A «moderna» cultura empresarial e o Estatuto do Trabalho Nacional de Salazar

(Hugo Dionísio, in AbrilAbril, 31/05/2021)

Não é apenas o direito do trabalho que está em causa com a ordem mundial neoliberal; o que está
em causa é a própria democracia.

Sempre me questionei onde encontraria o repositório teórico de princípios, conceitos e regras, mais ou menos ocultas, mais ou menos confessadas e crescentemente legisladas, que está por detrás de todo um jargão muito corporate, apresentado como muito moderno, sofisticado e academicamente incorporado, que substitui o trabalhador por «colaborador», o patrão por «empregador, empresário, empreendedor ou investidor», o trabalho por «serviço» ou o sindicalismo por «associativismo de trabalhadores».

Parti para a descoberta convencido de que um discurso tão ritmado e compassado tinha de se fundar num referencial originário. Esse referencial, no caso português, é, nada mais nada menos, do que o Estatuto do Trabalho Nacional (ETN), publicado no Decreto-Lei n.º 23048 a 23 de Setembro de 1933. Mas bem que poderia ser a Carta Del Lavoro de Mussolini.

Verdade é que, um sem número de personalidades, com presença certa nos meios académicos, financeiros, da área da gestão e da política pública, uns mais ingénua e confusamente, outros muito bem sabedores, fundam a sua doutrina organizativa empresarial precisamente na ideologia fascista, a qual serve, por sua vez, de base à ideologia económica neoliberal que funda a cultura corporate dos nossos dias, afinal tão sedimentada num passado que não queremos que volte.

O ataque ao direito do trabalho é comum a toda a Europa, nas ultimas décadas, tendência que teve a sua eclosão nos EUA neoliberais resultantes do designado «consenso de Washington», objecto de teorização pela célebre escola de Chicago de Milton Friedman (que chegou a receber um Nobel em 1976), impulsionador do monetarismo económico, com resultados trágicos em toda a América Latina, especialmente no Chile de Pinochet, impondo um sistema económico que se provou só ser possível com repressão e ditadura. Este vendaval desregulador e de empobrecimento em massa, que na Europa, por razões históricas, ainda não atingiu o dano social que é bastante visível nos EUA e na América Latina, em Portugal acoplou ou fundiu-se com uma escola de gestão contra-revolucionária, responsável pelo ataque «civilista» à legislação laboral, bem traduzido no Código do Trabalho de 2003, reafirmado e agravado pelos sucessivos governos.

É de estarrecer a similaridade de princípios, conceitos e observações consagrados pelo estado fascista, e agora apropriados por partidos de cariz neoliberal, mais ou menos extremados, como o PSD, o CDS-PP, o Chega, a Iniciativa Liberal e mesmo alguma gente do PS, o que não deixa de ser trágico.

É tão coincidente o jargão, que poderíamos falar de um movimento revivalista das concepções económico-empresariais fascistas. O que pode ser. Mas tal também revela a mesma natureza fundadora dos dois movimentos – o fascista e o neoliberal. As pérolas que podemos encontrar no ETN, bem que poderiam ser retiradas de um qualquer livro actual de recursos humanos, de um manual de gestão das organizações ou até, pasme-se, de um decreto presidencial1, já para não falar da ampla panóplia de relatórios e planos públicos e privados que tão bem fidelizam o ideário social fascista.

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No âmbito do ETN, toda a existência económica é reconduzida a uma lógica privatística: ao estado interessa tudo o que é privado e tudo o que é privado serve-se do estado, organizado em corporações. O estado é apenas o braço coercivo que conforma a sociedade a esse interesse. Embora não se possam confundir as corporações fascistas com as corporações na sua forma empresarial, no fundo, umas e outras funcionam para o interesse da mesma classe: a classe proprietária. Não obstante, claro, todas as enunciações públicas em sentido inverso. No final devemos sempre perguntar cui bono?2

Eis algumas pérolas ideológicas que podemos encontrar, com expressão ipsis verbis no vernáculo «gestionário» dominante 3:

«Artigo 4.º

O Estado reconhece na iniciativa privada o mais fecundo instrumento do progresso e da economia da nação».

Parece que estou a ouvir o jornalista José Gomes Ferreira a dizer qualquer coisa como «é preciso encontrar novos heróis com coragem para investir»4. Bem que poderia dizer – com dinheiro – seria uma expressão mais adequada. O mesmo autor também referiu, por diversas vezes, os empresários como seus «heróis», concretamente no tempo da Troika. O povo, que sofreu os cortes, o desemprego, a pobreza e a fome, que trabalha e produz a riqueza, não lhe mereceu o mesmo elogio. Nem tão pouco os dirigentes, muito voluntários, que gerem com o seu suor formas mais democráticas de organização social, como as associações ou as cooperativas, totalmente abandonadas à sua sorte.

«Artigo 5.º

Os indivíduos e os organismos corporativos por eles constituídos são obrigados a exercer a sua actividade com espírito de paz social, subordinando-se ao princípio de que a função a justiça pertence exclusivamente ao Estado».

Uma pérola rara. A paz social como objectivo em si mesmo. Já todos ouvimos gente bem conhecida da nossa praça a dizer – já não é tempo de luta de classes – , ou o nosso PR a dizer que é fundamental garantir a «paz social»5. Podia ainda referir-se a tentativa que, ao longo dos últimos 20 anos, os sucessivos governos têm feito para introduzir no Código do Trabalho, uma cláusula de «paz social». Ou, quando em tempo de greve, a multiplicação de alegres arautos exprimindo a sua preocupação pela perturbação da greve.

«Artigo 6.º

O estado deve renunciar a explorações de carácter comercial ou industrial, só podendo estabelecer ou gerir essas explorações em casos excepcionais, para conseguir benefícios sociais superiores aos que seriam obtidos sem a sua acção. Também o Estado só pode intervir directamente na gerência das actividades privadas, quando haja de financiá-las e para a realização dos mesmos fins».

Quem não se lembra de Pedro Passos Coelho dizer que queria reduzir o «o peso do estado na economia»6, ou do exército de economistas neoliberais, muito bem formados nas universidades da Ivy League, ou os que com esses se querem confundir? Lembram-se dos incentivos às privatizações, ao abrigo dos quais e em entrevista televisionada, Morais Sarmento, gestor do dossier de privatização da GALP, dizia que «só com a privatização a GALP pode ir mais longe nos mercados internacionais»? E que tal «benefício» – certamente que não era para o povo e os trabalhadores – justificaria por si só a privatização. Mas também poderíamos ir buscar umas tiradas do Camilo Lourenço quando diz, nas suas inúmeras rubricas semanais radiofónicas, que «é para estas coisas que o estado deve servir, para acudir às empresas em crise».

«Artigo 11.º

A propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma função social, em regime de cooperação económica e solidariedade».

Trata-se do princípio da solidariedade entre o capital e o trabalho, percursor do termo «colaborador» e negador da natureza conflitual que está na génese da relação de trabalho. Logro bem implícito em tiradas como «o tempo do PREC já passou» ou «a luta de classes não é caminho para o futuro».

A revogação do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador o favor laboratoris previsto no artigo 2.º da Lei do Contrato Individual de Trabalho, operada pelo Código do Trabalho, situação mantida pelos sucessivos governos, constitui uma das formas de afirmação desse princípio, segundo o qual trabalhador não tem de ser especialmente protegido, porque a relação supostamente não é conflitual. Num período em que se vive o que as escolas neoliberais apelidam de «futuro do trabalho» estão cá as Glovos, as UBER’s e as Amazons a provar isso mesmo. Mesmo a Google, antes tão creditada, os seus trabalhadores já sentiram a necessidade de criar um sindicato. Sintomático.

«Artigo 21.º

O trabalho, em qualquer das suas formas legítimas, é para todos um dever de solidariedade social. O direito ao trabalho e ao salário humanamente suficiente são garantidos sem prejuízo da ordem económica, jurídica e moral da sociedade».

O trabalho é visto como um dever e, ao mesmo tempo como uma liberdade, mas nunca como um direito dos trabalhadores. Daí que Pedro Passos Coelho gostasse de se referir ao subsídio de desemprego como um desmobilizador de procura de trabalho, visão amplamente reconhecida na neoliberal União Europeia. Por outro lado, o valor do salário e as condições de trabalho não visam a subsistência e a suficiência em função as necessidades humanas dos trabalhadores. Estas condições estão dependentes de uma ordem superior. Hoje menos moral do que ontem, mas tal como ontem, a ordem económica – a economia – continua a constituir a primeira referência.

Quem não se lembra de Pedro Passos Coelho, perante o gáudio do seu coro de Montenegros e Rangéis, dizer: «É preciso sair da zona de conforto», numa espécie de tirada moral para os preguiçosos que não queriam trabalhar, mesmo que se acenasse com um salário mínimo de 500 euros. Ou das suas referências à necessidade de corte nos salários e na segurança social, em função de uma lógica de equilíbrio das contas públicas e de crescimento económico das empresas?

«Artigo 22.º

O trabalhador intelectual ou manual é colaborador nato da empresa onde exerça a sua actividade e é associado aos destinos dela pelo vínculo corporativo».

Afirmador da cultura corporate do capitalismo multinacional do pós segunda guerra mundial, este artigo contém não apenas a menção, mas todo o conteúdo do termo «colaborador».

É o vínculo corporativo que corporiza a obrigação de solidariedade entre capital e trabalho. Algo traduzido para os termos actualmente em voga como «é preciso os colaboradores vestirem a camisola da organização», como se os resultados da colaboração fossem, não apenas mútuos, mas intrinsecamente justos. Justiça essa ditada por uma qualquer ordem global e universal, intrínseca ao próprio sistema e que não pode ser questionada. O termo «colaborador», sem expressão na lei actual, mas com expressão prática enquanto elemento fundamental na estratégia de desmobilização do interesse de classe, tenta transportar para o trabalho actual uma carga voluntária, quase amigável. Quantos e quantos directores gerais se dirigem às suas novas contratações, muitas delas com vínculo precário e salário mínimo, como: «esta colaboradora está cá para nos ajudar…». Apenas no acto do despedimento é esquecida toda a dedicação. Nesse momento a contraditória realidade volta a ser nua e cruel.

Muitos outros poderiam ser os decalques utilizados e explorados neste artigo, concretamente no domínio da propriedade, do capital, da liberdade sindical, etc.

Mas o objectivo fundamental foi o de evidenciar com toda a clareza a similaridade e a ligação íntima, umbilical, entre a doutrina económico-empresarial vigente, propagada pelo neoliberalismo e a que era propagada pelo fascismo. Ambos, neoliberalismo e fascismo, são filhos do mesmo pai: o capitalismo. Ambos dão voz ao mesmo veículo: o imperialismo.

É por isso que não podem subsistir dúvidas, não é apenas o direito do trabalho que está em causa com a ordem mundial neoliberal; o que está em causa é a própria democracia e a sua transformação num mero sistema sufrágico que visa afastar a decisão política do que é o poder económico, sempre vigente, inquestionável, inevitável e inexorável. As relações de trabalho são o melhor espelho de um sistema político; não existem democracias com trabalhadores oprimidos. O desconhecimento da sequência histórica, da dialéctica social e da política enquanto disciplina que trata da gestão das sociedades, bem como a incultura funcional cultivada nas universidades também tem uma palavra a dizer: em terra de cego, quem tem olho é rei.

Não obstante, mais cedo do que tarde, essa contradição se fará transparecer com toda a veemência que caracteriza a mais crua das realidades.


  • 1.Ver Artigo 4.º al. c) do Decreto Presidencial n.º 14-A/2020 de 18/03,«(…) quaisquer colaboradores de entidades públicas ou privadas, independentemente do tipo de vínculo, se apresentem ao serviço (…)».
  • 2.Quem beneficia?
  • 3.NR: sublinhados do autor.
  • 4.José Gomes Ferreira, em Sic Notícias.
  • 5.Marcelo Rebelo de Sousa sobre a Autoeuropa e a paz social, no Observador.
  • 6.Passos Coelho à RTP.

8 pensamentos sobre “A «moderna» cultura empresarial e o Estatuto do Trabalho Nacional de Salazar

  1. Bom texto, esclarecedor
    Acrescento o relevo dado a “empresas” unipessoais que em geral são “recursos” contratados por empresários de grande gabarito técnico (?) que costumo designar por negreiros – as ETT cujo património é nulo gerando dívidas jamais pagas para com a Segurança Social. E que fornecem aqueles “recursos ” por um prazo definido mas facilmente anulável
    Essa gente tratada como “recursos” nem sequer se inclui na sociedade como biscateiros. Têm a dignidade de ter inscrição nas Finanças, pagar impostos, inserem-se no “mercado”.
    Há muitos anos que divulgo a enorme dívida dos chamados”empresários – individuais ou coletivos -para com a Segurança Social e que corresponde a cerca de um ano de pensões do regime geral

    https://grazia-tanta.blogspot.com/2020/12/seguranca-social-vitima-de-uma-burla.html

    Nunca ouvi ou li um pio sobre o assunto. Vindo da classe política ou dos sindicatos

    VL

  2. “As relações de trabalho são o melhor espelho de um sistema político; não existem democracias com trabalhadores oprimidos.”
    Obrigado pela pesquisa, pela reflexão clarividente e pela lucidez de chamar os bois pelos nomes.

  3. As semelhanças entre o “Estatuto do Trabalho Nacional” e a “Carta del Lavoro” do regime fascista italiano de Mussolini, foi feita magistralmente pelo Pedro Ramos de Almeida (1932-2012) – ex-membro do Comité Central do PCP, que regressou a Portugal, nos finais de 1971, após o seu advogado, Fernando Abranches Ferrão, ter tido a garantia de não haver processos contra ele – e de ter voltado a frequentar a Faculdade de Direito de Lisboa, que tinha abandonado em 1962, para o exílio em Paris na sequência da luta dos estudantes das três Academias (Lisboa, Porto e Coimbra), em 1960, da qual foi um dos líderes.
    Na oral de Direito Corporativo (a cadeira por que então se ensinava o direito do trabalho), realizado em 1972 perante o célebre Prof. Soares de Martinez, o Pedro Ramos de Almeida argumentou detalhadamente, artigo a artigo, que o ETN era uma cópia integral da Carta del Lavoro, num registo muito semelhante ao que o Hugo Dionísio agora faz.
    Estupefacto, perante a evidência dos argumentos aduzidos pelo PRA, o Martinez incapaz de o contradizer, virou-se para o conselheiro que presidia ao exame (à época, os exames na Faculdade de Direito eram presididos por conselheiros do Supremo Tribunal que tinham teoricamente o poder último de decisão sobre a aprovação ou não), e como justificação para passar o PRA disse-lhe: “Senhor Conselheiro, o aluno está em contradição com a ideologia que preside à disciplina, mas demonstra possuir os necessários conhecimentos jurídicos sobre a mesma, razão pela qual não posso deixar de aprová-lo”.
    Foi o supremo gozo de todos nós, também então alunos da Faculdade de Direito, sujeitos às diatribes do Martinez, vê-lo vergado ao Pedro Ramos de Almeida.

    • Caro Antunes.

      Não é preciso brilhantismo nenhum para descobrir que o estatuto do trabalho era uma cópia da carta del lavoro… precisamente por ser uma cópia…

      Basta pôr as duas lado a lado que qualquer pessoa que saiba ler vê que são essencialmente a mesma coisa.

      Não só toda a gente já sabia como era assumido.

      Na época em que foi feita andava o Salazar a fazer a saudação fascista e a ser fotografado para a Times com uma foto autografada tamanho a4 do Mussolini em cima da sua mesa de trabalho a dizer que o estado novo era “muito parecido com o fascismo”.

      Quem esteve bem na história que contou foi o Martinez. Que passou um reconhecido inimigo politico quando no regime da época era facílimo tê-lo chumbado “na secretaria”. Era só querer.

      Mas em vez de reconhecer que um inimigo fez algo de correto você prefere interpretar como tendo sido “vergado” pelo “brilhantismo” de um simples aluno. Como se mesmo que o gajo fosse o aluno mais brilhante da história da universidade ele não o pudesse papar ao pequeno almoço.

      Enfim.

  4. Essa filiação do neoliberalismo ao fascismo tem muito que se lhe diga.

    É verdade que existem muitos pontos em comum com o neoliberalismo, mas também existem pontos em comum com o socialismo.

    Por exemplo, o estado fascista servia-se do mecanismo corporativo para fazer controle estatal de preços, controle do mercado, politicas autarcicas, politicas sociais, politicas de condicionamento ou fomento industrial e grandes programas de obras publicas de tipo keynesiano.

    Nada disto é liberalismo, é dirigismo estatal no mais puro estilo socialista (não marxista).

    O que se passa é que o fascismo era um regime hibrido que combinava aspectos dos dois lados e é fácil.agora os dois lados passarem o tempo a dizer que o outro lado é que é da familia do fascismo. Não estando nenhum dos dois correto, o fascismo era uma ideologia em si mesma, que se opunha tanto à esquerda como à direita liberal.

    De resto, a tentativa de conciliar as classes e terminar o antagonismo social negando a luta de classes como solução e usando por isso termos não antagónicos é anterior ao fascismo.

    Vem da social democracia e da doutrina social da igreja.

    Suponho que não querem chamar a isso tudo fascismo…

  5. Resumindo, direitistas como o José Rodrigues dos Santos andam cheios de tesão por descobrirem as semelhanças do fascismo com o socialismo. Os esquerdistas ficam cheios de tesão quando descobrem as semelhanças do fascismo com a direita tradicional.

    Do encontro destas tesões resulta uma orgia sado-maso sem que nenhum dos parceiros admita que o fascismo simplesmente não encaixa bem em nenhum dos buracos.isto provoca dores interpretativas que têm de ser atenuadas com quantidades copiosas de vaselina de hilpocrisiaz fazendo edição selectiva para fazer encaixar o fascismo todo puro e duro todo lá dentro no buraco do parceiro. Custe o que custar.

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