O mapa e o território

(António Guerreiro, in Público, 01/10/2021)

António Guerreiro

A hipótese de que as pessoas deixem de ir votar porque já sabem, através das sondagens, isto é, através de uma imagem antecipada do real, qual será o resultado das eleições, mostra que o juízo foi substituído pelo cálculo. Acenando a uma formulação do célebre autor da “teoria das catástrofes”, René Thom, diremos que se passa da matemática da inteligibilidade à matemática do controle.

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Consuma-se assim uma substituição fabulosa que faz lembrar uma outra: a do território pelo mapa. O escritor francês Michel Houellebecq publicou em 2010 um livro, com o qual ganhou o Prémio Goncourt, que se chamava precisamente La Carte et le Territoire. Era uma “fábula” cruel sobre o mundo da arte que tinha como protagonista um artista contemporâneo. Mas quanto às histórias da substituição do território pelo mapa, nada consegue superar um conto de Jorge Luis Borges: os cartógrafos de um império, tentando satisfazer a ambição de representar o mundo com a máxima fidelidade, chegam ao absurdo de realizar um mapa do império na escala de 1:1. O mapa torna-se assim, progressivamente, o território.

Este modo de representação da realidade provoca uma desconexão. É o que acontece também com as sondagens que substituem, no cálculo dos eleitores, os resultados das eleições e tornam o acto eleitoral um acontecimento redundante porque se limita a cumprir uma destinação. E é, de maneira mais geral, o que se passa com a governação enquanto máquina de medir, calcular e reagir aos números. Os dirigentes políticos estão cada vez mais perante o mundo cifrado dos “indicadores” numéricos, dos scores. Afectados por esta ilusão hiperrealista, vão progressivamente perdendo de vista a realidade do território e deixam de saber o que se passa no país. Trata-se de um sinal eloquente da ascensão do biopoder — essa nova técnica do poder e forma de “governamentalidade”, analisadas por Foucault. Esta dissociação entre as representações quantificadas da situação política e a realidade é uma forma de entropia. Foi assim que a União Soviética implodiu, colapsou.

A entropia, esse fenómeno físico que afecta inevitavelmente a governação à imagem de um sistema termodinâmico, remete-nos para o imaginário cibernético que domina desde há bastante tempo as tecnologias de governo, do mesmo modo que cria nos eleitores a ilusão de que o resultado das eleições está decidido por um cálculo antecipado. Importa lembrar que foi Norbert Wiener, o pai da cibernética (não devemos esquecer que esta palavra vem de um termo grego que significa a acção de pilotar um navio), o primeiro a projectar sobre o funcionamento da sociedade o modelo cibernético do computador, num livro visionário publicado em 1950 que se chama Cybernetics and Society. E o subtítulo vale como um programa completo: The Human Uses of Human Beings. Do conceito de político como domínio do incalculável, passa-se para a política enquanto máquina de governar através do cálculo, a qual nem precisa de conhecer o território porque os mapas, as representações cifradas, fornecem a realidade que conta. Para designar esta “governamentalidade” há uma palavra que entrou no vocabulário político (e da teoria política) com alguma insistência: é a palavra inglesa governance, que, em português, já está lexicalizada sob a forma de “governança”. Segundo uma fonte que parece credível (o artigo Gouvernance, que faz parte de um número temático dos Quaderni, nº 63 (2007), dedicado aos Nouveaux mots du pouvoir: fragments d’un abécédaire), a palavra gouvernance surgiu no francês do século XIII para designar a arte de governar. Depois passou para a língua inglesa e aí ganhou, numa época mais recente, um outro sentido, exportado então para outras línguas (inclusivamente para o francês, onde tinha tido origem; o mesmo aconteceu com a palavra fétiche, que importámos do francês, como se essa palavra francesa não tivesse sido originalmente importada do português “feitiço”): no sentido moderno da palavra, governance é a técnica de governação que alarga à administração pública os métodos da empresa privada. De uma maneira geral, a governance ocupa uma posição central num campo semântico que expulsa o vocabulário da democracia política (povo, soberania, território, liberdade, justiça, etc.) em favor do vocabulário da gestão (flexibilidade, mérito, eficácia, avaliação, mérito, etc.). A pairar sobre tudo isto, a ditar-lhe o funcionamento e as leis, está o novo olho de Deus — o olho cibernético.



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3 pensamentos sobre “O mapa e o território

  1. O texto é só difícil. Mas não e uma salada mal feita. Quem quiser textos fáceis vá por exemplo ao Sol ao Observador não dão que pensar e servem-nos as análises básicas e tendenciosas, “a teoria de tudo”, a conversa de café e dos antigos taxistas.

  2. Já agora das TVs e programas com “intelectuais sérios”de jornaleiros,que transformam derrotas em vitórias e vitórias em derrotas …….o que os “mata ” é que os seus desejos encomendados ,não transformam o seu desejo e dos seus “Senhores” mandates em realidade ,o que nos salva é que os Cidadãos ,nas suas terras ,aldeias Vilas e algumas Cidades ,em que os Cidadãos que de facto ,aí vivem e trabalham com todas as dificuldades do dia a dia ,votam naqueles que HomensOu Mulheres que na Polis ,lhes resolvem os problemas seus e de seus filhos e assim tornam uma Comunidade livre que faz as suas escolhas com desejo que a Res publica ,seja o Governo do Povo ……

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