(Francisco Louçã, in Expresso, 28/09/2019)
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Por isso, Assunção Cristas vai perdendo terreno e Rui Rio só recupera alguma coisa ao sair da equação, com uma pose de sinceridade que o deixa prometer apoio ao PS para se ver livre da esquerda, como o fez no último ano, ou que cairá de pé, na sua expressão mais recente. Há nisto tudo algum encanto pelo discurso direto, mas nenhuma alternativa. António Costa será primeiro-ministro, Centeno continuará a ser tão ou mais popular na direita do que os chefes da dita.
Este impasse resulta de uma impossibilidade: a direita que triunfou no passado sendo reaganiana, já não o pode ser; e a que agora triunfa lá fora sendo trumpista, ainda não pode ser imitada entre nós.
O DILEMA REAGAN-TRUMP
Este dilema Reagan-Trump exprime-se claramente no CDS. Nuno Melo foi o ensaio Trump, um discurso de raiva contra as esquerdas, uma alusão cultural tremendista (“querem destruir todos os nossos valores”, atroou esta semana) e a tentativa de polarização que radicalizasse a direita. Foi varrido nas europeias. Cristas percebeu o recado, virou-lhe as costas e regressou ao passado para o ensaio Reagan: queremos que a tal classe média alta pague menos impostos, tenha colégios e hospitais privados subsidiados e possa pagar a inscrição do menino na universidade, mesmo que não tenha estudado para o exame. Era a promessa reaganiana, os do meio e de cima hão de subir com a nossa mão. Chamava-se “meritocracia”, para criar alguma identidade autorreferencial.
Não resultou, dado que num país tão desigual este elevador do privilégio protegido cai mal. É muito Linha de Cascais. No seu tempo, Reagan teve a habilidade de fazer pensar aos jovens com curso universitário que poderiam ser CEO de multinacionais e viver no paraíso. Todos podem lá chegar, e ganhou eleições. Quarenta anos depois, esse discurso soa a despejos das casas dos idosos nos bairros históricos.
Obviamente, Rui Rio, que procura raízes eleitorais numa população mais vasta, evita esse nicho. Ele ganhou a Câmara do Porto com sobranceria anticultural, mas com votos populares e até com atrevimento anticlube de futebol. Mesmo que fique agora numa terra de ninguém, que o leva a uma única disputa, com a marca eleitoral de Santana Lopes. Portanto, nada resulta à direita nestas eleições.
A TENTAÇÃO TRUMP
Devido a esse vazio, a tentação Trump sobrevive em alguns aspirantes, mesmo depois da experiência falhada das europeias. Pode-se alegar que Miguel Morgado ou Bruno Vitorino, entre outros que arrastaram o grupo parlamentar do PSD para a indignação contra o respeito pelos jovens em transição de identidade de género e as suas famílias, são muito marginais e que só se tornam notícia pela extravagância. O problema da estratégia Trump é este, não tem ninguém, nem tem modo de criar uma fronteira tribal. Não há tribo sem ódio, não há ódio sem fronteira.
Quem leu o “Lamento de Uma América em Ruínas”, de J.D. Vance, sabe como isso foi surgindo nos Estados Unidos. Ele é licenciado em Direito em Yale, uma escola de elite, dirige uma agência financeira em Silicon Valley, mas vem de uma família pobre. E é essa história que conta no livro. A família tinha-se mudado de Kentucky para Middletown, uma pequena cidade siderúrgica no Ohio; são operários e brancos, com uma história de desespero, pobreza, fuga à escola, drogas e prisões; os filhos são criados pelos avós. Quase nenhum deles teve emprego certo, vivem da segurança social e do que aparecer.
Escreve Vance: “Na sociedade americana que tem consciência das questões de raça, o nosso vocabulário normalmente não vai além da cor da pele de alguém: ‘negro’, ‘asiático’, ‘brancos privilegiados’. Às vezes, essas categorias amplas são úteis, mas para compreender a minha história é preciso prestar atenção aos detalhes. Posso ser branco, mas não me identifico com os ‘brancos protestantes e anglo-saxões’ do Nordeste dos Estados Unidos. Pelo contrário, identifico-me com os milhões de americanos brancos da classe operária, descendentes de escoceses e irlandeses, que não possuem um diploma universitário. Para essa gente, a pobreza é uma tradição familiar (…). Os americanos chamam-lhes ‘saloios’, ‘labregos’, ou ‘escumalha branca’. Eu trato-os por ‘vizinhos’, ‘amigos’ e ‘família’”. São estes norte-americanos pobres nas pequenas cidades, tratados como “labregos” e invisíveis, que desequilibraram as eleições presidenciais onde Trump venceu.
PODE O ÓDIO VENCER?
Ou seja, a história de J.D. Vance sugere que terá sido a identidade humilhada e tribal que decidiu o voto destes eleitores, que simplesmente gritam contra a sua condição de margem. Por isso bebem o discurso contra os mexicanos ou contra as mulheres. O seu ressentimento contra a invisibilidade convida a um discurso apocalíptico, que Trump encarnou. A segunda característica é que estes discursos discriminatórios têm por função confirmar um conservadorismo profundo, quando o mundo em que estas pessoas são infelizes se está a desmoronar. Ao prometerem ao homem pobre um poder desmedido sobre a mulher, estão a confirmar-lhe a força mais rude. Esta ilusão do poder é um paliativo barato e eficaz.
O problema é que a direita portuguesa sabe que, para ser Trump, precisa de encontrar a sua tribo e o seu ódio. Assunção Cristas e Rio não contarão para esse campeonato. Virão os próximos e veremos a sua cor.
A City vai fugir de Londres?
Um dos mistérios que o imbróglio do ‘Brexit’ coloca à teoria política, se não também ao jornalismo, é a explicação da inoperância da City londrina, uma das praças financeiras mais poderosas, mais antigas e mais resistentes do mundo, no condicionamento das escolhas do Partido Conservador e dos governos de Cameron, May e Johnson. Se a sua teoria era que a elite financeira manobra os governantes com pouco subtis fios de marionetes, esqueça, nada disso. A autonomia da coisa política em relação ao poder económico talvez se afirme mais em tempos de viragem e de crise, mas é evidente que nada do que se está a passar apoia uma estratégia de globalização, que é a ecologia confortável para a finança. O que é certo e sabido é que, se a finança desejava estabilidade e abertura de mercados, mais desregulação e livre trânsito, então falhou no ‘Brexit’ e deixou que estas desventuras atingissem o seu reino.
A City é o maior centro financeiro do mundo. Por ela passam 37% das transações cambiais e 18% do crédito transfronteiriço do planeta, registando 20 biliões de dólares de ativos bancários. É ainda a sede de empresas e instituições financeiras, entre as quais as que fixam taxas de juro de referência para diversas operações. A sua atividade representa 6,5% do PIB e 11% do rendimento fiscal do Reino Unido, gerando tanto lucro declarado como toda a indústria automóvel alemã. É um colosso, que cresceu ao longo dos tempos: entre 1987 e a crise do subprime, quase dois terços do capital no Reino Unido estava aplicado na finança (mas nos EUA era 80%), e só o terço restante estava relacionado com a produção doméstica. A City dominava o país e geria o mundo.
Veio então o ‘Brexit’. Pelos registos mais recentes, 219 grandes empresas financeiras já deslocaram toda ou alguma atividade para o continente, temendo barreiras criadas pela saída desordenada. A própria Bolsa de Londres transferiu para Milão algumas das suas operações com dívidas soberanas. E muitas outras agências financeiras esperam para ver, sendo que as mais poderosas já têm sucursais em praças continentais ou asiáticas, ou também nos EUA. Aqui tem: a City não vai sair de Londres, mas as atividades externas dos principais grupos financeiros vão crescer. O que também indica que, se estão a virar as costas à política britânica, a recomposição desta direita descartará o velho partido tory, ou só recuperará parte dele. Era o partido de direita mais antigo da Europa, sempre fiel à City. Agora tresmalhado, para sua pesada desgraça, segue para abate.
Gostei muito do retrato que fez da nossa direita, seria difícil maior exactidão, o Centeno esvaziou completamente a direita. No entanto, mais do que isso, parece-me que a política esquerda/direita como a conhecemos até há data, está a deixar de encontrar eco na maior parte da população, principalmente jovem. As pessoas querem ver os seus problemas resolvidos, independentemente da política que governa, estão sensibilizadas para questões que muitas vezes não têm reflexo em determinada linha de pensamento, daí o sucesso PAN, que sendo completamente incapaz de se definir e dizer ao que vem, vai capitalizando. A única coisa que se pode ambicionar para melhorarmos, será uma reedição da geringonça, com um Centeno menos virado para fora (o que é impossível) ou sem Centeno.
Quanto ao efeito Trump que tem provocado danos ao mundo (e não sei se irreversíveis), acabará no dia em que os conservadores correrem com ele, visto que os democratas estão hesitantes e já o podiam ter feito, se esperam pelas eleições tudo pode acontecer, não porque votem nele, mas porque ele tenciona perpetuar-se no poder. Gostei muito dos seus artigos e concordo com a visão.👌
Parece que o senhor Louçã não percebeu patavina do livro do Vance.
Talvez por tocar nas culpas da esquerda na ascenção da extrema direita trumpiana.
O que o livro lhe tenta explicar é que na sociedade actual a figura do “branco privilegado” é uma mentira RACISTA insultuosa contra os povos brancos compostos essencialmente por massas de trabalhadores que de privilegiados não têm nada.
De cada vez que a esquerda vem com a aldrabice do “racismo estrutural” de sociedades como a portuguesa de 2019 está a insultar milhões de trabalhadores brancos que vivem exatamente nas mesmas condições que os trabalhadores negros.
De cada vez que se vem com a treta que é racismo muitos dos postos de trabalho mais baixos serem ocupados por negros, está a insultar a maioria dos trabalhadores que ocupam essas posições, e que embora a esquerda não veja, por acaso até são brancos.
Informar um trabalhador branco, que, por exemplo, trabalhe nas limpezas ou na segurança ao lado de trabalhadores negros, que é um “privilegiado” por ser branco – é um INSULTO RACISTA.
Dirse-ia que a esquerda tem interesse no crescimento da extrema direita para justificar a sua existência.