E desembarcaram nas praias

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 21/05/2021)

1 Às vezes há coisas — instantes, situações, imagens — que nos lembram que, como alguém escreveu, “não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência”. Aquelas imagens de uma voluntária da Cruz Vermelha, branca como a areia da praia de Ceuta, dando de beber a um emigrante magrebino, negro como a existência de onde vinha, acabado de desembarcar a nado na costa espanhola de Marrocos em busca de uma oportunidade de vida, depois pondo-lhe a mão no ombro e depois terminando abraçada a ele, é uma dessas imagens, um desses instantes que ficam para sempre.

Vale mais do que mil manifestações contra o racismo, do que mil discursos contra a indiferença: devia passar em todas as escolas onde há crianças para educar, em todos os bairros problemáticos e nos que não conhecem problemas, em todos os territórios ocupados e em todas as terras livres, em todos os Israéis do mundo, em todas as Terras Prometidas onde há seres humanos capazes de matar em nome de deuses e de crenças desumanas.

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E eles desembarcaram. Nos mesmos dois dias da semana, oito mil jovens rapazes sem futuro desembarcaram a nado nas praias de Ceuta e Melilla, os enclaves espanhóis de Marrocos, à procura de uma simples possibilidade de sobrevivência, enquanto a 300 km de distância oito mil ingleses desembarcavam nas praias do Algarve à procura, simplesmente, de uns dias de sol e de liberdade — igualmente sonhados e igualmente legítimos. Mas entre um e outro sonho, numa tão curta distância do extremo peninsular, há todo um abismo de humanidade e justiça para o qual o Estreito que nos separa é demasiado estreito para conter eternamente. Os tanques do Exército espanhol na praia de Ceuta, tentando conter a maré de emigrantes, são uma imagem absurda e um grito de alerta que só os loucos não escutam.

No entretanto, desejo que não ocorra àqueles infelizes tentar chegar a ­areias de Portugal: em lugar de uma vida minimamente decente, esperá-los-ia um trabalho em agricultura intensiva, em jornas de 12 horas por dia, a ganhar €200 ou €300 por mês e a dormir aos 16 em contentores, enquanto os nossos ministros da Agricultura, do Ambiente, do Trabalho e da Administração Interna esperam pelas conclusões dos grupos de trabalho que mandaram constituir para, na boa tradição da Administração Pública portuguesa, fingir que estão a tratar seriamente do assunto. E quando ao fim de um tempo já conseguissem entender algumas palavras de português, descobririam que aqueles patrões que os exploravam ou aqueles tipos que viam, cansados de nada fazer, encostados às paredes o dia inteiro ou bebendo mínis nos cafés, todos têm em comum uma mesma razão de queixa: a escassez dos subsídios que garantem ou o sucesso dos seus negócios ou a perenidade da sua ociosidade. Será que esta Europa vale uma travessia a nado, com risco de vida?

2 E então lá chegaram os tão desejados turistas ingleses. E de outras proveniências, incluin­do de países do Leste Europeu, onde, há poucos anos, Portugal era inacessível em termos de preços e agora já é barato. Segundo um estudo de uma agência inglesa, somos mesmo o terceiro destino mais barato da Europa, só atrás da Bulgária e da Turquia — depois de Erdogan ter afugentado de lá todos os turistas. Sem grande esperança, confesso, esperei que algum rasgo de lucidez, alguma lição, tivéssemos aprendido com a crise provocada pela pandemia: que não podíamos ter uma economia doen­tiamente dependente do turismo e um turismo doentiamente dependente da massificação e dos preços baixos. Mas não: não aprendemos nada. Basta ouvir falar os responsáveis pelo turismo algarvio para perceber que as suas balizas de sucesso continuam a ser as mesmas de sempre: número de voos, número de turistas, números de ocupação hoteleira. E, para garantir isso, fazem preços de saldo, enchem as praias até rebentar, deliciam-se com os turistas all included de piscina e frangos de aviário e sabotam os esforços meritórios dos que tentam remar contra a maré com ofertas de qualidade e preços correspondentes.

E vamos ver se esta política de “tudo pelo turismo, nada contra o turismo” não nos vai ainda sair cara em termos de saúde pública e não nos vai obrigar a recuar e a voltar para casa, depois de um tão longo e tão penoso caminho que tivemos de fazer até chegar a este espaço de liberdade — que é nosso, antes de mais alguém. Ouvi na televisão que “quase todos” os turistas ingleses que começaram a chegar à Madeira tinham feito testes à covid. “Quase todos” não é o mesmo que “todos”, e quando se vem do país que tem a maior incidência da nova variante indiana a diferença não é apenas semântica. E há dias, quando tive de me deslocar ao aeroporto da Portela, constatei que, só no slot entre as 10h e as 10h30, havia três voos da TAP em proveniência do Brasil, de onde é suposto só voarem passageiros por razões humanitárias ou similares: Rio, S. Paulo e Fortaleza. Sabendo-se que a rota Brasil é a única que a TAP pode explorar sentada, sem nada ter que fazer, pergunto-me se não haverá aqui um discurso oficial e uma prática por baixo da mesa.

3 O que lhe basta fazer sentada a TAP faz; quando tem que se mexer, de lutar pela vida, aí nada faz. Quando se tornou evidente que os números da pandemia em Portugal iriam fazer do país um dos destinos mais seguros da Europa, coincidindo com a abertura programada das restrições no Reino Unido, qualquer idiota à frente de uma companhia aérea voando entre os dois países teria, não logo, mas antecipadamente, montado uma estratégia para tirar partido da oportunidade. A Rya­nair fê-lo, anunciando, assim que Portugal entrou na “lista verde” do Reino Unido, uma operação, seguramente planeada com antecedência, para trazer 170 mil ingleses até ao Algarve durante o Verão. E logo no primeiro dia de liberdade trouxe quatro mil, acompanhada pela EasyJet, Monarch, Tui, etc. Vivendo em Inglaterra, Paulo Caetano escreveu no “Observador” que consultara a TAP e a Ryanair para marcar um bilhete para Faro: a Ryanair tinha uma infinidade de voos a partir de várias cidades inglesas e a preços de promoção; a TAP mantinha os preços de antes da pandemia, 10 vezes mais caros que os da Ryanair (e com o mesmo serviço de low-cost há muito praticado a bordo), o mesmo número de voos e nenhum directo para Faro, todos com escala em Lisboa. Lá, na TAP, a regra é simples: nada dizer, nada justificar, nada fazer, nada mexer. Esperar que, quando tiver tempo, Bruxelas se pronuncie sobre o plano de reestruturação da empresa, que está em análise há um ano. Bruxelas, como se compreende, tem mais que fazer e não vê razão para ter pressa. E a administração da TAP também não: todos os meses, em nome dos contribuintes, o ministro Pedro Nuno Santos faz-lhe chegar o indispensável cheque para pagar salários e fazer voar os poucos aviões que não estão em terra ou que não voam clandestinamente. Sem pressa alguma para evitar a sua falência, a única pressa que a administração da TAP e o ministro parecem ter é a de precipitar a insolvência da Groundforce — uma bravata fácil. E daqui a uns anos, numa comissão parlamentar de inquérito que tentará apurar como é que a TAP custou cinco ou seis mil milhões de euros aos contribuintes apenas para adiar o desastre, Pedro Nuno Santos haverá de dizer o mesmo que Mário Centeno disse esta semana na comissão parlamentar de inquérito sobre o Novo Banco: “Aprendemos todos uma lição para o futuro.” A pergunta, porém, é: de quantas mais lições destas precisaremos ainda antes de ter futuro?

4 Só alguém tão amoral e desprovido de escrúpulos como Benjamin Netanyahu conseguiria engendrar um plano tão maquia­vélico como o que ele montou para salvar o próprio pescoço, ao preço de pôr mais uma vez a Palestina a ferro e fogo. Primeiro, e com a colaboração do Supremo Tribunal de Israel, engendrou uma causa em que alguns dos seus sinistros aliados judeus ortodoxos obtinham vencimento na reivindicação de supostos direitos de propriedade milenares sobre casas onde viviam há décadas famílias de árabes israelitas, antes expulsos da Cisjordânia, ocupada ilegalmente por Israel desde 1967. E em Jerusalém Orien­tal, território sob administração oficial da Jordânia, e em relação a cidadãos que têm oficialmente a cidadania israelita. Tal como tinha previsto e era inevitável, isto conduziu a manifestações de árabes israelitas, que ele, imediatamente e seguindo o seu plano, mandou reprimir brutalmente, dando ordens à polícia para invadir, inclusivamente, uma mesquita. Com isso conseguiu logo duas coisas: que o Governo alternativo que se estava a formar ao seu, e que incluía o partido árabe israelita, caísse por terra face à repressão sobre os árabes e que, sendo assim, ele se mantivesse no poder e escapasse ao julgamento por corrupção de que é alvo. E, depois, o três em um ou o quatro em um: previu que o Hamas iria cair na armadilha da provocação e não iria resistir a mostrar que, a partir de Gaza, era a única entidade capaz de resistir à repressão de Israel sobre os palestinia­nos. E quanto mais protagonismo no terreno ganham os “terroristas” do Hamas mais enfraquecida politicamente fica a Autoridade Palestiniana e a OLP, a facção negociadora da solução “dois Estados” que os ultras de Israel nunca quiseram, nem querem. E, portanto, assim que o primeiro rocket provenien­te de Gaza subiu aos ares para logo ser destruído pelo sofisticado sistema antiaéreo de Israel Netanyahu esfregou as mãos de felicidade: Israel estava oficialmente em guerra e, como disse Biden, tendo sido atacado, tinha o direito de se defender. Eis o cenário ideal para o qual o Exército e os Serviços Secretos de Israel há muito se tinham preparado: um ataque patético do Hamas e uma resposta estudada, alvo por alvo, científica, logística, demolidora e para muitos anos. “A resposta”, disse um triunfante Netanyahu, “vai ser longa e forte”. E, no fim, ninguém se vai lembrar que ele estava à beira de perder o seu longo reinado no poder e de ter de responder na justiça por graves acusações de corrupção. Mas fica também um país mais invisível, mais inseguro, onde o próprio sonho sionista se transforma cada vez mais num pesadelo. Obra deste homem, Netanyahu.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


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5 pensamentos sobre “E desembarcaram nas praias

  1. Concordo que a foto é bela e deve ser o guia para as relações entre os povos.

    Mas para a narrativa da esquerda é fodido.

    Mas no problem, os governos e grandes empresas estão a investir milhões em fazer uma lavagem ao cérebro aos imigrantes para fazer odiar as populações de acolhimento.

    Daqui a uns a uns anos se calhar aquele homem vai odiar o povo que o acolheu e intrinsecamente a mulher que o abraçou graças à propaganda de ódio esquerdista contra “o homem branco” financiada pelo capitalismo.

    O que é preciso é dividir para reinar.

    Capitalistas e comunistas sabem-no bem e dão-se as mãos na tentativa de tornar impossível a convivência racial.

    Convém aos dois lados.

    O Mamadu do “temos de matar o homem branco” que o diga.

    Ele é bem pago pelos nossos governos e empresas capitalistas para instigar ao ódio.

  2. Que me desculpe o MST, leio-o sempre com muita atenção, embora nem sempre concorde, mas quem sou eu? Contudo, deste vez, vejo uma contradição no discurso de censura ao sistema: por um lado, queixa-se MST da perpetuação do turismo massificado no Algarve; muitos de nós sofremos com isso, excepto os algarvios, que ganham muito dinheiro. E muitos de nós gostariam de ter visto alguma alteração, ou requalificação, derivada de ensinamentos da pandemia, o Algarve é na verdade uma pérola, mereceria ser usada com carinho. Afinal é tudo o mesmo. E lamentamos. Mas, mais adiante MST censura a TAP por não se pautar pela agressividade da concorrência na disputa pelos preços dos voos: enquanto uns, a tão (des) amada Ryanair, organizam e multiplicam voos cada vez mais baratos, a TAP mantém-se nas suas rotas e preço altos. Pois é, sem Ryanair e Algarve em saldos, não vivíamos, neste recanto pacato.
    Também discuto o seu discurso sobre a vaga de emigração em Ceuta; altamente humanista, a foto foi bem escolhida, todos lacrimejamos e ignoramos o que é que eles, os emigrantes africanos, esperam de nós afinal (com sorte, as estufas da Andaluzia ou a apanha das framboesas no Alentejo). Mas MST ignora o que se passou que despontou uma onda de milhares de emigrantes, num dia, muitos deles a nado nas águas de Espanha: não terá sido a imediata retaliação do governo de Marrocos à recepção, num hospital espanhol, de um dirigente da Frente Polisario?

  3. Leio o que MST escreve com a merecida atenção mas desta vez tenho de aceitar que não esteve nos seus melhores dias. “The devil is in the details”, o diabo está nos detalhes, disse Nietzsche, e comecei a tropeçar neles desde o inicio do artigo. Passando directamente à parte em que o Autor zurze a Tap, diz ele que a maioria das companhias aéreas tinham há muito preparado planos para quando as fronteiras fossem abertas, “incluindo a Monarch”. Ora a Monarch desapareceu.,acabou, foi-se, deu o berro em 2017, até ressuscitar hoje pela mão de MST.
    A partir daqui, se eu tomava o que Autor dizia “with a pint of salt”, redobrei os meus cuidados.
    Mais à frente relata a indignação de um Paulo Caetano, que escreve no Observador, (o que por inerencia o torna senhor de uma superior inteligencia), e que vive em Inglaterra, por a Tap continuar a praticar preços exorbitantes e não ter voos directos para Faro. Ora Paulo deve ter chegado há pouco tempo para não saber que sim, que a Tap faz essa ligação, mas do Aeroporto de Gatwick. Também ainda não deve ter experimentado o aeroporto de Luton, a base da Easyjet, o pior da Europa, nem a inconveniencia das ligações para Stanstead, a base da Ryanair. E se quiser evitar andar carregando as malas pelas estações do metro, e ter de tomar comboios, tudo para pagar os tais bilhetes 10 vezes mais baratos, faça como eu e use Heathrow. You only live once.

  4. Viva pessoal.

    Querem ver a razão pela qual os africanos vêm morrer no mediterrâneo ?

    https://youtu.be/HXVA3YtqVX0

    Esta é a principal, mas a esquerda não fala.

    Os queridos lideres dos movimentos de libertação esquerdistas estão há 40-70 anos a saquear aquilo tudo.

    Depois em África não há dinheiro para escolas, hospitais, comida…

    Pudera,,, Como é que podia haver ?

    Mas para a esquerda é mais fácil e proveitoso insultar o povo português de nazi e instigar ao ódio racial, apesar do povo português até receber bem os imigrantes.

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