Carta aberta ao Conselho Superior da Magistratura

(José Sócrates, in Diário de Notícias, 03/01/2022)

(Esta carta de Sócrates é um murro bem aplicado no estômago da Justiça. Uma Justiça de ópera bufa, cada vez me convenço mais, com uma agenda política oculta que promove com tal denodo que nem sequer se dá ao trabalho de seguir as normas legais sobre as quais se fundamenta. As leis não se aplicam aos senhores magistrados, mas sim aos infelizes que lhes caem nas mãos, mesmo que sejam ex-primeiros ministros, como Sócrates.

Estamos em campanha eleitoral. Espero que os políticos não se acobardem e proponham legislação para acabar com esta bandalheira.

Estátua de Sal, 03/01/2022)


Começo por assinalar a evolução da vossa posição. Há cinco anos o Conselho defendia que a nova distribuição do processo Marquês não era necessária e que ela “foi manual por não poder ser eletrónica dados os problemas de funcionamento que determinaram o encerramento do Citius em setembro de 2014”. Hoje reconhece que nada disto era verdade – a distribuição era necessária e o sistema informático naquele tribunal estava a funcionar regularmente. O relatório admite, finalmente, que no dia 9 de setembro de 2014 a distribuição do processo Marquês foi manipulada e falsificada. Não foi feita por sorteio, não foi feita com a presidência de um juiz, não foi feita de modo a garantir igualdade na distribuição de serviço. Pronto, até aqui estamos de acordo. A partir daqui divergimos.

E a primeira divergência é a inacreditável qualificação jurídica que o Conselho atribui a tal ato – “irregularidade procedimental”. Por um lado, não deixa de ser extraordinário que durante cinco anos o Conselho andasse a defender o que agora classifica de irregularidade. Mas o que é importante não é isso. O que é importante é que não foi uma irregularidade procedimental, foi uma falsificação. O que aconteceu naquele dia 9 de setembro foi uma trapaça jurídica com o objetivo de escolher, de forma arbitrária, o juiz do caso. Um juiz conveniente. Um juiz parcial. Um juiz capaz de ordenar a detenção no aeroporto por perigo de fuga quando estava a entrar no país e não a sair; um juiz disponível para colaborar com o festim da violação de segredo de justiça que se seguiria; um juiz sem pudor de fazer indecentes insinuações a propósito do principal visado numa entrevista televisiva. Acontece que o processo envolvia um antigo primeiro-ministro, o que coloca imediatamente em cima da mesa a motivação política. Irregularidade procedimental? Não, senhores conselheiros, o que aconteceu não foi uma irregularidade, mas uma manipulação gravíssima da escolha do juiz por forma a tornar o todo o processo judicial num jogo de cartas marcadas. Os motivos são claros e as vítimas muito concretas. Entre essas vítimas está também a credibilidade do sistema judicial.

Esta manipulação remete direitinha para um dos princípios mais importantes do direito democrático – o princípio do juiz natural, o qual, segundo o Tribunal Constitucional, constitui “uma das garantias constitucionalmente consagradas do arguido”. Garantias constitucionais, é disto que estamos a falar, não de irregularidades processuais. E quando se põe em causa as garantias constitucionais dos cidadãos é a legitimidade do poder judiciário que é afetada. Eis o que tenho a dizer sobre as vossas “irregularidades processuais”.

O tribunal de exceção

No entanto, o aspeto mais chocante no vosso relatório é a desresponsabilização dos juízes que prestavam serviço naquele tribunal. É facto assente que não houve sorteio eletrónico e é facto assente que nenhum juiz esteve presente nos atos de distribuição de processos. Dos dois imperativos legais da distribuição, nenhum deles foi cumprido. Durante um longo período e tendo perfeita consciência da lei, nenhum dos dois juízes fez nada para corrigir a situação. Sabiam e nada fizeram. E o que é absolutamente escandaloso é que os dois juízes descartem qualquer responsabilidade pelo que se passou – não era com eles, não sabiam, nada viram, não se interessaram. A avaliar pelos seus depoimentos, a questão da distribuição não passava de uma questão de intendência, sem dignidade para ocupar lugar nas preocupações dos senhores magistrados. Não havia escalas de distribuição, diz um deles. Sim, os processos caíam-lhes simplesmente nas mãos e era quanto bastava. E, no entanto, os dois juízes conheciam a lei – sabiam que a lei impõe a presidência de um juiz na distribuição e sabiam que a lei ordena que esta seja “realizada por meios eletrónicos, os quais devem garantir aleatoriedade no resultado”. O descarte de responsabilidades é absolutamente revoltante. Mas mais revoltante ainda é que o Conselho Superior da Magistratura normalize essas práticas.

E o encobrimento

O que resulta absolutamente evidente do mapa de distribuições daquele tribunal é que os chamados “processos mediáticos” foram fraudulentamente atribuídos ao juiz Carlos Alexandre. Essas “atribuições manuais” foram feitas pela escrivã Teresa Santos, que foi colocada no tribunal por “sugestão” do senhor juiz Carlos Alexandre. Acontece também que a senhora escrivã começou a prestar serviço naquele tribunal exatamente no dia 1 de setembro, dia em que o tribunal passou a ter dois juízes e dia também em que a distribuição de processos passou a ser necessária. Oito dias depois de entrar ao serviço decidiu começar a longa lista de falsificações entregando ao juiz Alexandre o processo Marquês.

Aqui chegados e guiados pelos factos, devemos colocar seriamente a suspeita de que a fraude tenha tido motivação política e que a dita “atribuição manual” do processo tenha sido feita por forma a agradar ao juiz, beneficiando-o na sua carreira e na sua vaidade. Quando o vosso relatório fala de “critérios que não foi possível apurar”, eles estão mesmo à frente dos olhos – a vaidade, a carreira e a motivação política. A motivação política para perseguir o inimigo político; a vaidade de construir a biografia do juiz herói. Os aspetos políticos dessa biografia são hoje absolutamente evidentes – desde as páginas eletrónicas da extrema-direita que aclamam o juiz até ao convite para discursar ao lado do seu antigo colega Sérgio Moro nas conferências do Estoril. Quanto à obtenção de benefícios ilegítimos, julgo que é suficiente. No que toca a prejuízos talvez devam perguntar às dezenas de vítimas que naquele tribunal nunca tiveram direito a juiz natural.

Ao ler este vosso relatório a primeira ideia que me vem ao espírito tem que ver com os primeiros comunicados da Igreja Católica a propósito do abuso de menores. A Igreja demorou a aprender. Espero que o sistema judicial não leve tanto tempo a perceber que o encobrimento só agrava as coisas, não as resolve.

Ericeira, 29 de dezembro de 2021

Antigo primeiro-ministro


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5 pensamentos sobre “Carta aberta ao Conselho Superior da Magistratura

  1. Bom, desde logo os juízes são irresponsáveis. Resta saber se no domínio da objectividade dos seus actos ou subjectivamente em geral. Heranças das ações de formação do ex-ministro Laborinho Lúcio.

  2. Não teremos tão cedo nenhuma formação política, nem sequer nenhum político com suficiente popularidade, que tome como sua a batalha pelo estado de direito democrático, que terá de ser travada contra muitos juízes, magistrados e incontáveis “jornalistas” e comentadores. Mas tenho esperança que, como tantas vezes, o povo nos (se?) surpreenda, com um sentimento crescente de nojo, perante mentiras tão evidentes, desculpas tão esfarrapadas, argumentos que insultam a inteligência, de tão ridículos. Um dia destes, a maré muda. E o(s) Alexandre(s) desaparece(m), para o rodapé da história, de onde nunca deveria(m) ter saído.

  3. Nunca fui um defensor de Sócrates, mas infelizmente nesta matéria tenho que lhe dar razão.
    Mais de 7 anos volvidos, o Conselho Superior da Magistratura reconhece por fim, por insistência do juiz Ivo Rosa, o que sempre tinha negado, que a distribuição do processo Marquês não foi efectuada por sorteio, na presidência de um juiz, não tendo sido feita de modo a garantir a independência na distribuição do processo em obediência ao princípio fundamental do “juiz natural”.
    O meu espanto é que os doutos conselheiros do Supremo Tribunal tenham concluído tratar-se a violação de tal princípio de uma mera “irregularidade procedimental”, e tenham ignorado o já amplo tratamento jurisprudencial do nosso Tribunal Constitucional sobre a matéria e, nomeadamente do Acórdão n.º 614/2003 (cujo relator Paulo Mota Pinto, faz parte da actual direcção do PSD de Rui Rio) decisão que representa o ponto alto da nossa jurisprudência constitucional sobre a matéria. Transcrevo para que não restem dúvidas, alguns excertos do douto acórdão:
    «O princípio do juiz natural, ou juiz legal, para além da sua ligação ao princípio da legalidade em matéria penal, encontra ainda o seu fundamento na garantia dos direitos das pessoas perante a justiça penal e no princípio do Estado de direito no domínio da administração da justiça. É, assim, uma garantia da independência e da imparcialidade dos tribunais (artigo 203.º da Constituição)». O princípio contém «a exigência de determinabilidade do tribunal a partir de regras legais (juiz legal, juiz predeterminado por lei, gesetzlicher Richter) visa evitar a intervenção de terceiros, não legitimados para tal, na administração da justiça, através da escolha individual, ou para um certo caso, do tribunal ou do(s) juízes chamados a dizer o Direito. Isto, quer tais influências provenham do poder executivo — em nome da raison d’État — quer provenham de outras pessoas (incluindo de dentro da organização judiciária). Tal exigência é vista como condição para a criação e manutenção da confiança da comunidade na administração dessa justiça, “em nome do povo” (artigo 202.º, n.º 1, da Constituição), sendo certo que esta confiança não poderia deixar de ser abalada se o cidadão que recorre à justiça não pudesse ter a certeza de não ser confrontado com um tribunal designado em função das partes ou do caso concreto».
    Na sua dimensão positiva, o princípio abrange quer «a determinação do órgão judiciário competente», quer a «definição, seja da formação judiciária interveniente (secção, juízo, etc.), seja dos concretos juízes que a compõem» através do «dever de criação de regras, suficientemente determinadas, que permitam a definição do tribunal competente segundo características gerais e abstratas». As regras que permitem tal determinação, e logo relevantes para aferir o cumprimento das exigências do princípio, não são «apenas regras constantes de diplomas legais, mas também outras regras que servem para determinar essa definição da concreta formação judiciária que julgará um processo — por exemplo, as relativas ao preenchimento de turnos de férias —, mesmo quando não constam da lei e antes de determinações internas aos tribunais (por exemplo, regulamentos ou outro tipo de normas internas)».
    Na sua dimensão negativa, entendeu ainda o Acórdão n.º 614/03 que o princípio do juiz natural significa uma proibição do afastamento, num caso individual, das regras gerais e abstratas que «permitem a identificação da concreta formação judiciária que vai apreciar o processo».
    Assim, concluir como o fez o Conselho Superior da Magistratura que a atribuição do processo Marquês ao juiz Carlos Alexandre executada manualmente (à revelia da obrigatoriedade do sorteio electrónico dos processos) por uma funcionária judicial, sem a presença de nenhum dos juízes que então integravam o “TICÃO” é uma mera irregularidade procedimental e não a violação do princípio fundamental do “juiz natural”, a mim já não me espanta, porque infelizmente são cada vez mais as decisões judiciais por aí disseminadas que revelam erros grosseiros e crassos que as tornam em decisões arbitrárias assentes em puras ficções jurídicas.
    Mas como bem afirma o António Teixeira os juízes são irresponsáveis, por força de um outro princípio constitucional (art.º 216.º/2 – «Os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções consignadas na lei») e, assim, desresponsabilizados pelas decisões proferidas, por mais absurdas e violadoras dos princípios legais, que nos as apresentem.

  4. Esta questão da redistribuição dos processos pela totalidade dos juízes que integram esta instância judicial teve o mérito de levantar o véu sobre os benefícios financeiros de que auferem os detentores dos processos, ao que parece de 700€ por mês. Caso para pensar que se trata de um incentivo perverso, conduzindo ao prolongamento desses processos independentemente do respectivo mérito e, ainda, à acumulação de processos, constituindo arguidos sem provas ou apenas com fracos indícios substantivos.
    Uma matéria que conviria esclarecer e expor publicamente, incluindo a divulgação anual das listas dos beneficiários. Não deve ser só o poder político a ser objecto de exposição pública. O poder judicial não se pode fechar a pretexto do “estado de direito” conceito sobre o qual vamos ouvindo dia a dia discursos infindáveis desde o tempo da ditadura, sem inclusão do “democrático” como caracterizado da sociedade em em hoje vivemos. Doutro modo, “quis custodiet ipsos custodes?”

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