Tudo tão irritantemente previsível

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 25/01/2019)

Miguel Sousa Tavares

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Agora Isabel dos Santos desdobra-se em entrevistas, declarações, comunicados, explicações. Mas antes de o escândalo rebentar — ou melhor, antes de o controlo lhe escapar das mãos, porque o escândalo sempre esteve lá, à vista de todos — ela resguardava-se ao extremo, como pessoa politicamente exposta, que sabia ser, e como pessoa esperta, que era. Por isso, são poucas as imagens disponíveis dela, nas raras ocasiões em que se deixou filmar ou fotografar em Portugal. Nessas raras imagens, vemos sempre a “princesa de África” muito longe de um clima de racismo, de que agora também se reclama vítima. Antes pelo contrário: aparece rodeada de homens e mulheres de raça branca que lhe sorriem, abrem alas, bajulam quase lhe fazem vénias e só não rastejam a seus pés porque é tudo gente muito composta. Ó Isabel de África e do mundo, o dinheiro não tem raça!

E também não carece nem de razões, nem de explicações, nem de ética. Muito dinheiro, rios de dinheiro afogam quaisquer dúvidas. Veja, Isabel, como entre toda essa gente — os seus parceiros de negócios, os seus banqueiros, os seus advogados, os seus conselheiros, os traficantes de influências a seu soldo ou os políticos a seus pés — ninguém ousou fazer-lhe as duas perguntas que se impunham: como é que tinha conseguido o seu primeiro milhão; e como é que se justificava que, sendo Angola um país riquíssimo, o seu povo fosse miserável, enquanto o Presidente e a família do Presidente eram todos multimilionários e a filha do Presidente a mulher mais rica de África? Alguma vez sentiu, entre todos esses racistas que a rodeavam, a mais leve sombra de crítica, de desprezo, de desdém, pelos seus milhões? Sentiu alguma leve sombra de mal-estar pela sua presença nos conselhos de administração onde, como diz, se fazia sentir o seu “talento e inteligência”, ou nas lojas de luxo ou nos restaurantes com nome francês da Avenida da Liberdade, onde se fazia sentir a leveza do seu dinheiro?

Claro que a “princesa de África” agora tem razões para se sentir traída e abandonada. Julgou que o dinheiro também comprava lealdades e solidariedades, sempre e entre pares, e está a descobrir por si que não existe tal coisa como ser-se alguém sem escrúpulos na prosperidade e ser-se também um cavalheiro na adversidade. Uma vez sem princípios, sempre sem princípios. Concordo que ver o seu auditor de todos estes anos, o cavalheiro da PwC, declarar-se “desiludido” consigo deve meter nojo a uma ratazana. Ver Davos desconvidá-la, depois de se ter feito pagar bem pelo convite que lhe havia feito para intervir na qualidade de grande empresária internacional, mostra bem o estofo moral da elite do mundo. Ver o seu próprio banco, cúmplice nos seus desvios de fundos de dinheiro de Angola para o seu bolso, vir agora “cortar relações comerciais” com as suas empresas, continuando todos sentadinhos nos seus lugares lá no banco, prova que há gente que nem de si própria tem vergonha. Mas é a gente dela, é o mundo dela, são os valores dela. São os guardiões do mais desprezível dos bezerros de ouro: o dinheiro sujo que todos eles sempre souberem ser o dela. Dinheiro roubado a angolanos que morreram por falta de medicamentos nos hospitais, que morreram de fome num país com condições para alimentar de sobra toda a sua gente, que viveram miseráveis todos estes anos, sugados por um regime afogado em lençóis de petróleo e diamantes, cujas receitas, durante anos a fio, nem sequer entravam no Orçamento do Estado. Iam directamente para os bolsos da “grande família”, dos generais e da clique que em Luanda os apoiava, sobrando abundantes restos para os que, em Portugal e não só, lhes forneceram o indispensável know how financeiro, bancário, jurídico e organizativo para se transformarem de salteadores de estrada em respeitáveis empresários internacionais com entrada garantida em Davos.

Pelo caminho, e no que nos toca, foram décadas de sucessivos “irritantes” e outras tantas humilhações de Estado a que Angola nos submeteu e a que nós nos submetemos. Eles, a “grande família” de Luanda, pela sua atitude de novos-ricos reivindicando o direito de mandar até na nossa Justiça e na nossa imprensa; e nós, submetendo-nos tantas vezes pelo “interesse nacional” de não perder a mina de ouro dos negócios com Angola — refúgio, por vezes certo, outras vezes incerto, em tempos de crise. Por força das regras de jogo ditadas pela cleptocracia angolana, de que Isabel dos Santos era expoente e embaixadora, nunca tivemos com Angola uma relação limpa e transparente, entre iguais e amigos. E esta obscura e hipócrita relação foi sustentada como imperativo nacional por todos ou quase todos os quadrantes políticos portugueses, com a notável excepção do BE e, durante muito tempo, até se arrepender, do CDS. De resto, o PS e o PSD, sobretudo este, porque tinham as mãos na massa, e o PCP, por razões de psicanálise (pois continua a querer acreditar que Angola, tal como a China, a Rússia, a Venezuela ou a Coreia do Norte são países “socialistas”) fizeram sempre do dossiê Angola uma questão indiscutível. E até vimos alguma gente de extrema-direita, nacionalista e ex-colonialista a fazer negócios em Luanda, de mãos dadas com a elite dos generais corruptos do MPLA.

Vimos de tudo, e toda a gente soube sempre de tudo. Espero que ninguém se atreva a vir dizer que não sabia. Não é preciso que se suicidem, nem sequer esperamos que se demitam, mas ao menos que fiquem envergonhadamente calados. Até porque, ou muito me engano, ou nós ainda só vimos a ponta do icebergue. Como é evidente, Isabel dos Santos não acumulou 3 mil milhões de dólares sozinha, sem ter tido por trás de si um mar de conivências, cumplicidades e fechar de olhos de quem devia ter visto, ter falado e ter impedido. Lá, como cá. Aliás, muito gostaria de saber o que veio cá fazer ao certo o PGR de Angola, ao querer reunir-se com a sua homóloga portuguesa logo no dia seguinte a ter constituído Isabel dos Santos arguida por desvio de fundos da Sonangol. Gostaria de acreditar que não veio cá para combinar entre ambas as partes o quê e quem é que cada um dos lados deve investigar e quando é que deve parar. O que estará naqueles 700 mil documentos que ainda não sabemos e que mais pistas é que eles podem dar para outras investigações? Quando se segue a pista de dinheiro sujo — e rios de dinheiro é quase infalivelmente dinheiro sujo — nunca se chega só aos suspeitos do costume.

Tudo isto é bem mais do que irritante, é profundamente triste. Nós estivemos em Angola e em África 500 anos. Fizemos por lá aquilo que outros povos brancos e outros colonizadores fizeram em circunstâncias idênticas: explorámos a colónia, conforme era direito adquirido à época. Nem inventámos o colonialismo nem inventámos a escravatura em África, mas tirámos abundante partido de ambas as coisas e fizemos o Brasil à conta de Angola. E prolongámos ambas as coisas, o colonialismo e a escravatura quando, mesmo entre os brancos, tal se tinha tornado moral e juridicamente insustentável. E, por isso, para garantir o negócio de uma dúzia de famílias da metrópole, mantivemos uma guerra fora de tempo e fora da justiça durante 13 anos, que só terminou com a queda do regime. E porque foi tão mal conduzido o final da colonização e tão errada a guerra, a descolonização foi um desastre cujo preço foi pago, não pelos donos da colónia, mas pelos colonos pobres, impreparados para uma saída apressada.

E para trás, depois de 500 anos, não deixámos, conforme era nosso estrito dever, uma elite local capaz de tomar em mãos o destino de uma nova nação. Deixámos, sim, o que ficou à vista: um país dividido entre etnias e facções, que se dilaceraram numa interminável guerra civil que destruiu Angola, finda a qual, os vencedores se instalaram a banquetear-se com o saque do país. E nós a colher as migalhas.

Dito assim, parece que nada de recomendável ficou da nossa passagem de 500 anos por Angola. Mas não é verdade. Muitos portugueses fizeram e deixaram lá obra notável e que nos orgulhou, muitos amaram como sua Angola e deram toda a sua vida por ela, muitos mereceram ficar para a História de Angola, por mais que se reescreva a História. Eles não merecem é a pequena história destes últimos 44 anos das nossas relações com Angola, em que o principal foi sempre a cobiça e a hipocrisia. Isabel dos Santos é o exemplo eloquente disso. Ela manchou o nome de Angola. E, com a nossa cumplicidade, manchou o nosso também.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia


8 pensamentos sobre “Tudo tão irritantemente previsível

  1. “PCP”

    De facto já vi muitos artigos dedicados especificamente aos vários sectores cumplices da máfia do MPLA mas nenhum sobre o PC e outras esquerdas que defenderam o saque de Angola e a corrupção de Portugal pela máfia angolana.

    Chegava ao ponto de na Net choverem acusações de racismo como a esquerda faz sempre que alguém critica alguém que não seja branco.

    Por exemplo no site esquerdista Ladrões de bicicletas censuraram os meus comentários e atiçaram-me os trolls todos que me insultavam e caluniavam por eu referir estes assuntos.

    Acho que esta cumplicidade também devia ser abordada em artigos especificos.

    • Pedro

      “De facto já vi muitos artigos dedicados especificamente aos vários sectores cumplices da máfia do MPLA mas nenhum sobre o PC e outras esquerdas que defenderam o saque de Angola e a corrupção de Portugal pela máfia angolana”

      “Outras esquerdas” ? Quais ?

      O Bloco de Esquerda, sempre se manifestou públicamente contra a “máfia” do MPLA. E, ao contrário do PC, PS, PSD e CDS (repare no cinismo e na hipocrisia oportunista dos direitistas PSD e CDS, a prestarem lôas e vassalagem “ao partido irmão”, no último Congresso do MPLA ainda sob os auspícios do “ZÉDU”), o BE recusou estar presente e explicou porquê !

      E, por exemplo, no blogue direitista “Blasfémias”, onde pontificam a helena matos e o o josé manuel fernandes, essas “penas de ouro da Imprensa Portuguesa”, tem lá um censor de serviço permanente, o “vitinho” cunha que censura a eito quem não escreva “a seu gosto”, para além dos correligionários que me insultaram por que eu não fazia parte do seu côro de hienas…

      • – Não estava a falar do bloco que de facto foi o único partido que se portou á altura no meio de todo este nojo.

        Mas por exemplo, desconfio muito dos silêncios do POUS sobre estes assuntos, fui ver o que pensavam do assunto ao jornal deles e nem uma linha sobre o que se está a passar. Têm vários artigos deste mês sobre países africanos mas nem uma linha sobre Angola, o que acho no mínimo esquisito.

        – Também já fui expulso do Blasfémias, do Observador, do Diabo e de vários outros jornais de direita.

        Mas a censura de uns não justifica a de outros.

        O Ladrões de bicicletas já censurou dezenas de textos meus, o esquerda net nem permite comentários nas suas caixas. É muito pouco coerente com uma suposta condenação da censura…

  2. MST não sabe como é que ISantos fez o 1º milhão. Eu explico.
    Nas esplanadas da ilha de Luanda dos anos 90, pagava-se $5 USD por um café e $20 por uma Sagres. Não havia facturas, ninguém pagava impostos, o que quero que fosse que houvesse para venda era importado e comercializado com margens acima dos 200%. A dificuldade era só uma e chamava-se burocracia. Sem a cadeia burocrática devidamente oleada a simples saida de um contentor do porto podia demorar meses. Ora é fácil de perceber que para empresários próximos do poder esta dificuldade não existia. E nem precisaria subornar ninguém . Bastava o nome para as portas se abrirem . Da mesma forma que um filho do Dr Balsemão com um cv de surf e praia vai ao banco pedir emprestimo para investir num turismo rural e logo se abrem as portas dos cofres. Ou que um filho de Sophia e Sousa Tavares chega a um jornal e diz que quer ser jornalista e se arranja logo secretária vaga. Mas lá está: questionar a ética alheia é fácil.

  3. Sim, Isabel tem rios de dinheiro em contas bancárias em seu nome ou em entidades por si controladas, tem milhares de ações em empresas bem cotadas na bolsa. Por isso é considerada a mulher mais rica de África. Por isso é legítimo suspeitar que tanta fortuna tenha na origem atos ilícitos.

    Agora pergunto eu; e José Sócrates? tem alguma conta bancária com avultados fundos? Tem prédios rústicos ou urbanos em seu nome ou em nome de entidades por si controladas, ou ações? Não! é um homem pobre. No máximo é um homem “remediado” como se costuma dizer…
    Como é possível ter este homem roubado tantos milhões e estar tão pobre! Que raciocínio lógico e tortuoso nos pode conduzir a tal suspeita?

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