O policiamento da linguagem

(Pacheco Pereira, in Público, 14/12/2019)

Pacheco Pereira

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Uma das consequências de uma doença contemporânea da política em democracia nos dias de hoje é o cada vez maior policiamento do pensamento, das imagens, das informações e da linguagem. É um efeito de uma outra tendência dos nossos dias, o incremento do tribalismo que define também as suas fronteiras pela posse ou recusa de léxico que serve de marca de identidade. São processos muito perigosos para a democracia porque não se desenvolvem na fronteira entre democracia e ditadura, mas sim no interior da democracia e dos seus processos de funcionamento. São doenças em que o agressor não vem de fora, mas de dentro, em que o corpo sadio se destrói a si próprio.

São doenças que têm a ver com a cultura e a sociedade, mas que são potenciadas pela existência de ecologias patológicas, a mais importante das quais são as redes sociais, um ambiente miasmático tão pernicioso como um lago sulfuroso, em que a primeira coisa a perder-se é a verdade, ou mesmo a procura da verdade e, logo a seguir, vai a liberdade. O problema é que a pior resposta a este processo é a censura e são as proibições, como se o enxofre se fosse embora por se esconder o lago com tapumes. Pelo contrário, os miasmas do lago reforçam-se com os tapumes e os fumos tóxicos impedem-nos de ver os problemas reais que estão na origem do crescimento do ressentimento, da exclusão, do recalcamento, da marginalização, no interior da democracia. Não vemos, nem queremos ver, depois tapamos o dique com o dedo e os gases com os tapumes.

A verdade é que se somam todos os dias verdadeiras proibições de utilização de vocábulos e expressões, com a constituição de um léxico proibido, dependente de grupos de pressão, e de modismos, aplicados nas redacções dos órgãos de comunicação social e em redes sociais, que permitem insultos, insinuações, falsidades, processos de intenção, mas cortam objectivamente a liberdade de expressão, que – tem que se dizer isto mil vezes –​ é feita para proteger o direito de dizer coisas com que não concordo, que me indignam, e que me enojam, mas que têm o direito de ser ditas.

Este caminho censório não se limita às palavras e estende-se às imagens e mesmo às notícias. Já denunciei aqui a prática do Facebook de fazer cortes daquilo que considera atentar contra as suas regras comunitárias. Mas, o mais grave é a completa barreira a qualquer contestação dos seus critérios e a uma discussão e eventual recurso de decisões arbitrárias, é uma censura por ignorância e proselitismo. O mal é que este tipo de práticas censórias se estende para o conjunto da comunicação social, como foi a reveladora resposta a um artigo de Fátima Bonifácio, mas, mais grave ainda, é a censura noticiosa. Um dos exemplos que já referi – bastante se não completamente solitário –​ foi a ausência de cobertura jornalística às manifestações de apoio a Bolsonaro feitas por elementos da comunidade brasileira em Portugal, sendo que, no fim, foi a candidatura escondida no silêncio que acabou por ser vitoriosa em Portugal. Há aqui um falhanço profissional do jornalismo, mas também uma censura subjectiva ou objectiva, daquilo que não queremos ver, nem falar, porque o abominamos.

A verdade, por muito que custe, é que a censura à direita radical, da extrema-direita aos grupos identitários e “étnicos”, vem da esquerda, sem perceberem que numa sociedade democrática podem atacá-los politicamente com veemência, mas têm que lhes dar o direito da liberdade de expressão e organização, até aos limites constitucionais. E digo assim, moderando-me, porque eu pessoalmente entendo que a constituição é iliberal face ao extremismo de direita, e que uma sociedade democrática sadia suporta bem o extremismo no âmbito da lei, mas é muito mais fragilizada por uma censura que é difusa, discricionária e dependente das modas.

Tudo isto vem a propósito, como se imagina, da admoestação de Ferro Rodrigues a André Ventura sobre a excessiva utilização da palavra “vergonha” e “vergonhoso” nas suas intervenções parlamentares. Fez mal, não porque Ventura se sinta muito incomodado pela “vergonha” do seu país, personificada nos seus colegas políticos e parlamentares, mas porque o policiamento da linguagem é um caminho perigoso e sem retorno.

Deixem lá o homem falar para a sua clientela de indignados profissionais nas redes sociais e, se querem tirar-lhe o terreno à “vergonha”, denunciem antes as “vergonhas” que ele oculta e que o fazem ser o que é, até porque não vão faltar razões, se estiverem atentos e tiverem paciência para falarem com razão.

Eu não me sinto muito contente por ter que estar a defender gente que considero pouco recomendável, mas não deixarei de o fazer se entender que a sua liberdade de expressão estiver a ser posta em causa. Porque, muito pior do que a “vergonha” de André Ventura, são as palmas entusiásticas do grupo parlamentar do PS aos propósitos censórios de Ferro Rodrigues.

4 pensamentos sobre “O policiamento da linguagem

  1. Obrigada, PP. Quando eu, liberaL, mas também com ideias próprias me auto-censuro nas redes sociais, vejo que algo anda muito mal…não só em Portugal como nos EUA, país onde resido. E portanto deixei de fazer comentários. E reparo que quem mais ditatorial é mais de esquerda é, e mais venenosos são. O Estalinismo está bem de saúde, lamentavelmente.

    • Sim, o que não falta é gente a retirar-lhe os meios de produção. Ou se calhar é porque, atingidos 20 anos de consenso económico, é a única forma que os “estalinistas” vêm, mal, para que haja justiça.

  2. Concordo em parte.
    É que pior é dar-lhe espaço visual, falar dele e das asneiras que repetidamente diz.
    Deixem-no a falar sozinho.

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