Os exercícios do pensamento zero

(Pacheco Pereira, in Público, 15/01/2022)

Pacheco Pereira

O papel nefasto da utilização simplista e muito rudimentar do par esquerda-direita nos comentários sobre os debates eleitorais dá resultados absurdos, sem qualquer fundamento teórico e político, cheio de estereótipos e lugares-comuns, sempre com pouca substância. A isto soma-se o previsível, mas penoso, exercício de malabarismo argumentativo daqueles (um gigante “aqueles”) que sempre atacaram Rio, com muita má-fé à mistura, por ser “ineficaz” ou não querer fazer oposição a Costa, e que agora, face ao modo como corre a campanha eleitoral, vêm dizer-nos que ele está a ter sucesso porque… “mudou”. Lamento informar-vos, mas ele não “mudou”, vocês é que se enganaram e agora arranjaram esta pirueta para continuar a ter razão retrospectiva. Adiante.

Desenho de Edward Lear

No afã de classificar posições e viragens a partir de um dualismo cada vez menos útil, percebe-se que a classificação esquerda-direita tem mais a ver com o local de onde o interlocutor fala, do que com a substância do que comenta. À esquerda, tudo parece de direita, à direita, tudo parece de esquerda. Se seguirmos este guião, houve coisas ditas por Francisco Rodrigues dos Santos que parecem de esquerda: por exemplo, a crítica às paródias religiosas de Ventura para cativar o voto evangélico (mais do que o católico) e das novas seitas foi mais longe do que qualquer dos debatentes de esquerda. E Costa disse muitas coisas de direita.

Percebe-se que a classificação esquerda-direita tem mais a ver com o local de onde o interlocutor fala, do que com a substância do que comenta.

Do mesmo modo, a ideia da Iniciativa Liberal de “diminuir o peso do Estado” também não é necessariamente de direita, se for apenas associada à defesa das liberdades cívicas. Por outro lado, a ideia de mudar o “papel do Estado” já é muito mais à direita, sendo que a posição mais à direita em todos os debates eleitorais não veio de Ventura, mas de Cotrim de Figueiredo quando propôs que os funcionários públicos passassem ao estatuto de “colaboradores” das empresas que resultassem da privatização dos serviços do Estado. A palavra “colaboradores” para designar os trabalhadores transporta consigo uma visão de sociedade que, entre outras coisas, é profundamente iliberal, porque assenta numa hierarquia em que o poder deriva da propriedade, definindo que uns “mandam” e outros “colaboram” para executar o “mando”. Marx aceitaria esta descrição do poder na sociedade capitalista.

Onde este dualismo é empobrecedor é quando tem que defrontar candidatos como Costa e Rio que se situam numa zona “central”. Nem Costa disse nada especificamente de esquerda, nem Rio de direita, embora a partir do mesmo lugar político “central” olhem para lados diferentes da sociedade e da economia. As diferenças entre um e outro vêm mais das soluções e menos da enunciação dos problemas, e nessa enunciação onde se concentra a ideologia, por muito que isto pareça absurdo no mundo antagónico em que vivemos, não existem tantas diferenças entre um e outro como se pensa.

Penso que, por aquilo que se conhece do pensamento de Costa, este gostaria de poder ter feito muitas das coisas que Rio propõe.

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Aliás, um dos erros de Costa nesta campanha, na sequência da mesma paralisia da sua governação, tem pouco a ver com a dualidade esquerda-direita, mas com a incapacidade de fazer mudanças de carácter reformista. Costa não o pode admitir, porque esse foi o preço da aliança com o BE e o PCP, nem o BE e o PCP podem admitir porque fecharam os olhos ao pano de fundo da política centrista de Costa, para manter esse veto sobre as mudanças. Penso, aliás, que por aquilo que se conhece do pensamento de Costa e do PS, este gostaria de poder ter feito muitas das coisas que Rio propõe.

A defesa por Costa do “equilíbrio orçamental” foi seguindo este critério simplista, tão à direita como muito do que diz Rio sobre a “sustentabilidade”. Defender o “potencialmente gratuito” dos cuidados de saúde não é necessariamente mais à esquerda do que a fórmula de Rio de que “os cuidados de saúde não podem ser recusados por razões económicas”. Chamo a atenção de que “potencialmente gratuito” não é gratuito, e se a tomarmos à letra, é uma fórmula menos garantística do que a de Rio. O mesmo se formos à questão da TAP. Qual é diferença ideológica de fundo entre querer privatizar a TAP a curto prazo ou tentar rentabilizá-la com dinheiro público para a vender depois, como quer Costa? Repare-se que Costa não deu nenhum argumento de fundo para a TAP permanecer pública.

Não é pelo dualismo esquerda-direita que podemos ir muito longe, mas não tenho qualquer esperança de que seja possível passar deste quadro aplicado de forma completamente rudimentar. Onde podíamos ir mais longe, e isso é impossível neste modelo de debates e campanha, mas também por falta de vontade dos intervenientes, jornalistas e políticos, implicava outra agenda, com importância muito superior ao debate esquerda-direita.

Já não me refiro à discussão nunca tida sobre política externa, sobre a Europa, sobre alianças militares, sobre a “comunidade de língua portuguesa”, sobre a língua portuguesa, sobre educação, sobre a cultura. Refiro-me por exemplo, ao estado da democracia num país cada vez menos soberano, ou seja, onde o voto dos portugueses vale cada vez menos. Ou coisas tão sérias como a possibilidade de a pandemia levar a uma distorção do voto, com a recusa de utilizar o voto electrónico, em políticos com a boca cheia de “transição digital”. Ou o debate sobre justiça que se esboçou e que ninguém quis ir para além das platitudes sobre corrupção, é um exemplo, numa altura em que os juízes e a sua corte de jornalistas estão em guerra aberta, ou quando se considera tabu discutir o corporativismo dos magistrados, ou o papel da violação do “segredo de justiça” como um ersatz da prova.

Nenhuma destas coisas pode ser tratada no fácil dualismo esquerda-direita. Onde está a esquerda na crítica ao corporativismo judicial? A defesa do voto electrónico é de esquerda ou de direita? Ninguém discute a Europa, agora que, do Livre ao CDS, toda a gente é europeísta? E o Acordo Ortográfico, que estraga a língua portuguesa, é de esquerda ou direita? E na pandemia tornar a vacina obrigatória é de esquerda ou direita? E a eutanásia ou a despenalização das drogas, é de direita ou esquerda?

Eu sei que tudo isto é inútil. Vou voltar ao meu Edward Lear, que faz mais sentido.


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2 pensamentos sobre “Os exercícios do pensamento zero

  1. Tem razão o Pacheco quando afirma ser fútil tentar distinguir entre direita e esquerda, num debate Costa/Rio. E não é por serem ambos de esquerda…
    Não tem razão o Pereira, sonso, quando sugere que a essa distinção é obsoleta e não faz toda a diferença, lá, onde realmente interessa: its the economy, stupid!

  2. É óbvio que nem tudo o que se discute em política cabe na dicotomia esquerda-direita, como é actualmente o caso das questões de identidade, género, opções culturais, sejam elas mais ou menos consensuais ou fracturantes. Mas há as que ali cabem e as tentativas de desvalorização da dicotomia acabam geralmente por se enquadrar nos procedimentos clássicos da direita, de negação da diferença. O autor, como pessoa inteligente, não vai pelo caminho da negação frontal; segue uma via de enumeração, para evitar a da definição compreensiva. A questão é que uma enumeração, por extensa que seja, também não equivale a uma definição extensiva. E, entre o que sempre fica de fora, mas também entre o que se identificou como neutro, há questões que só encontram tratamento no campo da política em termos de esquerda-direita.

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