decadência acelerada do sistema porque as dívidas públicas já em níveis asfixiantes não vão ter novos escravos na europa de leste e economias que não crescem não permitem os cheques da sra loura da comissão ” europeia ” aos 100 mil milhões pelo menos como se fosse a mulher da fava rica . Nós de bicicleta e trottinette e eles de mercedes pretos com vidros escuros ???? vem aí a revolta .

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