Já só faltava o ataque da Alemanha à União Europeia

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 12/05/2020)

Quando se vive uma confrontação entre tribunais, ao mesmo tempo que está bloqueado o programa necessário para a resposta à crise, o fingimento é demasiado percetível e torna-se um motivo suplementar de instabilidade. Para o dizer com todas as letras, não se encontra um dirigente ou uma instituição europeia em quem se possa confiar.


A decisão do Tribunal Constitucional alemão sobre o programa de compras de ativos pelo BCE abre duas frentes de incerteza e instabilidade. Nenhuma delas parece ter solução.

A primeira é a da legitimidade, ou do poder. Ao reivindicar o direito de avaliar e restringir o cumprimento das regras europeias, o Tribunal alemão está a disputar um poder supranacional que o opõe diretamente ao Tribunal de Justiça da União Europeia, que aliás reagiu secamente alegando a sua primazia.

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De facto, este choque não tem travão à vista: se Berlim aceitar que a Alemanha perdeu mesmo a soberania sobre o Bundesbank, terá de desconsiderar o seu próprio Tribunal Constitucional, não sendo certo que o possa fazer; se seguir os ditames do Tribunal, entra num túnel que só tem uma saída. A razão está nos números. O balanço do Eurossistema, o BCE e os bancos centrais que inclui, era de 10% do PIB da zona euro em 2007 e supera agora os 40%. Disso, o Bundesbank detém 550 mil milhões de euros em títulos de dívidas públicas, o equivalente a metade da economia espanhola. Se for forçado a vendê-los, temos uma tempestade financeira. E o maior banco central nacional desligar-se-ia do BCE, ou seja, o euro estaria condenado. As duas consequências são de tal ordem que é provável que os agentes da crise procurem ganhar tempo.

Só que ganhar tempo, mantendo o impasse, é também uma escolha perigosa. Aumenta a incerteza jurídica. A decisão do Tribunal alemão demorou cinco anos. Agora acelera-se tudo: dentro de três meses terá a resposta das autoridades europeias, ou a não resposta. Entretanto, deve ser lida com atenção a fundamentação do Tribunal alemão, que recusou o argumento de peticionários que queriam anular a participação no programa de compra de ativos por violar as regras de disciplina orçamental. Em contrapartida, evocou unicamente uma suspeita sobre a proporcionalidade do programa, ou seja, exigiu que o BCE esclarecesse se o montante é adequado e se os procedimentos são prudentes. Neste caso, a ameaça está mais na demanda ao BCE do que na questão em si.

Em todo o caso, é uma situação sem saída: se o BCE não responde, o Tribunal alemão fica forçado a agir; se aceita explicar-se, prova que se submete a uma jurisdição nacional. É por isso que a Comissão intervirá tentando transformar a quezília numa disputa sobre a força legal de cada instituição, o que, curiosamente, exigirá sempre que a parte negada, o tribunal alemão, aceite que não tinha poder para iniciar o processo. Ou seja, este recuo dificilmente acontecerá. Ora, depois disto, vão chegar ao Tribunal de Karlsruhe novos pedidos de impugnação do programa atual de injeção de liquidez por causa da covid, que foi decidido num contexto em que as regras orçamentais foram suspensas, o que torna difícil repetir a sentença anterior.

É verificável que não há hoje, nem houve nos últimos anos, uma monetarização direta das emissões de dívidas nacionais, embora ela ocorra indiretamente. A recusa dos coronabonds também evita esta dúvida legal sobre a atuação do BCE. Mas o BCE voltará sempre à berlinda, dado que lhe caberá sustentar o essencial da resposta europeia, por mais mitigada que ela seja.

A somar ao seu próprio programa, será o BCE a comprar dívida emitida pela Comissão se os mercados financeiros não se entusiasmarem, e esta querela só os pode fazer retrair. Por isso, é o momento mais arriscado para criar esta incerteza, a somar às guerrilhas dentro da Comissão e do Conselho para definir um programa financeiro na emergência. Temos pela frente um verão quente no triângulo entre Bruxelas, Frankfurt e Berlim.

Resta a segunda frente da instabilidade. É que há uma solução, a de sempre, o fingimento. John Weeks, professor emérito de uma faculdade de Economia em Londres, lembrava esta segunda-feira que sempre foi assim que se fez o progresso institucional da UE. Lembrava o exemplo das regras orçamentais, que foram aprovadas com a promessa da consagração simultânea de um pilar europeu dos direitos sociais. As regras orçamentais foram entretanto integradas na legislação europeia, enquanto o pilar social sobrou como uma declaração que não é juridicamente vinculativa.

Perante uma dificuldade institucional, este tem sido sempre o remédio europeu, fingir, multiplicar a retórica, garantir benesses e seguir adiante. O problema é que, quando se vive uma confrontação entre tribunais, ao mesmo tempo que está bloqueado o programa necessário para a resposta à crise, o fingimento é demasiado percetível e torna-se um motivo suplementar de instabilidade. Para o dizer com todas as letras, não se encontra um dirigente ou uma instituição europeia em quem se possa confiar.

Um pensamento sobre “Já só faltava o ataque da Alemanha à União Europeia

  1. Off.

    Condomínios de imigrantes

    A secretária de Estado para a Integração de Migrações, a sra.
    Cláudia Pereira, na sua entrevista a este jornal, revela-se
    mestre na nobre arte de não dizer nada (tudo está a ser
    “articulado”, “trabalhado”, “reformulado”, vai repetindo). É
    uma louvável atitude. A política, nestes dias, é para quem não
    se expõe demasiado. Mas há um momento em que a sra.
    Cláudia Pereira escorrega. Depois de uma ideia digna do
    Professor Pardal (encaminhar para a agricultura os imigrantes
    que estavam a trabalhar no turismo), refere que já visitou uns
    condomínios de contentores onde alguns estão alojados.
    Ficou espantada: “Tive a oportunidade de visitar algumas
    dessas habitações e tinham todas as condições, uma delas
    tinha ginásio, outra jogos…” Não tendo tido oportunidade de
    fazer uma visita guiada às magníficas pensões pagas pelo
    Estado, na Avenida Almirante Reis, onde se aglomeram
    imigrantes, a sra. Pereira também não teve, por certo,
    oportunidade de ir visitar outros condomínios exclusivos de
    contentores onde, há quem diga, há jacuzzi e campos de
    golfe… Sei lá.
    – Fernando Sobral, há dias.

    Fonte: P. (P2), 10.5.2020, p. 24.

    Nota. Convém ler o Fernando Sobral, aos domingos, sobre o Estado da Nação.

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