Sobre a liberdade de expressão e outras liberdades

(Carlos Esperança, 11/08/2020)

Engana-se quem pensa que é apenas o código penal a limitar a liberdade de expressão, no caso português, honrosamente liberal, e com jurisprudência que a privilegia.

Os constrangimentos sociais são suficientemente fortes para condicionar a liberdade dos cidadãos. A tradição é a anacrónica desculpa para a limitar e até o maldito aforismo, “A nossa liberdade acaba onde começa a dos outros”, serve para intimidar quem não desiste da sua defesa.

As ideologias políticas e, sobretudo, as religiosas têm tendência a ser totalitárias. Não é a fé individual que está em causa, é o poder institucional das religiões. O proselitismo é a tara monoteísta que começou com Paulo de Tarso e impregnou o cristianismo e a mais implacável das três religiões do livro, o Islão. Só escapou o judaísmo que tem a loucura exclusiva, ser detentor da escritura do Notariado Divino, domiciliado em parte incerta, que lhe confere direitos imprescritíveis sobre a Palestina.

O que seria da liberdade de expressão se os crimes e os pecados fossem a mesma coisa, se a interpretação de idiossincrasias divinas, pelos funcionários privativos de cada deus, fosse acolhida pelo código penal de cada país? Não teríamos democracias, estaríamos sujeitos a teocracias, não teríamos a civilização moldada pela secularização, mas uma ditadura clerical.

Há crenças que odeiam a música, a dança, o corpo da mulher, as esculturas, a carne de porco, a democracia e os direitos humanos. Com que legitimidade temos de abdicar da civilização e dos direitos individuais para não ferir as suscetibilidades beatas de quem a fé embrutece e a sede do Paraíso desvaira?

Os direitos humanos enunciados na Declaração Universal (DUDH) sobrepõem-se aos interditos que cada um considera sagrados para si próprio, sem direito a impô-los a quem é indiferente às crenças ou perfilha uma crença diferente.

Todos os crentes pensam que a sua fé lava mais branco do que a fé da concorrência e a Europa sabe por dolorosa experiência o que foi a violência das guerras religiosas até à Paz de Vestefália que pôs termo à Guerra dos Trinta Anos.

Só a laicidade sem tibiezas pode barrar os desmandos prosélitos que religiões exógenas à Europa dos últimos séculos introduziram no tecido social da nossa civilização onde as religiões tradicionais foram acalmadas pela repressão política sobre o seu clero.

Não se pode permitir o regresso à competição violenta no mercado da fé. É tão legítimo ridicularizar o ateísmo como qualquer religião. É o direito à liberdade de expressão.


8 pensamentos sobre “Sobre a liberdade de expressão e outras liberdades

  1. Comentário enviesado na sua parcialidade.
    Se é certo que denuncia a propensão totalitária latente no fenómeno religioso, propensão essa fundada no exclusivismo da verdade dogmática proposta, também é patente que omite a evidência histórica de que os mais sangrentos totalitarismos pretenderam substituir ou banir a religião, em nome de laicismos dogmáticos, portadores de verdades exclusivas.
    A experiência do nazismo e do comunismo impõe-nos a humildade de reconhecer que não basta que a laicidade sem tibiezas impeça os desmandos da religião. Impõe-nos igualmente a imperativa necessidade de não permitirmos que o laicismo dogmático atente contra a liberdade de fé individual e a autonomia institucional das religiões. O normativo legal que salvaguarda essa liberdade e autonomia não é favor que o Estado laico conceda a título provisório e condicionado pelo bom comportamento do beneficiado, é património civilizacional da sociedade plural e democrática. O mesmo direito à liberdade de expressão que o autor invoca para pedir que não se permita o regresso à competição violenta no mercado da fé, deve ser exercido para lembrar que devemos impedir a aceitação tácita da competição violenta no mercado do racionalismo “anti-fé”.

    Francisco Ribeiro

    • Concordo na generalidade mas no caso do nazismo é preciso relativizar,

      O nazismo, embora laico era extremamente favorável à religião e combatia o ateísmo.

      A maioria do pensamento e propaganda nazi está cheio de referências a deus.

  2. “Todos os crentes pensam que a sua fé lava mais branco”, e todos os laicos acreditam piamente que o seus Códigos Civil e Penal são muito mais justos que a mais suave das sharias (…) embora saibam que no ocidente laico 5 mulheres são mortas às mãos dos maridos, todos os anos, por cada milhão de habitantes. Isto, só para falar em violência doméstica…

    • É um bocado diferente dos códigos penais religiosos que ordenam o espancamento e a morte das mulheres por adultério ou por desobediência ao pai ou ao marido.

      Nas sociedades religiosas os crimes de “honra” muitas vezes não são crimes, são deveres familiares.

  3. O cidadão ocidental tem o cérebro bem lavado quanto à excelência, ou o seu contrário, das sociedades islamitas e das sociedades comunistas.

    Nos países islâmicos também se lavam cérebros contra as sociedades ocidentais, que se assumem basicamente cristãs. Podem usar, e usam, argumentos bem fortes, como a pedofilia no contexto das igrejas, ou a incapacidade das sociedades laicas de controlar a corrupção (as leis estão feitas para que ela prolifere*), controlar a violência racial, doméstica, no futebol, etc. Não necessitam de se esforçar muito, basta lerem diariamente o Correio da manhã e seus congéneres inglês, alemão, francês.

    * O recente escândalo no Novo Banco, da venda de dezena de milhares de propriedades ao desbarato com avultados prejuízos para os contribuintes portugueses é um bom exemplo das portas abertas à corrupção. Basta ler com critério os códigos de IMT, IMI e Mais-valias, para compreender aonde estão essas “portas”.

    No Irão quem manda são os ayatolas, sem escrutínio popular, no ocidente são os banqueiros…

    • Olhe que não é bem isso; o cidadão ocidental tem o cérebro bem lavado para acreditar que só há duas escolhas: ou exactamente o que temos, ou a barbárie, e que qualquer pequeno desvio nos leva ao colapso do que temos. Só quando o velho cai de podre é que aparece o novo, como dizia Gramsci.

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