As razões do PS contra os contratos coletivos

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 06/10/2020)

(Sim, a contratação colectiva sempre foi o calcanhar de Aquiles da Geringonça e continua a ser um grande pedregulho nas negociações do Orçamento . Na verdade, não se pode servir ao mesmo tempo a dois senhores: a Deus e ao Diabo. Mas há quem acredite que sim…🙂 

Comentário da Estátua, 06/10/2020).


Ao contrário de muita gente, creio que a razão do PS para defender desunhadamente o princípio da caducidade das convenções coletivas de trabalho tem uma sólida razão ideológica e, o que é mais importante, política.


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A norma da caducidade automática das convenções foi introduzida pela direita numa reforma laboral em 2003 e depois reforçada pelo PS em 2009, tendo-a agravado ao desvalorizar regras específicas de cada contrato que ainda permitiam a sua continuidade até à substituição por nova convenção. O resultado desta medida, combinada com outras restrições à ação sindical, foi fulgurante: em 2008 ainda foram abrangidos 1704 mil trabalhadores pela atualização dos salários convencionais, em 2011 já só foram 1203 mil e, em 2013, limitaram-se a 187 mil. Em cinco anos, o número reduziu-se de dez para um. Houve depois uma ligeira recuperação, mas sempre num patamar de perda de poder negocial da parte mais fraca.

Para o trabalho, o mundo mudou com esta medida. Maria da Paz Campos Lima, professora do ISCTE, apresentou estes números num estudo de 2016 e explicou essa estratégia patronal a que sucessivos governos deram provimento: “A caducidade das convenções coletivas requerida pelas organizações patronais significa, em geral, uma de duas coisas: ou força as negociações de novas convenções a partir do zero, uma ambição de longa data para alguns setores patronais, na perspetiva de definição de novas normas numa relação de forças que lhes seja mais favorável; ou permite, no quadro do paralelismo de convenções, substitui-las por outras mais favoráveis ao lado patronal, e nalguns casos assinadas por sindicatos minoritários”. Essas são as razões ideológicas e políticas do PS, é assim que entende as relações laborais e não faz disso segredo.

Ora, do que não se pode acusar esta estratégia é de ser incoerente. Por isso, e mais uma vez ao contrário de vários analistas, percebo porque é que o PS sempre recusou alterar esta regra, que afinal é também de sua autoria, e, quando convidado a discutir o tema no contexto de uma negociação para um acordo para esta legislatura, há um ano, fechou imediatamente a porta com estrondo. Comentadores alinhados com o PS saudaram essa determinação, abundando no tema tradicional: não se mexe no que resulta e seria uma “provocação” discutir tal assunto. Sim, têm razão, isto resulta, provocou uma desvalorização estrutural da contratação coletiva e, assim, contribuiu para as perdas de rendimento ao longo da década que correu desde a recessão anterior. Tornou-se uma norma de política estruturante.

Nesse sentido, o facto de o PS aceitar agora discuti-la, in extremis, é revelador de uma dificuldade e de uma oportunidade. Reconhecendo que a norma não deve continuar a ser aplicada em momento de recessão, o governo propõe a sua suspensão por um curto período de dois anos (mas ameaça retirar a proposta se não houver acordo em tudo o resto do orçamento). Só que a solução é esdrúxula, dado que a constatação do aumento da desigualdade dos rendimentos em Portugal sugere corrigir as normas desigualitárias, em vez de garantir a sua recuperação passado um curto período. Deste modo, voltar-se-ia sempre ao ponto de partida: se o PS entende que o princípio deve ser a vantagem patronal na negociação, o que agora estará a fazer é um subterfúgio passageiro; se a longa crise de uma década o reorientou para uma norma que proteja o trabalho, então a lei deve ser mudada, o que seria uma vitória do bom senso.

Admita-se que, como tantas vezes, se trata de uma mera jogada. O governo pretenderia assim acenar à esquerda sem desagradar demasiado ao patronato, dado que, afinal, neste período isto limita-se a adiar a caducidade para cerca de 40 mil trabalhadores. O problema é que, deste modo, se institui uma guilhotina: passada a suspensão, voltará a regra, business as usual. Por isso, duvido que os trabalhadores saúdem uma medida provisória que os incita a aceitar o regresso imediato a uma normalidade punitiva para o salário.


2 pensamentos sobre “As razões do PS contra os contratos coletivos

  1. A crise da contratação colectiva no dizer do Prof. Francisco Louçã reside no fim do princípio da caducidade das convenções colectivas de trabalho (no fundo replicando as posições desde há muito assumidas pelo BE, PCP e CGTP) instituído pelos Governos do PSD e PS.
    Permito-me discordar desta posição, parecendo-me que o “nó górdio” deste problema pretensamente insolúvel que vem persistindo desde há anos (pelo menos desde o CT/2003), resulta de outras duas questões essenciais, a saber:
    (i) Nível de representação dos trabalhadores
    Em primeiro lugar e, antes do mais, a crise da contratação colectiva em Portugal resulta da baixa representação dos trabalhadores nas empresas. Efectivamente de acordo com o estudo intitulado “Strikes, Employee Workplace Representation, Unionism, and Trust: Evidence from Cross-Country Data”(https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2923661), Portugal tem o nível mais baixo de representação dos trabalhadores no contexto da empresa da UE, não ultrapassando os 5% contra os 30% para o conjunto dos países. Por tipo de representação, em 2% das empresas em Portugal há associação sindical (9% no conjunto dos países) em 3% há comissão de trabalhadores (14% no conjunto dos países) e em 1% constata-se a existência dos dois tipos de representação (7% no conjunto dos países).
    A tendência para a diminuição da sindicalização e da representação dos trabalhadores que se tem verificado no nosso país, tem consequências não só na robustez das instituições de concertação e diálogo social, mas também e essencialmente na dinâmica da negociação e contração colectivas. Não é certamente por acaso que nos 2 países do ranking com maiores taxas de sindicalização (Dinamarca e Finlândia com 70% de taxas de representação) o processo decisório e aplicação das medidas em domínios como os das condições de trabalho, políticas de formação ou das reformas estruturais do mercado de trabalho, são assentes nas “convenções” estabelecidas entre os parceiros sociais, havendo um primado quase absoluto da negociação colectiva sobre a lei do trabalho.
    (ii) Celebração de acordos de empresa pelas comissões de trabalhadores
    O segundo factor de rigidez da contratação colectiva resulta, a meu ver, de a par da “dimensão sectorial” da negociação colectiva (CCT´s), não haver uma igual dimensão da contratação colectiva ao nível das empresas, que resulta da impossibilidade de as comissões de trabalhadores celebrarem “acordos de empresa”.
    Na realidade, o nosso ordenamento constitucional atribui aos sindicatos o monopólio da negociação colectiva (art.º 56.º/3 da CRP) e embora haja autores que defendam que o texto constitucional também legitima as comissões de trabalhadores a outorgar “convenções colectivas atípicas” (art.º 54.º/5), o certo é que o legislador ordinário continua a não lhes reconhecer o direito à negociação colectiva – o CT restringe às associações sindicais a capacidade para celebrar convenções colectivas (art.ºs 2.º, 443.º e 491.º).
    O CT/2009 (art.º 491.º/3) veio admitir a possibilidade de as associações sindicais delegarem em estrutura representativa dos trabalhadores (v.g., comissão de trabalhadores) o poder de negociar convenções colectivas em empresas com, pelo menos, 500 trabalhadores, cujo número foi reduzido pela alteração introduzida ao CT pela Lei 23/2012, para 150 trabalhadores. Trata-se, contudo, de uma pura ficção jurídica, na medida em que ninguém com um mínimo de compreensão da realidade das relações entre sindicatos e comissões de trabalhadores, conseguirá descortinar que um sindicato (quer da CGTP ou UGT) se predisponha alguma vez a delegar esse poder numa comissão de trabalhadores.
    Do meu ponto de vista, não parece defensável que a negociação colectiva ao nível das empresas se restrinja à celebração de acordos (AE´s) com as associações sindicais, afastando a negociação protagonizada pelas comissões de trabalhadores, atirada para a denominada “contratação colectiva atípica” desenvolvida à margem do sistema normativo, embora reconhecido na prática como fenómeno emergente no nosso direito laboral cuja expressão mais conhecida é o dos acordos da AutoEuropa.
    Defendo, por isso, a negociação a este nível – admitida por exemplo em países como a Espanha, Alemanha e França – é aquela que, em nossa opinião, melhor pode expressar a adequação da regulamentação contratual às necessidades organizativas das empresas, estando as comissões de trabalhadores em condições particularmente privilegiadas para implementar negociações com propensão para a eficácia erga omnes (aplicação a todos os trabalhadores independentemente da sua filiação sindical) de convenções colectivas.
    Em conclusão, por mais alterações legislativas que se façam (e o frenesim legislativo desde o Código do Trabalho de 2003 tem sido imenso com alterações pontuais, empíricas e não dotadas de um mínimo de estabilidade), sem que resolvam estes dois problemas – o da revitalização do associativismo sindical num sentido mais pujante e o da plena representatividade das comissões de trabalhadores na negociação de acordos de empresa – enganam-se aqueles – como o Prof. Louçã – que pensam a crise da contratação colectiva se resolve com a alteração legislativa ao princípio da caducidade das CCT`s.
    Nota: A título de exemplo, e só para se perceber a razão de ser da introdução do princípio da caducidade das CCT´s, o CCTV para a Indústria Química celebrado em 1977 (publicado no BTE, 1.ª Série, n.º 28, de 29-07-1977) ao longo dos 32 anos de vigência, a dita convenção manteve o seu texto original inalterado, excepto no tocante às cláusulas salariais e de expressão pecuniária (27 alterações).
    Alguém consegue defender – quando o mercado de trabalho esteve sujeito a tantas modificações substanciais – que um texto de uma convenção colectiva se mantenha durante 32 anos sem qualquer alteração do seu conteúdo inicial?

  2. Caro Camarada, não existem só o deus e o diabo, pois existem muitos mais tipo Dragões, Dinossauros. :P:D
    É simples, usem a vossa imaginação e não naveguem sempre pelos mesmos mares, o universo é infinito, logo, quem sabe, tudo é possível. (((((-; ;-)))))

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