Sete dias de covil: 20-26 de Março

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 28/03/2020)

Miguel Sousa Tavares

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20 de Março. Tornou-se mais do que um ritual, mais do que uma dependência. Uma demência: todos os dias, entre o meio-dia e o meio-dia e meia, paro tudo para assistir à conferência de imprensa com a divulgação dos números que dão conta dos danos causados pela passagem do Monstro na véspera. Novos infectados, novos mortos, novos internados, novos internados em UCI, novos, e tão desesperadamente poucos, recuperados. E, imediatamente, faço de cabeça a percentagem que desenhará a célebre curva da morte que fará de cada dia um dia de angústia ou um dia de fugaz alívio. Angústia na segunda, alívio na terça, angústia renovada na quarta, novo alívio na quinta: a curva brinca connosco, o Monstro diverte-se a esconder o seu jogo. E ontem ainda, havia outra vida!

Os alemães são o quinto país com mais casos no mundo, mas os alemães não morrem do vírus. Os alemães têm mais camas de UCI por habitante do que qualquer outro país e fabricam ventiladores. Os alemães não querem ajudar a Itália e nem assim se convencem que para resistir ao terramoto económico que já aí está os países do sul da Europa têm o direito de pagar as mesmas taxas de juro pelos empréstimos a que todos irão recorrer que eles próprios — como é mais do que expectável que suceda numa união monetária e para enfrentar uma crise nunca antes vista e da qual nenhum é responsável. Sim, a Alemanha sozinha aguentará, mas não é certo que a União Europeia sobreviva. Glória aos alemães, coitados dos alemães: vão acabar a comer os seus lindos carros.

A despropósito: se nunca percebi por que razão as pessoas açambarcaram montanhas de papel higiénico para combater o vírus a partir de casa, também não consigo entender a razão pela qual o autarca de Ovar, Salvador Malheiro, resolveu munir-se de uma máscara abaixo do queixo (entretanto abandonada) e de um colete da Proteção Civil para dirigir o estado de calamidade pública no seu concelho. Será para futuro cartaz eleitoral?

21 de Março. O que quereria Francisco Assis dizer no seu texto do “Público” com a “ditadura das forças da natureza” em que viveremos e o lamento de que “o homem subsiste, em grande parte, prisioneiro do mundo natural”? Fui eu que o percebi mal ou foi ele que não percebeu nada do que está a acontecer?

Mais simples de entender é a solução “global” para o ataque planetário de covid-19 e tudo o resto, apresentada pela “historiadora” Raquel Varela, no mesmo jornal: “Só a classe trabalhadora europeia organizada, que é de operários e de médicos, de call-centers e de enfermeiros, ou de professores e motoristas (de pesados), pode oferecer uma saída para a pandemia planetária e para a crise global.” É reconfortante ver que não se esqueceu dos professores, como ela, mas talvez estranho não a ver incluir na solução algumas categorias da “classe trabalhadora europeia”, que, assim de repente, me parecem de considerar: cientistas, investigadores, matemáticos, técnicos de saúde pública, psicólogos, forças de segurança, militares, e, sim, os horríveis decisores políticos. Mas ela deve ter exemplos históricos do que diz. Tanto que, dois dias depois, voltaria à carga com novo texto, ocupando nova página no “Público”. E quatro dias adiante, mais outro, onde desta vez acrescentava os estivadores do porto de Lisboa ao rol dos membros da “classe trabalhadora europeia” de onde só pode vir a solução contra o vírus. Estes, e o seu peculiar sistema sindical tipo familiar (digamos assim…), eu conheci-os brevemente, quando fiz parte de um movimento que há uns anos contestou o projecto de expansão demencial do Terminal de Contentores de Alcântara, roubando quilómetros de Tejo aos lisboetas. Na altura, os estivadores estavam irmanados com a entidade patronal, a Mota-Engil, na defesa de um contrato acabado de assinar com o porto de Lisboa que era das coisas mais infames que alguma vez vi serem feitas em nome do suposto interesse público. São detalhes “históricos”, que, todavia, não apagam o essencial da tese defendida por Raquel Varela no último da sua trilogia de textos da semana que passou, no “Público”: defende ela que o decreto que instituiu o estado de emergência, há dias, faz lembrar os que instituíram o Estado Novo de Salazar ou o Terceiro Reich, de Adolf Hitler. Está-se sempre a aprender com os historiadores.

22 de Março. Sem dúvida que temos de ser solidários para com os que foram apanhados desprevenidos, em trânsito pelo mundo ou fora dos seus países e querem voltar ou, ao menos, desembarcar em algum lado. Mas, um mês depois de verem o que aconteceu com os passageiros dos paquetes apanhados pelas medidas de isolamento quando o coronavírus chegou à China, 15 dias depois de o caos já estar instalado em Itália e vários dias depois de toda a Europa e Portugal incluído ter começado a fechar fronteiras, é completamente irresponsável — dos passageiros e das agências — iniciar cruzeiros turísticos no Brasil com destino à Europa e depois ficar a suplicar que alguém os deixasse desembarcar. Assim como é quase criminoso que tenha havido portugueses a partir para férias — em Espanha, em Itália (!), no Peru ou em Bali — quando todo o mundo já estava em estado de excepção e depois ficar a mandar vídeos para cá com apelos lancinantes e acusações de que o Estado português os tinha abandonado nas suas férias lá longe. É incrível saber que a linha telefónica de emergência montada pelo MNE para assistir no repatriamento dos mais de 4 mil portugueses no estrangeiro a quererem voltar estava a ser ocupada a 75% por chamadas de portugueses a perguntarem se poderiam ir passar as férias da Páscoa no estrangeiro! Estes turistas acidentais deviam pagar bem caro o custo do seu repatriamento.

23 de Março. No “Público” de hoje, o professor de Epidemiologia, Manuel Carmo Gomes, assina um texto profundamente pessimista sobre a evolução do Monstro. A sua conclusão é arrepiante: a segunda vaga da ofensiva é quase inevitável e a única defesa eficaz é mantermos os velhos fechados em casa durante um ano ou ano e meio, até haver uma vacina. Entrevisto-o para o “Jornal das 8” de segunda-feira, da TVI, e pergunto-lhe se isso não é uma forma de eutanásia social, que consiste em afastar os velhos dos filhos, dos netos, da vida em comunidade, das ruas, do ar livre, numa espécie de prisão domiciliária, durante um longo tempo do pouco tempo de vida que já lhes resta. “Não há outra forma de parar a doença”, responde-me. Com o todo o respeito para quem olha para este susto com o olhar do epidemiologista e não do sociólogo ou do psiquiatra, esta não é uma resposta para a doença: é outra doença. Acabaremos a ver os velhos a serem enxotados dos jardins, das praias, das ruas, quando se atreverem a pôr a cabeça de fora. No sul de Espanha, dois dias depois, uma coluna de ambulâncias que evacuava velhos de um lar, foi apedrejada e atacada com explosivos ao chegar a uma cidadezinha onde iriam ser realojados. Por enquanto, o Monstro apenas infecta humanos, não animais. Mas em breve terá o dom de transformar os humanos nos piores dos animais. Um tipo chamado Donald J. Trump já deu o mote.

Por enquanto, o Monstro apenas infecta humanos, não animais. Mas em breve terá o dom de transformar os humanos nos piores dos animais. Um tipo chamado Donald J. Trump já deu o mote

No mesmo espaço da TVI, entrevisto António Costa. Logo de entrada, pergunto-lhe o que falta: testes, camas, ventiladores, material de protecção para o pessoal clínico? Responde-me que, até à data, não faltou nada nem prevê que venha a faltar. Pergunto-lhe, de seguida, qual é o ponto de saturação do SNS, quando e com quantos doentes o atingiremos. Responde que confia em que nunca o atingiremos, que nunca perderemos o controlo da situação. Nos dias que se vão seguir, o primeiro-ministro irá ser massacrado por estas duas respostas. “Está a mentir!”, gritam as redes sociais e vários médicos e enfermeiros, reportando da tão falada “linha da frente” e alimentando as redes sociais. “É falso”, proclamam a Ordem os Médicos e a dos Enfermeiros: falta tudo. Fico a pensar nisto: temos 140 doentes internados, 60 em cuidados intensivos — camas não faltam com certeza e muitas mais estão a ser disponibilizadas, ao mesmo tempo que os outros doentes evitam ir aos hospitais e às urgências. Os testes e os ventiladores são neste momento objecto de um mercado planetário ocupado por piratas, onde nenhum contrato de fornecimento é respeitado. Se o pessoal médico está ou não desprotegido, não sei, porque não estou lá para ver. Mas, dois dias depois, o director clínico do Serviço de Infecciologia do Hospital Curry Cabral (o hospital de referência nesta crise), Fernando Maltez, declara tranquilamente: “Até ao momento, não nos tem faltado nada nem prevemos que nos venha a faltar nos tempos mais próximos.” Percebo perfeitamente que quem está nos hospitais a receber os doentes esteja assustado — no lugar deles, eu também estaria, e muito. Mas para enfrentar um combate que se antevê duro, a tranquilidade é melhor conselheira do que a histeria. Não temos tudo o que precisaríamos para uma crise desta dimensão? E qual é o país que tem? Qual é o serviço público de saúde que pode estar preparado, e a que custo, para uma crise desta natureza ou para as consequências da queda de um meteorito no planeta Terra? Sinceramente, não percebo: ficariam todos mais satisfeitos se António Costa tivesse dito: “Olhe, falta tudo e não estamos preparados para nada; vamos entrar em ruptura e vai ser um caos, salve-se quem puder”?

25 de Março. Para o que não estávamos preparados, e julgo que devíamos estar, foi para ter uma estratégia planeada para a bomba-relógio representada pelos lares de terceira idade, onde estão acantonados 100 mil velhinhos que são simultaneamente as principais vítimas e os principais difusores do vírus. Esqueceram-se de pensar nisso e neles, e agora actuamos à deriva.

26 de Março. No “Corriere della Sera”, o escritor e jornalista italiano, Antonio Scurati, escreveu isto sobre a sua geração, a que nasceu nos anos 70 do século passado: “Fomos a geração mais afortunada da história da Humanidade… Ter nascido em Itália no princípio dos anos 70 deu à nossa geração, por pura casualidade, a fracção da humanidade mais próspera, mais saudável, mais segura, mais protegida, com maior esperança de vida, mais bem vestida, alimentada e cuidada que alguma vez pisou a face da Terra. Agora, uma vez alcançado o ponto mais alto da nossa existência, vemo-nos postos à prova. Estaremos à altura?” Eu não tenho dúvida que sim. Na Roma Antiga — fundadora da mais extraordinária civilização que o mundo alguma vez conheceu, a civilização mediterrânica — os bárbaros ficavam a Norte e o mundo que valia a pena ser vivido ficava a Sul. A Itália sobreviverá. E nós com ela.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia



Querem ir para um contentor?

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 21/03/2020)

Concordo com o estado de emergência. Sei que são detestáveis as medidas de suspensão das liberdade, direitos e garantias, mas esta situação é excecional, e quem nos governa e superintende não tem a unha longa do ditador nem a garra do abutre. Nem temos o excecional sistema antidemocrático, semidemocrático ou democraticamente musculado da Ásia. Não sabemos quanto tempo a pandemia vai durar, não sabemos se vai regressar uma vez controlada e não sabemos quando teremos uma vacina para nos salvar.

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A razão para decretar o estado de emergência é simples. E não tem a ver com o facto de as pessoas estarem a desobedecer, a ignorar a distância social ou o isolamento e a quarentena. Estamos na fase positiva, otimista e humorada da crise. Trocamos palavras de encorajamento, memes e mensagens, anedotas, vídeos, notícias falsas e verdadeiras. Estamos na fase do combate. Do choque.

Tal como com o anúncio súbito de uma doença grave, esta fase passará. A última fase é a da aceitação. No meio vêm a ira, a negociação e a depressão. O isolamento prolongado de seres humanos dentro de casas e famílias acabará por provocar estragos. Vamos irritar-nos uns com os outros e com os governantes e não existe escape. Não há entretenimento, arte, futebol, desporto, convívio, conversa de bar. Não há ar livre, a contemplação do céu e do mar, o cheiro da terra e da chuva, o brilho da luz do sol e da lua. A prisão domiciliária, mesmo com saúde, testa a nossa resiliência, e as redes tecnológicas não substituem a vida. O contacto humano extremo, na família, raspa os nervos. A ansiedade também.

No rescaldo da crise do coronavírus, a ser clinicamente debelada, virá a fase da reconstrução depois da destruição planetária. Esta fase necessita de medidas estritas de comportamento. Há que evitar o caos social, a criminalidade, os aproveitadores e todos os que florescem nas ruínas e numa economia de guerra e de mercado negro. A violência da situação ainda não nos atingiu.

Percebi isto com clareza. Que a ira virá. Estou em clausura há dias, interrompida para passear e correr pelo parque, onde reparei que ninguém mantinha a distância social e os turistas se comportavam como turistas, com as selfies do costume. A esplanada regurgitava. Os jovens bebiam cerveja na relva e contavam anedotas sobre o vírus, a centímetros uns dos outros, contentes das súbitas férias. Isto irritou-me.

Em casa, fui tratar das plantas, arrancar ervas daninhas, regar a lavanda, cortar as flores mortas do inverno. O silêncio de sepulcro foi interrompido por uma viola clássica. Uma melodia de intensa beleza, que ecoava nos pátios e iluminava o dia gelado. Depois das imagens de Nápoles e Roma a cantar à varanda, pensei que a natureza humana se redime a buscar beleza onde a pode encontrar. Até ao homem do Black & Decker. Um som estrídulo veio cortar o ar como uma faca mal afiada. O tipo do bricolage. Todos conhecemos este tipo de coca-bichinhos, assombra o Leroy Merlin, o IKEA e o AKI por distração, passa os fins de semana nos arranjos, conserta coisas por desporto e invade os vizinhos e os domingos com o ruído da broca infatigável. Do prego preciso. Da serra elétrica e da ferramenta das porcas e parafusos. O homem do Black & Decker nunca descansa e por vezes completa a tarefa com um relato de futebol. A música, envergonhada, calou-se e nunca mais voltou.

Leitores, desejei bater no homem do Black & Decker. Podia ter esperado um pouco, ter-se sentado a apreciar a melodia que nos era oferecida como um prémio na prisão. Mais tarde, na mercearia do bairro, gritei com um homem que passou à frente de toda a gente, pessoas mais velhas com máscaras, e começou aos berros a fazer perguntas em cima de mim. Foi-se embora. Estou a ficar irritada.

No fim de semana passado, fui recebendo mensagens de vários médicos, alguns do Porto, outros de Lisboa, uns destacados para a frente de guerra, outros à espera de serem destacados, uns já separados das famílias, outros em contacto com médicos italianos que lhes enviavam notícias do centro do terror. E percebi que os médicos estavam nervosos e irritados. Porque não tinham proteção e ninguém tinha pensado nisso a tempo e horas, porque se estavam a infetar, porque se iriam infetar juntamente com os trabalhadores e técnicos de saúde, porque eles são os nossos soldados e se não os tratarmos bem eles vão morrer e primeiro do que nós. O que mais os irritava era o facto de as medidas serem tardias e as pessoas não acatarem as regras. Cada português que desobedece está a pôr-nos em risco de vida, somos a carne para canhão, diziam.

Os internos em estágio foram chamados, os mesmos que a senhora ministra queria pôr a trabalhar de graça, como se fossem missionários em África. A relação dos médicos com a ministra não é boa nem de confiança, é o mínimo que se pode dizer. O stresse no meio clínico era evidente, e a raiva fustigava gente que costuma manter a calma olímpica. Os do parque, entretidos nas anedotas e cervejas, nunca pensam nos outros. Nos que estão em contacto com doentes infetados e nem proteção têm. Esta falha, ou a falta de testes, ou a infeção do Hospital de Santa Maria por incúria, a infeção de tantos médicos logo no princípio são sinais de incompetência. Querem ir para um contentor?, gritava um médico.

E que esperar dos ricos, os que podem atravessar esta crise sem problemas? Que esperar da banca que salvámos e que continua a aumentar as comissões? Que esperar do absoluto silêncio desta gente? Gostava de ouvir dizer: eu vou oferecer dinheiro para a compra de material, para a investigação, para ajudar a frente de guerra. Eu tenho um plano para ajudar os outros, os que não têm plano.

Um amigo bem abastado e abastecido contou-me que amigos dele fugiram para o Brasil e os trópicos, em aviões e jatos privados. Abandonaram o barco. Eu mesma ouvi um grupo de brasileiros ricos no restaurante do topo do El Corte Inglés a beberem vinho, em cima uns dos outros, a rirem às gargalhadas e a dizerem que no dia seguinte marchavam de avião para o Brasil e “prà ilha”. Essa Europa já era. Apeteceu-me metê-los de quarentena num contentor, ao frio. Vamos ficar irritados. Se vamos.


“É o pior dia de negócio da minha vida”. Em Felgueiras e Lousada, a vida em suspenso como em Itália

(Isabel Paulo, in Expresso Diário, 12/03/2020)

Ao terceiro dia de quarentena, os centros urbanos da região ‘demarcada’ do novo coronavírus são quase um deserto. As escolas, infraestruturas desportivas e espaços municipais estão fechados, os tribunais e bancos também. O comércio mantém as portas abertas, mas a clientela é uma miragem. Fartos de estar em casa, os idosos são quem mais fura o decretado isolamento social. Sem sombra de máscaras.


Por estes dias, as ruas da cidade de Felgueiras e da vila vizinha de Lousada andam despovoadas. O silêncio pasma, apenas quebrado por carros em circulação, com os vidros corridos, apesar do calor a anunciar uma primavera precoce. Não se avista uma criança. São 14h30 de terça-feira, o terceiro dia de quarentena no município que alberga ‘a pequena Itália’ portuguesa, Idães, freguesia de Felgueiras que soma cerca de duas dezenas de casos confirmados de COVID-19 e 200 residentes em confinamento.

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À chegada ao centro do município, todas as portas e janelas do complexo de piscinas estão fechadas. Destaca-se um aviso: “por recomendação da DGS, informamos que as instalações desportivas estão encerradas”. E acrescenta-se – “por precaução evite deslocações desnecessárias”. O conselho é levado à letra. Nem vivalma se avista nos relvados dos campos desportivos anexos.

Mais à frente, movimento não abunda no Pingo Doce, mas a vida não pode ficar em suspenso. Uma trabalhadora da lavandaria do concorrente Continente saiu apressada, sem tempo para declarações, que está na sua hora de entrada. Logo a seguir, com um saco de peixe na mão, José Sousa avança para o carro. “Não vamos morrer de fome por causa da doença”, diz.

Mora em Sernande, localidade vizinha de Idães, está reformado por doença oncológica, e apenas sai de casa para comprar mantimentos. “Evito sair à rua, mas perto da minha casa há ainda quem vá ao café e à tasca. Nisso, o povo está a proceder mal”, sentencia.

No centro da cidade, a Casa da China, um grande armazém com oito bandeiras portuguesas hasteadas no cimo, está encerrada de 9 a 23 de março. Para “obras”, segundo se sinaliza. Ao lado, na Auto-Viação Landim, há autocarros estacionados. Só estão a funcionar as carreiras normais e 20 motoristas dos transportes escolares estão parados, refere um funcionário. Para “obras”, segundo se sinaliza.

Em frente, o cenário do Centro Comercial 123 é irreal: corredores vazios, lojistas à porta, nem sinal de burburinho. Nas lojas de rua, o panorama repete-se, mesmo que se anunciem promoções. Apenas num dos espaços Carla e a filha, Inês, de 11 anos, sem aulas, aproveitam para fazer uma compra “necessária”, depois de ter levado o filho mais novo a casa de um amigo com quem está a fazer um trabalho de grupo. A mãe, funcionária das Finanças no Porto, como tantas outras, ficou em casa para tomar conta das crianças.

A repartição de Finanças local está em serviços mínimos. À porta um cartaz da DGS aconselha os contribuintes, de Felgueiras e Lousada, a evitar deslocações aos serviços presenciais, devendo em alternativa utilizar “os meios alternativos de contacto com a Autoridade tributária e Aduaneira através do Portal de Finanças, na opção Atendimento E-Balcão. Para pagamentos de impostos, Multibanco e Homebanking”.

SOLIDÃO PESA MAIS DO QUE SURTO

Na Praça da República, junto à Câmara, três idosos conversam ao sol, alheios à ordem de isolamento social. Vivem sozinhos e precisam de “um pouco de convívio”. “Seja o que Deus quiser”, refere Amadeu, reformado “vai para 15 anos”. Ofereceu-se para ficar com os netos, mas a filha, a faltar ao trabalho numa fábrica de confeções, não quis. “Isto do vírus assusta as pessoas”, comenta. Os amigos acenam com a cabeça, em sinal de confirmação, mas como no caso de Amadeu, as grilhetas da solidão pesam mais do que o susto do surto de infeção.

Na esquina da rua Rebelo de Carvalho, Rui Ribeiro, dono da Confeitaria Ribeiro, famosa pelo pão de ló de Margaride, não tem memória de “um dia assim”. A casa está nas mãos da família desde 1948, Rui governa o espaço há 45 anos e não tem dúvidas que é “o pior dia de negócio” da sua vida. Do outro lado, na Pastelaria Cristo Rei, há um cliente no meio de duas mãos cheias de mesas vazias.

No Café Jardim, uma das funcionárias chega com três embalagens de álcool, compradas na loja do Euro, que nos supermercados esgotou, e também não há desinfetante. Prefere o anonimato, conta que pouca gente entrou no café, mas assegura que a mesa usada é desinfetada, tal como os puxadores da porta e a casa de banho. Afinal, entra um cliente, também entradote, que atira que “um bagaço mata o bicho e o vício”.

A CGD está encerrada “por razões técnicas”, lê-se na porta, e o Eurobic também se encontrava fechado na tarde de terça-feira, tal como a Casa da Justiça, onde funciona o Tribunal Judicial e o DIAP. No Agrupamento de Escolas D. Manuel de Faria e Sousa e na Secundária de Felgueiras, sem passos de crianças ou risos adolescentes, o cenário é de desolação.

IDÃES TEME CRISE

No Largo do Senhor Bom Jesus, freguesia que regista o maior foco COVID-19, surto importado de Milão por um funcionário da empresa de calçado de Lousada, meia dúzia de reformados fazem companhia ao taxista local, Luís Fonseca. Então, não deviam estar de quarentena? “Olhe, isso é para os infetados. Quem está bem, tem de arejar, que metidos dentro de casa até se começa a cheirar a mofo, como a roupa”, diz José Fonseca.

E não teme andar em Idães sem máscara? “Não. Quem anda de máscara é o meu filho, que está em casa de prevenção. Trabalha num ginásio que fechou por suspeita de doente. Ele não sabe se tem o dito vírus ou não”, conta o pai, lamentando que tudo esteja deserto. “Se desatarem a fechar as fábricas, vem aí a crise pior que outra. A minha nora, que trabalha numa fábrica de calçado, está em casa com as duas meninas e anda num susto. Ontem foi com a pequenina de dois anos ao posto médico, mas afinal era só uma constipação de catraia”, comenta o avô, aliviado.

A meio da tarde, a Tasca Pera tem a porta fechada, mas só por uma horas, que o dono foi às compras, dizem os vizinhos. Mais prudente, o padre da Igreja Matriz de Idães optou por não desafiar os vírus terrenos. Na porta, no panfleto informativo da DGD acrescenta-se: “devido ao aumento de casos do novo coronavírus nas últimas horas, na nossa freguesia e na freguesia vizinha, não haverá celebração de MISSA nem catequeses até novo comunicado”.

LOUSADA COMO NUNCA SE VIU

No coração de Lousada, a vida parece suspensa ao final da tarde do terceiro dia de quarentena. No lugar de estacionamento em frente ao encerrado Tribunal Judicial, José Ferreira faz um ar contrariado ao ver no pára-brisas uma multa. “Nem numa altura destas a Polícia Municipal nos dá descanso”, comenta. Apesar dos apelos para a população evitar deslocações, José Ferreira, solicitador e empresário do ramo da mediação de seguros, refere que há negócios que “não dá para parar de um dia para o outro”, mas tem cuidados, como lavar e desinfetar as mãos frequentemente.

Na Praça Dr. Francisco Sá Carneiro, a principal artéria comercial da vila, só a Agência Funerária Massas não está aberta: “Volto já”, avisa-se. Os restantes comerciantes fazem fé nos vivos, mesmo que os tempos de confinamento sejam avessos ao consumo. O posto de correios, a funcionar numa papelaria, livraria, quiosque, galeria e bar ‘Puro Flow’, exibe as recomendações da DGS de combate ao COVID-19, em português e inglês.

Lá dentro só uma cliente, e foi assim a conta-gotas todo o dia. A Cascata Carmim, Pastelaria, Padaria e Pizzaria está fechada. a KYOS – Press Center e Pay Shop mantém-se em funcionamento, mas Andreia queixa-se de “grande quebra” no negócio. Evita o contaCto direto com o cliente, respeita uma distância “razoável” e usa luvas. “Nem cumprimento os clientes conhecidos e estou sempre a desinfetar o balcão”, afiança.

Na Fotografia Orpheu, nem sinal de gente, tal como na Oh La La, loja de presentes personalizados e materiais festivos. “Dois dias quase parados não é ainda crítico, mas se assim continuar não imagino o que será de Lousada”, alerta Joana. Na Padaria Central, sobrAm em mesas e cadeiras o que falta em clientes: “Ontem, por causa da feira, que afinal não se realizou, ainda houve alguma afluência, mas hoje é uma tristeza”, desabafa uma das funcionárias, de gel desinfetante em riste, junto à caixa registadora.

As queixas replicam-se a cada passo: na J. Vinha Eletrodomésticos, a quebra de vendas foi superior a 80%. No pronto a vestir Ponto Fashion ainda não entrou ninguém, confidencia Jéssica. A monotonia só não é total porque tem a companhia do irmão de oito anos, Ruben, que ficou aos cuidados da mana mais velha para a mãe não faltar ao trabalho, numa fábrica de malhas em Lustosa.

Enquanto durar a intermitência do quotidiano em Lousada, Ruben, de férias antecipadas, “está feliz”. Melhor só se pudesse jogar com os colegas.