Há uma diferença entre um “irritante” e um criminoso de guerra

(Francisco Louçã, in Expresso, 23/02/2021)

O PS e o PSD apresentaram em conjunto um voto de pesar por Marcelino da Mata. Passou algum tempo sobre a determinação de Mário Soares e o gesto de Sá Carneiro contra a guerra colonial, mas não tanto que possam ser esquecidos – ora, foi isso que os seus partidos fizeram. E fizeram-no de forma abjeta.


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No dia 23 de janeiro de 1973 a Assembleia Nacional viveu uma sessão tumultuosa, coisa rara num fórum de partido único, tradicionalmente conformado à obediência à ditadura. O facto é que alguns deputados, os da chamada “ala liberal”, criticavam o regime, abandonadas as vãs esperanças na sua renovação, sobretudo depois de terem perdido a batalha por uma nova lei de imprensa, o momento da sua primeira desilusão. Mas foi o caso da Capela do Rato que constituiu a gota de água que transbordou. Três semanas depois da prisão de alguns dos participantes nessa reunião, o deputado Miller Guerra, médico, bastonário da Ordem, levantou-se para condenar a repressão daquele protesto contra a guerra colonial. Casal-Ribeiro, um dos tenores da ditadura, insurgiu-se – e contam as atas o que então se passou:

“O Sr. Casal-Ribeiro: – Eu estava a perguntar a V. Ex.ª se acha bem e se concorda que na Igreja, ou em qualquer outro sítio, se discutisse ou se discuta a legitimidade da presença de Portugal no Ultramar.

O Orador (Miller Guerra): – Ora aí está uma pergunta objetiva e concreta e a que eu respondo também objetiva e concretamente: Acho, sim senhor. Não só na Igreja, como em qualquer outra parte.”

A assembleia agitou-se, houve a devida berraria, mas Miller Guerra prosseguiu, era um homem corajoso. Uns dias depois deste confronto, Sá Carneiro renunciou ao mandato de deputado. Miller Guerra faria o mesmo no início de fevereiro.

Miller Guerra viria depois a aderir ao partido de Mário Soares que, no seu exílio, prosseguia uma campanha de condenação da guerra colonial, e foi deputado constituinte pelo PS. Sá Carneiro fundou e presidiu ao PSD. Houve portanto um tempo em que figuras de referência do PS e do PSD não se coibiam de recusar a guerra colonial e que o faziam com valentia.

A denúncia da ditadura e da guerra não era para eles uma questão de opinião, uma espécie de jogo floral para ser apreciado em salões. Era uma questão essencial da democracia e do reconhecimento do seu próprio país. Quando Manuel Alegre, na Rádio Argel, condenava a guerra que tinha sofrido, era Portugal que se defendia da ditadura. Terá sido por isso que a democracia sempre reivindicou esta memória do processo que determinou o 25 de Abril. E houve quem não o esquecesse: como lembrou Manuel Loff, em 1992, quando o governo de Cavaco Silva aprovou um louvor ao inspetor-adjunto da PIDE Óscar Cardoso, “por serviços excecionais e relevantes” (Cardoso tinha sido o criador de um corpo africano de tropas especiais em Angola, e, mais tarde, organizou a defesa da sede da polícia política contra as forças armadas no 25 de Abril, tendo depois fugido para a Rodésia e África do Sul), o advogado Francisco Sousa Tavares, monárquico e antifascista, um dos que tinha ido para a porta do comando da polícia exigir a libertação dos presos da Capela do Rato, descreveu-o como “um insulto feito a Portugal e a cada um de nós”.

Chegados a 2021, o PS e o PSD apresentaram em conjunto um voto de pesar por Marcelino da Mata. Passou algum tempo sobre a determinação de Mário Soares e o gesto de Sá Carneiro contra a guerra colonial, mas não tanto que possam ser esquecidos – ora, foi isso que os seus partidos fizeram. E fizeram-no de forma abjeta: o texto da homenagem ao comando que combateu na Guiné usa três argumentos notáveis, que nunca foi ferido, que teve muitas medalhas e que assinou o telegrama dos oficiais spinolistas contestando o Congresso dos Combatentes do Ultramar em 1973, este para simular um laivo de antifascismo.

Para descer mais baixo, só faltaria explicitar o argumento displicente de muitos dos defensores da medalhação de Mata, o de que, tendo sido um criminoso de guerra, o que foi aliás confessado pelo próprio com gosto, teria sido também um herói. Sobre o mérito, Mário Cláudio, que foi ao tempo jurista no quartel-general de Bissau, conta que instruiu diversos processos-crime contra Mata, “pelo comportamento ilícito, e por vezes atrozmente delitual”, ou “de extrema gravidade”, e que estes terminaram sempre em arquivamento sumário, “por ordem superior sem rosto”, o que diz tudo. Talvez não imaginasse é que o PS e o PSD se juntam hoje para continuar a proceder a esse arquivamento sumário.

Parece razoavelmente óbvio que a agitação do CDS, primeiro, e do PSD, depois, precipitando-se para esta vertigem homenageante, tem unicamente que ver com a sua concorrência com o Chega, que naturalmente corre a ocupar o espaço da reivindicação da guerra colonial como glória nacional. Que isto contamine o PSD já é preocupante, considerando a traição a Sá Carneiro; que mobilize o PS, exceto alguns deputados que votaram contra e outros que se conseguiram abster, é um tremendo sinal dos tempos e não só do esquecimento de Mário Soares.

Mas o que este episódio também indica é que a História é aqui instrumentalizada como se tudo fosse indiferente, como se na guerra todos fossem criminosos de guerra, como se não houvesse lei. Ou que de noite todos os gatos são pardos e a bruma da memória tudo confunde, vítimas e criminosos irmanados numa trica perdida na selva. E isso tem consequências, pois determina o que será uma disputa permanente na nossa democracia, saber se a democracia tem justificação na corajosa recusa da guerra colonial e da opressão nacional, ou se, afinal, foi um abuso de militares cobardes que não queriam continuar a guerra dos Marcelinos da Mata e dos seus comandantes.

Naturalmente, há quem pense que se trata de uma mera questão institucional, cuja polémica durará um segundo. Esta atitude é perigosa. Se o ministro da Defesa, o Presidente e a maioria do Parlamento assim sugerem que isso da dignidade humana, das leis da guerra, da responsabilidade do Estado, das relações com os antigos territórios coloniais, hoje independentes, é tudo relativo à conveniência, Portugal fica diminuído. Haverá mesmo quem se lembre de que, perante um processo judicial que envolvia Manuel Vicente, dirigente angolano, houve autoridades nacionais que moveram mundos e fundos para resolver o “irritante” e fechar o assunto. Tratava-se de Angola (cuja justiça, aliás, agora investiga o mesmo Vicente por corrupção). Mas se for a Guiné e uma história de crimes de guerra, a coisa resolve-se com medalhas e uma homenagem no Parlamento português.


6 pensamentos sobre “Há uma diferença entre um “irritante” e um criminoso de guerra

  1. Lamentavelmente é a verdade, a extrema direita tocou violinos e o PSD + PS se puseram a dançar. A atuação do presidente foi determinante. Uma completa palhaçada que permitem ver que tantos cidades são saudados do império e do período colonial !!!

  2. O texto até está bem argumentado e faz pensar.

    É preciso é a gente abstrair-se de que foi escrito por um trostskista que idolatra uma figura que fez mil vezes pior do que Marcelino da Mata.

    Como comandante do exercito vermelho Trotsky banalizou uma politica de massacres de represália, fuzilamento de reféns etc.

    Uma táctica muito utilizada para diminuir as deserções no exercito vermelho foi o assassinato dos familiares dos desertores.

    E longe de ficar envergonhado aplicou essas tacticas á admnistração do estado e defendeu-as abertamente.

    Escreveu até um livro preconizando o terrorismo de estado como método de governo.

    E agora um trotskista está muito preocupado com os crimes do Marcelino.

    É como se o Mário Machado dos skins se mostrasse muito preocupado com os crimes dos trotskistas. A merda é a mesma.

  3. Pedro:
    Para mim o que diz não faz o menor sentido. Parece que pelo facto de Trotsky ter praticado crimes, Marcelino da Mata também pode praticar. E eu posso roubar? Depois em tribunal justifico-me com o argumento de que Átila era um malandro? Eu acho que tem de haver lógica nos argumentos. Noite que não estou a defender ninguém, só acho mal a sua falta bode lógica.

  4. Marcelino da Mata ao serviço dos revolucionários do MPLA
    Muitos anos depois do 25 de Abril, o dito «criminoso» de guerra da Guiné, Marcelino da Mata, foi contratado em 1993 pelo MPLA para dar instrução à tropa do exército angolano. Durante seis meses formou duas companhias de comandos, deu-lhes instrução e depois levou-as para o mato, para fazerem a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional) em combate. E claro, ia sempre à frente, como nº 1.
    O Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas de Angola visitou-o, neste período, três vezes, e o Chefe do Estado-Maior do Exército, duas.
    Nesse exercício, infiltrou-se dentro de uma vila, onde havia 1.500 elementos da UNITA, sem eles darem por nada e abrindo fogo ao amanhecer: prenderam um general da UNITA.
    Como viram que as companhias criadas por Marcelino da Mata estavam bem treinadas, aproveitaram e colocaram-nas na guarda presidencial.
    Estava Marcelino da Mata há seis meses em Angola quando o “Expresso” publicou uma notícia a dizer que o Marcelino da Mata, que estava a dar instrução em Angola, às tropas do MPLA, era o mesmo que tinha combatido na Guiné contra o PAIGC.
    O Chefe dos Serviços Secretos Militares de Luanda veio falar com Marcelino da Mata, disse que todos gostavam muito do seu trabalho, mas que não podia continuar em Angola.
    Assim, mandaram-no regressar a Portugal – pagaram-lhe tudo –, escoltaram-no até ao aeroporto para terem a certeza que embarcava de regresso a Portugal.
    São as ironias da história!!!

  5. Portugal está num lamaçal… chega-se à vergonhosa situação de criminosos escreverem o que querem num jornal. Ou nem sabem que ele é maoista, discípulo do maior cerimionoso e genocida da Humanidade?

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