A imensa estupidez de querer derrotar a História

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 26/02/2021)

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Ciclicamente, há uns espíritos desocupados da esquerda pronta-a-consumir que se dedicam a escarafunchar a História de Portugal a pretexto da depuração racista e de um ajuste de contas extemporâneo com o passado colonial, como se alguém lhes tivesse deixado em herança a missão de o resgatar e limpar de todas as impurezas. Esquecem-se, ou ignoram, que a História não pode ser julgada pelos padrões éticos contemporâneos nem pelo comportamento de cada país ou sociedade visto isoladamente, fora do contexto da época. E esquecem-se, ou ignoram — ou pior, assumem, sabendo — que esse é o caminho mais rápido e inevitável para tornar inviável qualquer discussão séria, reduzindo-a a um debate sem sombra de grandeza ou finalidade, apenas contaminado por preconceitos ideológicos, onde uma esquerda arrogante e ignorante julga poder obter ganho de causa pela simples ameaça de excomunhão alheia. Mas onde apenas consegue fazer ressuscitar das catacumbas uma ultradireita nacionalista e igualmente ignorante e facciosa, saudosa de um Império que foi muito mais a nossa ruína grandiosa e pretexto para uma longa ditadura do que o orgulho pátrio que nos vendiam. E eis como os extremos se tocam e mutuamente vão envenenando o ar que respiramos.

De repente, caiu-nos em cima um Blitz de ajuste de contas com o Império, o colonialismo e as guerras coloniais, totalmente desfasado de circunstância e real importância, não se desse o caso de ambos os lados não encontrarem outra forma de fazerem prova de vida: a extrema-esquerda porque já não consegue inventar mais causas fracturantes; a extrema-direita porque nunca encontrou outras causas tão emotivas. Três coisas lhes serviram de pretexto: os arranjos florais dos jardins da Praça do Império, datados de uma Exposição Floral de 1961; a morte do Torre e Espada Marcelino da Mata, ex-comando nativo na Guiné; e uma estapafúrdia declaração de um deputado e ex-governante socialista, defendendo, num dia em que se esqueceu de tomar os calmantes, entre outras luminosas considerações, o derrube do Padrão dos Descobrimentos, esse símbolo do nosso colonialismo. OK, se tem de ser, vamos então a isso.

Sobre os jardins de Belém e os seus arranjos, outrora florais e entretanto desaparecidos, confesso não ter opinião nessa palpitante querela. Adoro jardins e adoro flores, mas se elas representam os distritos do antigo Império ou os símbolos dos clubes da 1ª Liga, é-me indiferente: confio no vereador Sá Fernandes, que tem obra feita em Lisboa, para se ocupar do assunto.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Sobre Marcelino da Mata, herói ou vilão, a questão é bastante mais séria e só quem viu ou viveu a guerra de perto saberá como todas as guerras são feias e como o são particularmente as guerras de guerrilha e de contraguerrilha. Os que estavam lá no mato idos daqui, tantas vezes borrados de medo daquele inimigo que lhes levava vantagem em conhecimento do terreno e técnicas de combate, mil vezes devem ter agradecido aos Marcelinos da Mata que lhes salvaram a vida, indo aonde eles não eram capazes de ir e não se preocupando então em saber, certamente, que métodos de contraguerrilha eles utilizavam. Da mesma maneira que não o perguntavam sobre as unidades de “Flechas”, da PIDE, que no mato faziam o trabalho sujo a favor da tropa portuguesa. Como não se preocuparam os 26 prisioneiros portugueses resgatados das masmorras de Sekou Touré, em Conacri, pelos comandos que Marcelino da Mata integrava, em saber se aquela operação era legal ou ilegal. Por isso, a pergunta se Marcelino da Mata foi herói ou criminoso de guerra não faz sentido: obviamente, foi ambas as coisas. O que faz sentido, já que querem remexer na História, é perguntar porque deixámos para trás, abandonados à sua sorte, os combatentes guineenses que tinham combatido ao nosso lado e que o novo poder do PAIGC se comprometera a integrar nas forças armadas do novo país independente, mas que acabaram, ou na miséria, ou fuzilados sumariamente. Ou perguntar três coisas ao coronel Vasco Lourenço, que arrolou agora como prova dos crimes de Marcelino da Mata (“facto” depois reproduzido por vários outros, como Daniel Oliveira, na última edição deste jornal) uma conversa a que terá assistido no “gabinete de um major”, em que Marcelino da Mata, regressado de uma operação, contou como entrara numa aldeia, atirara granadas para dentro das palhotas e, quando as mulheres e crianças saíram, fuzilou-as a todas: quem era esse major? Porque razão, ele, Vasco Lourenço, testemunha da confissão de um massacre desconhecido mas igual em gravidade ao de Wiriyamu, em Moçambique, se limitou a “retirar-se, incomodado”, em lugar de cumprir o seu dever de oficial e de homem de denunciar aquilo que tinha testemunhado? E porque só falou disso agora, depois de 50 anos de silêncio, e quando o suposto autor do massacre já cá não estava para, eventualmente, o contradizer?

Ah, e vamos às estátuas, aos “monumentos coloniais”. Mas, primeiro, deixem-me autobiografar-me no assunto. A seu tempo, que é o que interessa, fui, lúcida e convictamente, um opositor da guerra colonial e do tal Império — sobre o qual nunca tive dúvidas de que era, além de absurdamente tardio e inviável no tempo, profundamente iníquo e imoral para os povos colonizados e fonte de enganadora prosperidade do país, quando, de facto, só era benefício de muitíssimo poucos, o qual pagávamos com o sacrifício de vidas, de liberdade e da nossa integração no espaço europeu de prosperidade e justiça social. E, por isso, se sempre olhei com compreensão e respeito todos aqueles que, por opção, por profissão ou por falta de possibilidade de escolha, combateram nas guerras do Ultramar, também sempre respeitei e admirei os que, por convicção apenas, escolheram não combater numa guerra que não aceitavam e viveram no exílio vidas bem mais difíceis do que o discurso primário da direita imagina. Tantos anos passados, não mudei nada do que então pensava. Mas estou em paz com o assunto, com uns e com outros, e com a História — a nossa. Que, como todas as outras, teve momentos miseráveis e momentos grandiosos.

Quem não ousa sonhar ou compreender proíbe a memória dos que se atreveram. Têm medo de livros, de relatos, de estátuas, de museus. Para, no fim, acharem que ganharam a batalha contra a História. Pobres idiotas!

Mais tarde, já o Império era apenas uma saudade para uns e uma sombra para outros, tive ocasião de estudar detalhadamente e de escrever sobre um desses momentos miseráveis: o trabalho escravo nas roças de cacau e café de São Tomé e Príncipe, que descobri então, para espanto meu, durara até meados dos anos 50 do século XX: quase cem anos depois de termos abolido oficialmente a escravatura. Mas também descobri, 30 anos depois da independência, que São Tomé e Príncipe era um país falhado, como o são, com excepção de Cabo Verde, todos os que descolonizámos — e essa é, afinal, a pior herança que deixámos e o pior desmentido à nossa invocada “missão civilizacional” de 500 anos. Naquele país, liberto das amarras coloniais, com condições naturais únicas para ser um pequeno paraíso no Atlântico, tudo era mal gerido, tudo tinha sido destruído: as roças, todas as infraestruturas, os inúmeros hospitais que havíamos deixado (cada roça tinha o seu), desbaratadas ou metidas ao bolso dos governantes as generosas ajudas externas, e só numa coisa, aparentemente, se revelava o orgulho nacional: nas estátuas decapitadas dos navegadores portugueses que haviam descoberto as ilhas e que jaziam no terraço do antigo forte português, transformado em Museu da Resistência, ou coisa assim. E, então, ali me quedei sozinho, em silenciosa homenagem a João de Santarém e Pero Escobar, que em 1470 tinham cometido o crime, pelo qual depois as suas estátuas haviam sido decapitadas, de descobrirem aquelas ilhas desabitadas, no longínquo ano de 1470.

E o mesmo fiz diante do forte do Príncipe da Beira, na fronteira do Acre com a Amazónia — um dos sete fortes que o marquês de Pombal mandou construir ao longo da fronteira do Amazonas e aos quais o Brasil ficou a dever esse imenso território que hoje tão mal trata. Ali, diante das muralhas em granito de Portugal, cujas pedras atravessaram um oceano, subiram o rio Amazonas e foram depois carregadas até ao forte e empilhadas para formarem um quadrado de cem metros de lado, mais uma vez fiquei em silêncio porque não havia palavras que servissem. E nesse momento, tentando imaginar o que aqueles portugueses do século XVIII teriam suportado naquela empreitada, quantos teriam morrido de exaustão, de febres, de mordeduras de cobras ou de ataques dos índios — ou apenas de saudades — lembrando-me do que Joaquim Nabuco, o maior historiador brasileiro, disse (“nenhuma empreitada dos portugueses no mundo se compara à colonização da Amazónia”), li, e nunca mais esqueci, o que está escrito no frontispício da entrada do forte: “É vontade de El-Rei. Faça-se.” Assinado: Luís de Albuquerque, governador.

E o mesmo farei se um dia for a tempo de ainda contemplar a estátua de Gaspar Corte-Real, que a comunidade lusa ofereceu ao Canadá em 1965 e que está colocada em St. Johns, na Província de Terra Nova e Labrador, de braços cruzados, contemplando o oceano que o trouxe desde os Açores, a sua terra natal. Não sei a que propósito ou despropósito, na sequência do movimento “Black Lives Matter”, parece que a estátua simboliza agora “uma narrativa colonialista, eurocêntrica e de supremacia branca”. E o curioso é que o autor desta frase é um professor universitário de Toronto, encarregado dos “Estudos luso-canadianos” e de origem e nome português — uma espécie de Ascenso Simões norte-atlântico. Porém, a verdadeira história é outra: Gaspar Corte-Real era o filho mais novo de João Vaz Corte-Real, descobridor e explorador da costa norte-americana, do rio Hudson ao Labrador, em 1472, 20 anos antes de Colombo ter chegado à América. Em 1501, o seu filho Gaspar voltou a explorar a Terra Nova (Newfoundland) e o Labrador, desaparecendo sem nunca mais ser visto. E no ano seguinte, o seu irmão Miguel partiu à sua procura, na que então chamavam “a terra dos Corte-Reais”, e desapareceu também para sempre. E, sempre à vela, muito antes de o primeiro canadiano ter pisado a terra a que hoje chamam sua e de onde correram com todos os índios que puderam, os portugueses continuaram até aos anos 60 do século XX a saciar ali a sua sede de aventura e a sua fome de bacalhau. Pois que derrubem a estátua, só lhes fica bem!

Quem não sabe construir, destrói o que outros construíram. Quem não tem história para contar, apaga os sinais do que outros escreveram. Quem não ousa sonhar ou compreender proíbe a memória dos que se atreveram. Têm medo de livros, de relatos, de estátuas, de museus. E, tal como Estaline, hão-de acabar a apagar os personagens incómodos das fotografias. Para, no fim, acharem que ganharam a batalha contra a História. Pobres idiotas!

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

14 pensamentos sobre “A imensa estupidez de querer derrotar a História

  1. Bom, já que uma pessoa é a esquerda, imagino que uma pessoa também seja a direita, e, nesse caso, responda o MST porque quer expulsar portugueses. Não faz sentido? Pois, pois não.
    Mas, de facto, não existem causas fracturantes, passou mais uma e o povo continua sereno. Foi pena a demora em todas.

  2. Que o MST prima por vários exemplos de desonestidade intelectual, só será novidade para quem nunca leu artigos dele. Que já tenha mentido, também não é novidade. Mesmo assim vale a pena referir mais uma das mentiras que verteu neste texto, ao insinuar que tudo o que Vasco Lourenço tem para apresentar como prova de crimes de guerra de M. Mata seria a celebre conversa em que V.L. se retirou. Se MST fosse intelectualmente honesto, iria pesquisar sobre o assunto ( ou então pesquisou e resolveu mentir, o que não será de excluir ). Logo à partida, V.L. já referiu muito antes essa conversa, e escreveu sobre ela em várias ocasiões, e não há motivos para duvidar da integridade de V.L., quer se goste dele ou não. Já de MST…. Portanto, V.L. não denunciou apenas agora a actuação de MM, tendo-o feito várias vezes ao longo dos anos. Não é também a única testemunha das atrocidades de MM, havendo testemunhos, mesmo de outros militares, tanto das atrocidades como da forma como MM se vangloriava das mesmas. De notar que há várias condenações na ONU, à época, dos crimes de guerra em que MM participou. Para se ver da cepa de MM, passou os últimos anos de vida ligado ao PNR, que como se sabe está cheio de gente recomendável. Em resumo, MM é um criminoso de guerra, que por várias circunstancias se safou de bater com os costados no tribunal de Haia, talvez por ser apenas mais um entre muitos. Para quem defende que foi um herói condecorado, ou mesmo quem defende que foi criminoso e herói, como o MSR, aguardo pelo momento em que irão utilizar semelhante critério para os “heróis” condecorados da Alemanha nazi, alguns dos quais a prestarem “serviço” em campos de concentração. As medalhas e heroísmo também lavam mais branco aqui? É que no tribunal de Nuremberga bateram com os costados muitos “heróis” condecorados. Aparentemente há quem ache que eventuais actos de heroísmo são insignificantes quando se ultrapassam certas linhas quanto a atrocidades.

      • E porque não haveria de aplicar? Crime de guerra é crime de guerra. Até estão tipificados juridicamente. E, sendo a guerra sempre uma coisa estúpida e atroz, sei distinguir entre actos de guerra que se podem considerar “normais” no contexto, e quando se passa a linha para o lado da atrocidade injustificável. E essa linha, ao longo da História, penso que não haverá uma guerra em que num momento ou outro não tenha sido cruzada, infelizmente. Ninguém saí sem nódoa dessa esterqueira.

        • Caro Jorge.

          Justo.

          A apurar crimes de guerra deve-se apurar dos dois lados e não apenas do lado que não se gosta transformando o caso num aproveitamento para agendas politicas.

          E sei que na questão colonial os dois lados têm as mãos muito sujas.

  3. Excelente texto do Tavares.

    Penso que a maior parte dos tugas pensa assim.

    Respeitam e identificam-se com os heróis do passado, o que não quer dizer que subscrevam a aplicação actual dos valores de épocas passadas.

    Já eu sou mais independente e não me identifico com estas lógicas de grupo, a pertença a uma nação, raça, clube ou ideologia é mais ilusão que outra coisa.

    Mas preocupa-me o neo-racismo esquerdista que faz de mim um alvo a abater só por por acaso ter pele branca e não ter cartão do partido.

    Ora vejam lá se a malta do PC, tão preocupada com o registo criminal de todos os outros se procupa com os crimes de um Lenine ou Eduardo dos Santos… Até os encobre, como a nossa amiga estátua com aquela aldrabice descomunal de o Lenine ter derrubado o Czar e não o governo de esquerda democrática do Kerensky.

    É por isso que desconfio deles.

    A esquerda no poder promove a “fascista” qualquer pessoa que tenha duvidas ou faça oposição – e eventualmente reserva-lhe um espaço numa vala comum.

    A estátua e o seu cãozinho de guarda RFC até me promoveram a fascista por ter o descaramento de saber que o Lenine derrubou uma democracia de esquerda e não o czar.

  4. Marcelino da Mata ao serviço dos revolucionários do MPLA
    Muitos anos depois do 25 de Abril, o dito «criminoso» de guerra da Guiné, Marcelino da Mata, foi contratado em 1993 pelo MPLA para dar instrução à tropa do exército angolano. Durante seis meses formou duas companhias de comandos, deu-lhes instrução e depois levou-as para o mato, para fazerem a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional) em combate. E claro, ia sempre à frente, como nº 1.
    O Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas de Angola visitou-o, neste período, três vezes, e o Chefe do Estado-Maior do Exército, duas.
    Nesse exercício, infiltrou-se dentro de uma vila, onde havia 1.500 elementos da UNITA, sem eles darem por nada e abrindo fogo ao amanhecer: prenderam um general da UNITA.
    Como viram que as companhias criadas por Marcelino da Mata estavam bem treinadas, aproveitaram e colocaram-nas na guarda presidencial.
    Estava Marcelino da Mata há seis meses em Angola quando o “Expresso” publicou uma notícia a dizer que o Marcelino da Mata, que estava a dar instrução em Angola, às tropas do MPLA, era o mesmo que tinha combatido na Guiné contra o PAIGC.
    O Chefe dos Serviços Secretos Militares de Luanda veio falar com Marcelino da Mata, disse que todos gostavam muito do seu trabalho, mas que não podia continuar em Angola.
    Assim, mandaram-no regressar a Portugal – pagaram-lhe tudo –, escoltaram-no até ao aeroporto para terem a certeza que embarcava de regresso a Portugal.
    São as ironias da história!!!

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