Um artigo reaccionário a favor de uma proposta que não é reaccionária do PCP

(Pacheco Pereira, in Público, 25/01/2020)

Pacheco Pereira

1. Este é um artigo reaccionário, simplista, mas que do ponto de vista do autor é verdadeiro, ou seja, o que se descreve existe como realidade e como problema, senão não o escrevia. Simplista, porque seria preciso muito mais texto do que permite o jornal para passar da impressão à crítica, mas se o faço mesmo assim é porque penso que pode ser útil.

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2. Por várias razões, os adolescentes, os jovens, estão na moda, e as crianças e os adultos, já para não falar nos velhos, não estão. A primeira coisa que convém lembrar para se perceber o “estão na moda” é que nem sempre foi assim. No passado, esse “país estrangeiro”, a importância simbólica das diferentes idades e das experiências a elas associadas, assim como o seu valor social percebido, foi muitas vezes bastante distinto. É por isso que digo, sem dúvida simplificando, que a moda traduz a forma como no espelho da sociedade se mede a importância de cada idade, e por razões culturais, económicas e sociais esta importância muda com os tempos. E hoje é grande.

3. Uma das razões por que os jovens estão na moda tem que ver com a valorização simbólica da força, da beleza, da vida com todo o tempo à frente, e os efeitos dessa moda são particularmente visíveis na comunicação, nas indústrias da moda, do sexo e do entretenimento, no desporto e nos jogos, e em todos os casos há muito dinheiro em cima, como se vê na publicidade e no mercado. Daqui seguem-se uma série de estereótipos que, se forem analisados, não dão os resultados que todos pensam dar e se revelam ideias feitas. Por exemplo, todos os hackers nos filmes são nerds, jovens disfuncionais socialmente a “trabalhar” numa cave escondida algures, e nenhum alfarrabista nos filmes é jovem, mas um velho de barbas brancas metido no meio de estantes de livros antigos que acumula os livros com as artes da espionagem. Do mesmo modo, a caterva de personagens angustiadas nas séries televisivas são todas de meia-idade. Estes estereótipos são repetidos por páginas culturais e jornais de referência sempre a descobrir jovens talentos que não duram um ano, escritos por jornalistas de meia-idade que pensam que têm 18 anos.

4. Há várias coisas que os jovens não fazem, a não ser as excepções, e uma é ler livros e por isso o estereótipo da “geração mais bem preparada” é um daqueles mitos que gostamos de alimentar, mas que soçobra ao mais pequeno concurso televisivo de perguntas “culturais”, ou inquérito de rua sobre se conhecem Cesário Verde, ou sobre o que estão a ler. Vão-me dizer que não precisam de saber essas coisas, mas que têm outras “competências”. Uma treta que não passa de saber usar um telemóvel, ou colocar posts e imagens no Facebook (uma actividade onde “habitam” muitos adultos) e no Instagram, e manejar meia dúzia de devices pouco elaborados que só espantam os mais velhos, porque eles não o sabem fazer. Fortnite, onde passam as noites, isso sabem. Já sei que também me vão dizer que milhares de jovens pelo país fora participam em grupos de teatro, são “artistas” plásticos, são músicos de talento, e há toda uma indústria subsidiada pelo Estado e pelas autarquias, que sem gente “nova” não existiria. Sim, é parcialmente verdade, mas experimentem usar um qualquer critério de qualidade (mesmo neste período de intangibilidade da cultura, eles existem…) para lhes medir o mérito. Como não se trata de terapias ocupacionais, mas de actividades que se reivindicam de criativas, é preciso medir o valor e os resultados.

5. Por isso, muitas das iniciativas educacionais e culturais e os recursos que mobilizam são muito mais eficazes se dirigidos às crianças e aos adultos, tratando-se o “meio” de outra forma, sob pena de se fazerem enormes esforços sem qualquer resultado útil, ou, dito de outra forma mais crua, vale mais investir e muito nas crianças e nos adultos, e aí concentrar os recursos escassos, para obter resultados sociais que depois atingirão os “meios”. Se, por exemplo, se trata de aumentar a escolaridade obrigatória, como dizia Marçal Grilo, mais vale fazê-lo para trás do que para a frente. E aqui é que entra a proposta do PCP para o Orçamento deste ano, de garantir “a gratuitidade de frequência de creche a todas as crianças cujo agregado familiar pertença ao primeiro escalão de rendimentos da comparticipação familiar até à entrada no ensino pré-escolar”.

6. Esta é uma proposta que vai no sentido certo em conjunção com um muito maior esforço no pré-escolar, porque ataca numa idade muito favorável a divisão entre pobres e ricos, nos seus efeitos perversos que se reproduzem em toda a vida escolar, favorece uma socialização equilibrada das crianças, permite que desde cedo muitas competências e “vontades” possam ser moldadas para a leitura, para as línguas, para a nossa muito maltratada língua, para chegar ao saber pela curiosidade. Não é milagrosa, mas muda muito. Quando as crianças de hoje forem os novos jovens daqui a uns anos, serão diferentes.



6 pensamentos sobre “Um artigo reaccionário a favor de uma proposta que não é reaccionária do PCP

  1. Subscrevo a 100% o artigo.

    Quanto aos hábitos de leitura apenas acrescento que o método ensino tem de ser renovado.

    Quando me lembro da atrocidade que fizeram aos lusíadas no meu tempo escola, transformaram uma obra fantástica na coisa mais odiada e menos efectivamente lida das estantes portuguesas.

    Os profs de português parecem decididos a extirpar qualquer tendência de hábito de leitura que possa haver num aluno.

    Querem transformar os alunos não em leitores, mas em cultivadores de árvores gramaticais.

  2. Eu não concordo.

    Antes de haver informação escrita e largamente divulgada em jornais e livros, era o contador de estórias o mais valorizado como pessoa capaz de transmitir conhecimento aos mais jovens. O contador de histórias (à lareira !) tinha a possibilidade de explicar melhor se na assistência alguém tivesse dúvidas. De certa forma era um processo interativo.

    Quando o suporte do conhecimento passou do cérebro dos mais velhos para o papel, passou-se a valorizar muito a leitura, como método de obter conhecimento por quem lê, e de transmitir conhecimento para quem escreve. Foi a época áurea também do teatro; dramatização de conteúdos, com subsequente aumento da facilidade de assimilação dos jovens.

    Depois veio o cinema que retirou a muitos jovens (só estamos a falar de jovens) o interesse que tinham em ler. Os filmes que viam eram versões de livros, que transmitiam aproximadamente os mesmos conhecimentos, mas que eram muito mais fáceis de digerir. Quando saia um livro bom, todos os jovens ansiavam que se fizesse o filme dele. Até porque os livros são e sempre foram caros.

    Depois veio a televisão que ampliou os horizontes do cinema e que democratizou o acesso ao cinema, literatura e teatro. Mais uma machadada no apetite à leitura, até porque a evolução vinha no sentido de embaratecer o acesso aos conteúdos. Aumentou mais a capacidade de assimilação de conteúdos.

    Depois veio a Internet, que deu a machadada final no interesse pela leitura, porque alterou completamente o paradigma do ensino informal, com a INTERATIVIDADE. Nunca antes os jovens tinham tido possibilidade de participar ativamente e na hora no processo de aprendizagem informal.
    Nunca antes, minto! queria dizer que desde os longínquos tempos da transmissão oral que os jovens não tinham possibilidade de participar no processo de transmissão de conhecimento.

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