(Raquel Varela, in raquelcardeiravarela.wordpress.com, 14/11/2022)

Uma das grandes conquistas da modernidade foi a autonomia universitária – antes do capitalismo, quando havia feudalismo, pensar era um dogma religioso, a Igreja, que dominava a propriedade com os senhores feudais, juntos eram o Estado, a afirmação da ciência fez-se afirmando a autonomia universitária contra Deus e contra o Estado. Entrar com a polícia dentro da Faculdade de Letras, quando não estavam pessoas em perigo, não é só ir contra estudantes em luta, é ir contra a afirmação da liberdade cientifica, é o Estado a dizer que pode mandar onde e em quem pensa criticamente.
Para criar dirigentes e cidadãos críticos eles têm que passar pelo processo organizativo de lutas, aprender fazendo, contra o Estado e as instituições – errando também. E sejamos ou não simpáticos à sua causa ninguém poucos duvidam que estes estudantes em Letras e nas outras escolas estão a formar-se e a afirmar-se como cidadãos, não estão resignados a olhar um telemóvel, olhando o umbigo, estão colectivamente a organizar-se por uma causa comum pública. O que se passou em Letras é inadmissível e só é possível graças ao agigantamento da força do Estado na pandemia – com o apoio dos que acharam que saúde pública não era reforço de pessoal e da saúde comunitária (de proximidade) mas ameaças e multas, e, claro, na atitude dos dirigentes de Letras está o impacto da normalização do Chega, que afirma a força bruta contra a luta e o conflito social. Que numa sociedade saudável é um conflito normal, não abafado, com polícia armada a entrar numa Faculdade contra estudantes desarmados que não puderam em perigo ninguém.
Esta semana foi anunciado pela Caixa Geral de Depósitos, cito, “o maior dividendo da sua história”, isto é, lucros extraordinários distribuídos aos activistas que vivem de juros, aos militantes da dívida pública, aos lutadores das taxas, impostos e comissões bancárias. São o Estado. Teria feito algum sentido mandar para lá a polícia e tentar desocupar o banco público dos interesses privados e perguntar, já agora, como é possível anunciar 692 milhões de euros de lucro, e dizer com o orgulho, “é o maior”, quando metade da população vai ao supermercado e tem alarmes na proteína, essencial à vida, ao funcionamento do cérebro, ao desenvolvimento.
Ao Chega, que se diz defensor dos polícias, não ocorreu perguntar porque os polícias são enviados para retirar os estudantes da Faculdade e não para proteger o investimento público do saque privado, a que todos os dias somos sujeitos, pondo em causa a nossa vida, os nossos hospitais, qualidade de vida e bem estar.
O Director da Faculdade, o Reitor, o Governo o que têm a dizer sobre o este atentado democrático aos direitos, liberdades e garantias, onde está a protecção da autonomia universitária, direito basilar das sociedades modernas civilizadas?
Há algo que aqueles estudantes aprenderam e que lhes servirá para a vida toda como estratégia política. O Estado nunca esteve lá para eles para lhes dar um ensino público e gratuito, mas apareceu em dois dias para lhes mandar a polícia. É assim que se aprende sobre teoria geral do Estado, de Weber a Marx a Faculdade de letras teve uma aula prática.