“É o pior dia de negócio da minha vida”. Em Felgueiras e Lousada, a vida em suspenso como em Itália

(Isabel Paulo, in Expresso Diário, 12/03/2020)

Ao terceiro dia de quarentena, os centros urbanos da região ‘demarcada’ do novo coronavírus são quase um deserto. As escolas, infraestruturas desportivas e espaços municipais estão fechados, os tribunais e bancos também. O comércio mantém as portas abertas, mas a clientela é uma miragem. Fartos de estar em casa, os idosos são quem mais fura o decretado isolamento social. Sem sombra de máscaras.


Por estes dias, as ruas da cidade de Felgueiras e da vila vizinha de Lousada andam despovoadas. O silêncio pasma, apenas quebrado por carros em circulação, com os vidros corridos, apesar do calor a anunciar uma primavera precoce. Não se avista uma criança. São 14h30 de terça-feira, o terceiro dia de quarentena no município que alberga ‘a pequena Itália’ portuguesa, Idães, freguesia de Felgueiras que soma cerca de duas dezenas de casos confirmados de COVID-19 e 200 residentes em confinamento.

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À chegada ao centro do município, todas as portas e janelas do complexo de piscinas estão fechadas. Destaca-se um aviso: “por recomendação da DGS, informamos que as instalações desportivas estão encerradas”. E acrescenta-se – “por precaução evite deslocações desnecessárias”. O conselho é levado à letra. Nem vivalma se avista nos relvados dos campos desportivos anexos.

Mais à frente, movimento não abunda no Pingo Doce, mas a vida não pode ficar em suspenso. Uma trabalhadora da lavandaria do concorrente Continente saiu apressada, sem tempo para declarações, que está na sua hora de entrada. Logo a seguir, com um saco de peixe na mão, José Sousa avança para o carro. “Não vamos morrer de fome por causa da doença”, diz.

Mora em Sernande, localidade vizinha de Idães, está reformado por doença oncológica, e apenas sai de casa para comprar mantimentos. “Evito sair à rua, mas perto da minha casa há ainda quem vá ao café e à tasca. Nisso, o povo está a proceder mal”, sentencia.

No centro da cidade, a Casa da China, um grande armazém com oito bandeiras portuguesas hasteadas no cimo, está encerrada de 9 a 23 de março. Para “obras”, segundo se sinaliza. Ao lado, na Auto-Viação Landim, há autocarros estacionados. Só estão a funcionar as carreiras normais e 20 motoristas dos transportes escolares estão parados, refere um funcionário. Para “obras”, segundo se sinaliza.

Em frente, o cenário do Centro Comercial 123 é irreal: corredores vazios, lojistas à porta, nem sinal de burburinho. Nas lojas de rua, o panorama repete-se, mesmo que se anunciem promoções. Apenas num dos espaços Carla e a filha, Inês, de 11 anos, sem aulas, aproveitam para fazer uma compra “necessária”, depois de ter levado o filho mais novo a casa de um amigo com quem está a fazer um trabalho de grupo. A mãe, funcionária das Finanças no Porto, como tantas outras, ficou em casa para tomar conta das crianças.

A repartição de Finanças local está em serviços mínimos. À porta um cartaz da DGS aconselha os contribuintes, de Felgueiras e Lousada, a evitar deslocações aos serviços presenciais, devendo em alternativa utilizar “os meios alternativos de contacto com a Autoridade tributária e Aduaneira através do Portal de Finanças, na opção Atendimento E-Balcão. Para pagamentos de impostos, Multibanco e Homebanking”.

SOLIDÃO PESA MAIS DO QUE SURTO

Na Praça da República, junto à Câmara, três idosos conversam ao sol, alheios à ordem de isolamento social. Vivem sozinhos e precisam de “um pouco de convívio”. “Seja o que Deus quiser”, refere Amadeu, reformado “vai para 15 anos”. Ofereceu-se para ficar com os netos, mas a filha, a faltar ao trabalho numa fábrica de confeções, não quis. “Isto do vírus assusta as pessoas”, comenta. Os amigos acenam com a cabeça, em sinal de confirmação, mas como no caso de Amadeu, as grilhetas da solidão pesam mais do que o susto do surto de infeção.

Na esquina da rua Rebelo de Carvalho, Rui Ribeiro, dono da Confeitaria Ribeiro, famosa pelo pão de ló de Margaride, não tem memória de “um dia assim”. A casa está nas mãos da família desde 1948, Rui governa o espaço há 45 anos e não tem dúvidas que é “o pior dia de negócio” da sua vida. Do outro lado, na Pastelaria Cristo Rei, há um cliente no meio de duas mãos cheias de mesas vazias.

No Café Jardim, uma das funcionárias chega com três embalagens de álcool, compradas na loja do Euro, que nos supermercados esgotou, e também não há desinfetante. Prefere o anonimato, conta que pouca gente entrou no café, mas assegura que a mesa usada é desinfetada, tal como os puxadores da porta e a casa de banho. Afinal, entra um cliente, também entradote, que atira que “um bagaço mata o bicho e o vício”.

A CGD está encerrada “por razões técnicas”, lê-se na porta, e o Eurobic também se encontrava fechado na tarde de terça-feira, tal como a Casa da Justiça, onde funciona o Tribunal Judicial e o DIAP. No Agrupamento de Escolas D. Manuel de Faria e Sousa e na Secundária de Felgueiras, sem passos de crianças ou risos adolescentes, o cenário é de desolação.

IDÃES TEME CRISE

No Largo do Senhor Bom Jesus, freguesia que regista o maior foco COVID-19, surto importado de Milão por um funcionário da empresa de calçado de Lousada, meia dúzia de reformados fazem companhia ao taxista local, Luís Fonseca. Então, não deviam estar de quarentena? “Olhe, isso é para os infetados. Quem está bem, tem de arejar, que metidos dentro de casa até se começa a cheirar a mofo, como a roupa”, diz José Fonseca.

E não teme andar em Idães sem máscara? “Não. Quem anda de máscara é o meu filho, que está em casa de prevenção. Trabalha num ginásio que fechou por suspeita de doente. Ele não sabe se tem o dito vírus ou não”, conta o pai, lamentando que tudo esteja deserto. “Se desatarem a fechar as fábricas, vem aí a crise pior que outra. A minha nora, que trabalha numa fábrica de calçado, está em casa com as duas meninas e anda num susto. Ontem foi com a pequenina de dois anos ao posto médico, mas afinal era só uma constipação de catraia”, comenta o avô, aliviado.

A meio da tarde, a Tasca Pera tem a porta fechada, mas só por uma horas, que o dono foi às compras, dizem os vizinhos. Mais prudente, o padre da Igreja Matriz de Idães optou por não desafiar os vírus terrenos. Na porta, no panfleto informativo da DGD acrescenta-se: “devido ao aumento de casos do novo coronavírus nas últimas horas, na nossa freguesia e na freguesia vizinha, não haverá celebração de MISSA nem catequeses até novo comunicado”.

LOUSADA COMO NUNCA SE VIU

No coração de Lousada, a vida parece suspensa ao final da tarde do terceiro dia de quarentena. No lugar de estacionamento em frente ao encerrado Tribunal Judicial, José Ferreira faz um ar contrariado ao ver no pára-brisas uma multa. “Nem numa altura destas a Polícia Municipal nos dá descanso”, comenta. Apesar dos apelos para a população evitar deslocações, José Ferreira, solicitador e empresário do ramo da mediação de seguros, refere que há negócios que “não dá para parar de um dia para o outro”, mas tem cuidados, como lavar e desinfetar as mãos frequentemente.

Na Praça Dr. Francisco Sá Carneiro, a principal artéria comercial da vila, só a Agência Funerária Massas não está aberta: “Volto já”, avisa-se. Os restantes comerciantes fazem fé nos vivos, mesmo que os tempos de confinamento sejam avessos ao consumo. O posto de correios, a funcionar numa papelaria, livraria, quiosque, galeria e bar ‘Puro Flow’, exibe as recomendações da DGS de combate ao COVID-19, em português e inglês.

Lá dentro só uma cliente, e foi assim a conta-gotas todo o dia. A Cascata Carmim, Pastelaria, Padaria e Pizzaria está fechada. a KYOS – Press Center e Pay Shop mantém-se em funcionamento, mas Andreia queixa-se de “grande quebra” no negócio. Evita o contaCto direto com o cliente, respeita uma distância “razoável” e usa luvas. “Nem cumprimento os clientes conhecidos e estou sempre a desinfetar o balcão”, afiança.

Na Fotografia Orpheu, nem sinal de gente, tal como na Oh La La, loja de presentes personalizados e materiais festivos. “Dois dias quase parados não é ainda crítico, mas se assim continuar não imagino o que será de Lousada”, alerta Joana. Na Padaria Central, sobrAm em mesas e cadeiras o que falta em clientes: “Ontem, por causa da feira, que afinal não se realizou, ainda houve alguma afluência, mas hoje é uma tristeza”, desabafa uma das funcionárias, de gel desinfetante em riste, junto à caixa registadora.

As queixas replicam-se a cada passo: na J. Vinha Eletrodomésticos, a quebra de vendas foi superior a 80%. No pronto a vestir Ponto Fashion ainda não entrou ninguém, confidencia Jéssica. A monotonia só não é total porque tem a companhia do irmão de oito anos, Ruben, que ficou aos cuidados da mana mais velha para a mãe não faltar ao trabalho, numa fábrica de malhas em Lustosa.

Enquanto durar a intermitência do quotidiano em Lousada, Ruben, de férias antecipadas, “está feliz”. Melhor só se pudesse jogar com os colegas.



Um pensamento sobre ““É o pior dia de negócio da minha vida”. Em Felgueiras e Lousada, a vida em suspenso como em Itália

  1. Sem uma injecção massiva de capital na economia, que não vai haver, a GFC vai parecer uma coisa pequena dentro em breve.

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