Vem aí o fascismo?

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 22/08/2020)

Miguel Sousa Tavares

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1 Nas férias, andei tão distraído quanto convém a quem está de férias, mas não o suficiente para deixar de ler jornais ou seguir notícias, o meu vício mais incurável. Com Lisboa a uma profiláctica distância, lá acompanhei o que de mais palpitante parecia estar a acontecer na capital, esgotada a indignação pública pela morte de umas dezenas de cães e gatos queimados num “centro de acolhimento” para animais vadios, dos vários criados por força da influência do PAN sobre a hipocrisia dos seus pares na Assembleia da República. Tomei assim conhecimento de novas e ocasionais demonstrações de vida da nossa extrema-direita anti-sistema, as fotografias daquela meia dúzia de idiotas a brincar ao Ku Klux Klan e a notícia de umas ameaças de morte enviadas por e-mail a três deputadas e ao dirigente do SOS Racismo, Mamadou Ba. Nada de grave, pensei para comigo: a extrema-direita a sério é muito mais do que isto, incomparavelmente mais — mais gente, menos folclore e mais organização, menos ameaças e mais actos. Mas parece que estava enganado. Imediatamente, todos os responsáveis do país foram chamados a pronunciar-se publicamente sobre a “onda de racismo e chauvinismo” que varria Portugal de lés a lés; editorialistas inflamados esgotaram os adjectivos em apelos lancinantes contra a marcha imparável da extrema-direita antidemocrática, contra André Ventura — identificado como o líder oculto-óbvio de toda esta onda — e contra Rui Rio, o seu cúmplice; leitores obedientes encheram os jornais de cartas a proclamarem-se prontos para o combate; movimentos de várias origens e espécies logo convocaram uma manifestação para o Largo de Camões, finda a qual se zangaram uns com os outros; e, dos seus lugares sempre misteriosos, imergiram os inevitáveis abaixo-assinados, eterno asilo intelectual dos simples de espírito e dos esquecidos do público, para garantirem a todos nós, com a credibilidade da sua assinatura, que tudo isto era uma ameaça terrível e tudo isto estava intimamente ligado: racismo, xenofobia, machismo, homofobia, populismo. E, no fim da história, o regresso do fascismo, que é aquilo que, garantem eles, nos espera ao virar da esquina.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Porém, após mais de uma semana passada numa Lisboa quase deserta, magnificamente disponível não apenas para os turistas e os ciclistas, queria descansar os lisboetas que ainda estão de férias e ausentes (e suponho que o mesmo é extrapolável para o resto do país): sosseguem, não vi sinais alguns de tragédia à vista. Não vi negros discriminados, mulheres maltratadas, gays ou lésbicas olhados de viés, imigrantes mandados de volta a casa. Não vi um polícia com ar feroz em cada esquina (aliás, quase não os vi), não vi ninguém com ar de bufo, não vi seccões de tipos vestidos de blusões negros e bastões escondidos, não vi medo nos rostos de ninguém, pelo contrário: ou muito me engano, ou vi gente, portuguesa ou estrangeira, com um ar descontraído, tranquilo, feliz, sem pressa, sentados nas esplanadas, nos cafés, nos jardins, caminhando pelas ruas, namorando, conversando, rindo — apesar das máscaras, apesar da pandemia. Digo-vos, com a experiência de quem conheceu o fascismo e várias ditaduras: alguém nos mente. Alguém, sentado numa redacção de jornal ou num gabinete de estudos sociais de numa qualquer universidade, anda a vender-nos um país que não existe nas ruas mas de cuja suposta existência talvez dependa a deles. Mas isto é uma coisa séria. O fascismo, o racismo são coisas sérias. E não se brinca com coisas sérias.

É evidente que há racismo em Portugal ou entre os portugueses, como existe em todos os países ou entre todos os povos. Mas decretar, para valer como verdade inquestionável, como alguns pretendem, que Portugal é um país racista é tão estúpido e tão inútil para ajudar a resolver o problema como jurar o seu contrário. O racismo é um fenómeno muito mais complexo e individual do que a simples educação, classe social ou ideologia permitem explicar. Há gente altamente educada que é racista, assim como há vastas camadas populares racistas, e há gente de esquerda — até mesmo dos que assinam manifestos e vão a manifestações — que é racista sem o assumir ou sem o saber. E há quem não seja racista com os negros e o seja com os ciganos, os árabes ou os asiáticos, assim como há negros que são militantemente racistas com os brancos. Proclamar que toda a polícia é racista ou, como já vi dito, que, no limite, todos os brancos são racistas pelo simples facto de serem brancos são argumentos de terra queimada que apenas servem para extremar os campos e empurrar gente para os braços da extrema-direita. É o mesmo tipo de argumentação, agora tão em moda e em modo quase imperativo, dos que querem reduzir a fabulosa história das navegações portuguesas a “achamentos” do acaso, logo aproveitados para o único fim da exploração das terras descobertas através do trabalho escravo.

Este é o tipo de discurso de que a extrema-direita se alimenta e que alguns lhe servem à medida. Proclamar que quem não reconhece Portugal como um país racista é um negacionista, que quem se atreve a dizer que há problemas causados pelos ciganos dentro e fora das suas comunidades é um populista seguidor de André Ventura, que quem se opõe ao derrube das estátuas dos descobridores ou quer celebrar as datas marcantes do ciclo das Descobertas portuguesas é um defensor do esclavagismo, que quem não gosta do estilo arrogante da deputada Joacine é um chauvinista que a quer mandar para a terra dela, e por aí fora, seguindo o index do histericamente correcto estabelecido e a cada dia acrescentado, tudo isso tem como único efeito útil irritar cada vez mais gente e levar alguma dela a sentir-se tentada a procurar refúgio onde os demagogos lhe dizem que estão os “verdadeiros valores portugueses”. Vamos do 8 ao 80, do mais imbecil patrioteirismo, que nos leva a celebrar como heróis nacionais os que as redes sociais e as revistas enaltecem e o Fisco perdoa, até ao masoquismo patriótico militante, que propõe como código genético para cada português uma herança de crimes espalhados pelos cinco oceanos e ainda por expiar.

Mas vivemos hoje. E, hoje, o que há a fazer contra o racismo é simultaneamente simples e difícil: aplicar as leis que temos, que são adequadas e suficientes, sem desculpas nem hesitações, mas também sem juízos de valor pré­vios; educar, discutir e convencer; ensinar a mais-valia de um país que é ao mesmo tempo de emigração e de acolhimento, para quem a descoberta do “outro” foi sempre um motivo de avanço e nunca de temor; e resistir à tentação suicida de reduzir os adversários ao silêncio e à clandestinidade, que é justamente o que eles querem, em lugar de os expor à luz crua da sua bestialidade e do seu incurável ridículo.

E, quanto ao fascismo, recomendo uma simples passagem pelos livros de História. Até àquele marco que foi o dia 1 de Maio de 1974, quando Portugal inteiro estava na rua, assinalando o momento em que todos os portugueses, sem excepção, passaram a ser oficialmente antifascistas.

2 Umas horas a assistir à Convenção Democrata online deixaram-me profundamente acabrunhado: ou alguma coisa de inesperado acontece até lá ou Donald Trump vai ser reeleito em Novembro, sem precisar sequer de fazer batota. É inacreditável como, após quatro anos de um saltea­dor na Casa Branca, os democratas não conseguiram produzir melhor do que um candidato a Presidente incapaz de mobilizar um moribundo a quem prometesse mais 10 anos de saúde e uma candidata a vice que é mulher e negra, ponto final. A indisfarçável incapacidade demonstrada pelos sucessivos discursos dos notáveis do partido em explicar porque deveria Joe Bidden ser Presidente não deixou lugar a ilusões: já vi enterros mais entusiásticos.

3 Para adaptar o antigo, e agora abandonado, Hospital Militar de Belém a hospital de retaguarda para doentes covid, orçamentou-se uma verba de 750 mil euros, apenas para 20 camas. E por essas 20 camas passaram 60 doentes, mas a conta final acabou nos 3 milhões: 46 mil euros por doente ou 150 mil por cama! Que mais irão as nossas Forças Armadas conseguir fazer para se desprestigiar?

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


5 pensamentos sobre “Vem aí o fascismo?

  1. -Artigo 100% correcto.

    A esquerda e o politicamente correcto estão obstinadamente a tentar criar uma guerra racial a partir do nada.

    Os racistas brancos hoje em dia não passam de uma pequena minoria desprezada pela maioria da população e bastante apertada pela polícia e os tribunais.

    Mas os psicopatas do politicamente correcto falam como se as divisões panzer desfilassem nas ruas e fossem aplaudidas pela maior parte da população.

    Dir-se-ia que até o desejam, para lhes justificar os delírios e os subsídios do estado para grupos como SOS racismo e para os “académicos” e activistas que alimentam esta farsa sinistra. De facto o ambiente de confrontação racial só pode ser bom para os racistas de direita.

    O clima de mal estar racial que os skins tentaram mas nunca conseguiram criar porque a polícia “racista” e o resto da população branca “racista” sempre lhes deram para tràs, está a esquerda e o politicamente correcto a criar por eles.

    Resta saber, para além das modas ideológicas, qual é a agenda.

  2. Por falar nisso, contei os gajos das fotos da manifestação das massas fascistas à porta do SOS. Os tais da “onda imparável do fascismo que varre Portugal de lés a lés”.

    Eram catorze.

    É mesmo de “país racista” não é ?

    As próprias “manifestações” fascistas de dez ou vinte gajos são bem a prova que o “país racista” é a maior calúnia já inventada pela esquerda e pelo politicamente correcto contra o povo português.

  3. Cinco estrelas para o ponto Nº 1 que é também a essência do artigo. Na “mouche”!
    Já não concordo com o comentário sobre a Convenção Democrata a que assisti praticamente na íntegra através da CNN. Joe Biden pode não ser (não é!) uma figura carismática que ponha audiências de pé, mas ficou bem patente a diferença entre ele e o “incumbent President” cujo nome nunca foi mencionado por JB, em questão de valores, de atitudes, de intenções, de comportamento, de sanidade mental! E reduzir a figura escolhida para Vice-Presidente apenas a “candidata a vice que é mulher e negra, ponto final” é extremamente depreciativo e diria até de mau gosto.
    Resumindo, o artigo teria Nota 10 se o Miguel se tivesse ficado pelo ponto 1.

    • Seria de mau gosto se não fosse a promessa de escolher uma mulher e espectactiva generalizada de que fosse negra, quer devido ao ano, quer devido aos incumbentes. MST nunca é de fiar, mas a escolha não surpreende muito a quem estivesse a seguir a corrida.
      Agora que não entusiasma, não entusiasma, ainda por cima quando logo a seguir vem a campanha falar na importância do equilíbrio orçamental.

  4. O fascismo já veio há muito tempo, mas parece que só agora os portugueses acordaram ou vão acordando. A democracia made in usa Portuguesa e capitalista sempre foi uma farsa, não quero dizer com isto que o comunismo seja a solução, pelo contrário, existem outras soluções democráticas, mas para que tal aconteça é necessária uma reformulação da sociedade nacional, passando eventualmente pelo abandono da CEE, que apenas serve para enriquecer os mercados e os países ricos da mesma. O fascismo a que me refiro é o modelo financeiro que é gerido a nível mundial desde o fim da segunda guerra, sempre pelos mesmos oligarcas, claro os mais ricos do mundo, e que através do fmi e do sistema baseado no dólar forma submetendo todo o mundo ao seu “rico” império. O plano marshall foi a forma de dominar a europa, inicialmente, depois com toda a gigantesca máquina de manipulação e propaganda, sempre com o pretexto de salvar o mundo dos comunistas, os americanos foram ao longo das décadas finais do séc XX, influenciando e moldando o mundo com base no “sonho americano”, engraçado que foram os nazis que até tendo inventado o 3D foram pioneiros no modelo de propaganda eficaz através dos filmes da sua suposta raça superior a convencer a sua população a aderir à causa. Lá está tanto os russos como os americanos sempre quiseram dominar o planeta, mas os estados unidos ao ajudarem e dominarem a europa ocidental, adiantaram-se e através da “cultura” fascinaram e dominaram as gerações futuras e assim continuam, com o modelo da internet criado pelo Darpa que se dedica a criar várias formas de armas. Ou seja a internet começou por ser uma rede que tinha o factor positivo de o mundo ser uma aldeia global, mas através dos sistemas de captura de informação logo no inicio do novo milénio com o echelon e mais tarde com métodos mais avançados e desenvolvidos através da nsa entre outros sistemas de suposta segurança, começou assim a entrar na casa de todos sem autorização para aos poucos poder formatar de acordo com os gostos de cada um a quantidade enorme de porcaria em formato séries e filmes que supostamente são cultura e são positivos para o desenvolvimento dos jovens. O excesso de sexo e violência que predominam na internet, nos filmes e na cultura americana assim como o uso de drogas são no fundo uma forma esclarecedora de demonstrar o que é o sonho americano. Os estados unidos são o país que mais guerras criou ao longo dos seus 2 séculos de história e idolatram a cultura do vencedor e claro os outros países poderosos querem ser como eles.
    O Facismo é a bomba atómica. o facebook, a violência gratuita, o excesso de pornografia e tantas outras coisas que os americanos criaram e assim viciaram o mundo inteiro a seu belo prazer. Por isso não se admirem se o Reich Trump ganhar outra vez e eventualmente usar a bomba atómica, porque afinal eles acreditam que são de uma raça superior, e claro, tantos assim o pensam no mundo, por terem falta ou não terem tempo para pensar, educar-se ou até ter uma consciência.
    A única coisa que pode salvar o mundo seja da guerra ou das alterações climáticas, são as futuras gerações, e claro não será a inteligência artificial, porque de plástico está o mundo cheio, e claro o modelo a seguir não pode ser este que existe desde o nascimento da onu, mas sim um novo, sem influências chinesas, americanas ou russas. A Europa se existisse como uma comunidade podia ser uma boa referência, mas temo, que as forma colonialistas de se ser e pensar nunca desapareceram, pelo contrário, apenas se alteraram, por isso, lá está as revoluções do futuro não passam nem pela esquerda, centro ou direita, mas pelos jovens, quando eles perceberem que podem e devem mudar o mundo e deixarem o “sonho americano” enterrado, já que glorificar o sexo as drogas e o rock and roll, mais a guerra, é uma forma moderna de se ser zombie. E claro se as tecnologias não deixam os jovens pensar, então assim o rebanho de escravos será mundial, e o futuro será realmente uma qualquer distopia onde se cura tudo com drogas da farmácia, o mundo será maravilhosamente plástico, viciado e sem essência de qualquer espécie.

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