Marxistas somos todos nós

(Atílio Bóron, in Resistir, 01/08/2019)

Karl Marx

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Os trogloditas da direita argentina quiseram desqualificarAxel Kicillof acusando-o de “marxista”. Este ataque revela o nível cultural primário dos seus críticos, ignaros quanto à história das ideias e teorias científicas elaboradas ao longo dos séculos. É óbvio que na sua inépcia desconhecem que Karl Marx produziu uma revolução teórica de enorme alcance na história e nas ciências sociais, equivalente, segundo muitos especialistas, ao que no seu tempo produziu Copérnico no campo da Astronomia. Por isso hoje, quer o saibamos ou não (e muitos não o sabem) somos todos copernicianos e marxistas, e quem quer que negue essa verdade revela-se como um grosseiro sobrevivente de séculos passados alheado das categorias intelectuais que lhe permitem entender o mundo de hoje. 

Copérnico argumentou na sua grande obra, A Revolução das Esferas Celestes, que era o Sol e não a Terra quem ocupava o centro do universo. E, além disso, ao contrário do que sustentava a Astronomia de Ptolomeu, ele descobriu que nosso planeta não era um centro imóvel em torno do qual giravam todos os outros, mas ela mesma se movia e girava. Lembre-se das palavras de Galileu quando os médicos da Inquisição o obrigaram a retratar-se da sua adesão à teoria de Copérnico: “E no entanto ela move-se”, sussurrou para os seus censores que ainda estavam enfurecidos com Copérnico mais de um século depois da formulação da sua teoria. 

Descoberta revolucionária, mas não apenas no campo da Astronomia, pois punha em questão crenças políticas cruciais de sua época. Como recorda Bertolt Brecht na sua magnifica peça Galileu, a dignidade e a sacralidade dos tronos e poderes foram irremediavelmente prejudicados pela teorização do astrónomo polaco. Se, na teoria geocêntrica de Ptolomeu, o papa, reis e imperadores eram excelsas figuras que estavam no topo de uma hierarquia social num planeta que não era nada menos que o centro do universo, com a revolução coperniciana eles foram reduzidos à condição de frágeis reizinhos de um pequeno planeta, que como tantos outros, girava em torno do sol. 

Quatro séculos depois de Copérnico, Marx produziu una revolução teórica de envergadura semelhante ao deitar por terra as concepções dominantes sobre a sociedade e os processos históricos. A sua genial descoberta pode resumir-se assim: a forma como as sociedades resolvem as suas necessidades fundamentais – alimentar-se, vestir-se, abrigar-se, proteger-se, promover o bem-estar, possibilitar o crescimento espiritual da população e garantir a reprodução da espécie – constituem a indispensável sustentação de toda a vida social. 

Sobre este conjunto de condições materiais cada sociedade constrói um imenso entrelaçado de agentes e estruturas sociais, instituições políticas, crenças morais e religiosas e tradições culturais que vão variando à medida em que o substrato material que as sustem se vai modificando. 

Da sua análise, Marx extraiu duas grandes conclusões: primeiro, que o significado profundo do processo histórico assenta na sucessão das maneiras pelas quais homens e mulheres enfrentaram esses desafios ao longo de milhares de anos. Segundo, que essas formações sociais são inerentemente históricas e transitórias: elas surgem sob certas condições, expandem-se, consolidam-se, atingem o seu pico e então começam um declínio irreversível. Portanto, nenhuma formação social pode aspirar à eternidade e muito menos o capitalismo, dada a densidade e a velocidade com que as contradições que lhe são próprias se desenvolvem. Más notícias para Francis Fukuyama e seus discípulos que no final do século passado anunciaram ao mundo o fim da história, o triunfo dos mercados livres, da globalização neoliberal e da vitória final da democracia liberal. 

Tal como acontecera com Copérnico na Astronomia, a revolução teórica de Marx deitou por terra o conhecimento convencional que prevalecera durante séculos. Este conhecimento concebia a história como um desfile caleidoscópico de personalidades notáveis (reis, príncipes, papas, presidentes, chefes de Estado, líderes políticos, etc) pontuado por grandes eventos (batalhas, guerras, inovações científicas, descobertas geográficas). 

Marx pôs de parte todas essas aparências e descobriu que o fio condutor que permitia decifrar o hieróglifo do processo histórico foram as mudanças que ocorreram no modo como homens e mulheres se alimentavam, vestiam, abrigavam e davam continuidade à sua espécie, tudo o que sintetizou sob o conceito de “modo de produção”. Essas mudanças, nas condições materiais da vida social, deram origem a novas estruturas sociais, instituições políticas, valores, crenças, tradições culturais, enquanto decretavam a obsolescência das precedentes, embora não houvesse nada de mecânico ou linear nesse condicionamento “em última instância” do substrato material da vida social. 

Com isto Marx desencadeou na história e nas ciências sociais uma revolução teórica tão retumbante e transcendente quanto a de Copérnico e, quase simultaneamente, como a que fluiu das revelações sensacionais de Charles Darwin. E assim como hoje se tornaria objecto de riso mundial quem reivindicasse a concepção geocêntrica de Ptolomeu, não teriam melhor sorte aqueles que acusassem alguém de “marxista”. Porque isso nega o papel fundamental que a vida económica desempenha na sociedade e também os processos históricos (dos quais Marx foi o primeiro a colocar no centro da cena). 

Quem profere tal “insulto” confessa, para sua vergonha, a sua ignorância dos últimos dois séculos no desenvolvimento do pensamento social. Personagens grotescos como esses não apenas se tornam pré-copernicianos, mas também pré-darwinianos, pré-newtonianos e pré-freudianos. Eles representam, em suma, uma fuga para a parte mais obscura do pensamento medieval. 

Bem, mas acima foi dito é que “somos todos marxistas”? Acho que sim, e pelas seguintes razões: se algo caracteriza o pensamento e a ideologia da sociedade capitalista, é a tendência para a comercialização total da vida social. Tudo em que o capital toca se torna mercadoria ou um facto económico: das crenças religiosas a antigos direitos, consagrados em tradições multisseculares; da saúde à educação; da segurança social às prisões, ao entretenimento e informação. 

Sob o domínio do capitalismo, as nações degradam-se à categoria de mercados e o bem estar ou mal social são medidos exclusivamente pelos números da economia, pelo PIB, pelo défice das contas públicas ou pela capacidade exportadora. 

Se alguma impressão deixou o capitalismo na sua passagem pela história – transitória, porque como sistema está destinado a desaparecer, como aconteceu sem excepção com todas as formas económicas que o precederam – tem sido tornar a economia o parâmetro supremo para distinguir a boa e a má sociedade. 

A ordem do capital erigiu o mercado como seu deus e as únicas ofertas que este moderno Moloch admite são as mercadorias e os lucros que a sua troca produz. A ênfase subtil e cautelosa que Marx deu às condições materiais – sempre mediada por componentes não económicos, como cultura, política, ideologia – atinge no pensamento burguês extremos de vulgaridade que confinam o obsceno. 

Escutemos aquilo com que Bill Clinton confrontou George Bush na campanha presidencial de 1992: “É a economia, idiota!”. E é suficiente ler os relatórios de governos, académicos e organizações internacionais para verificar se o que distingue o bem do mal de uma sociedade capitalista é o progresso da economia. Quer saber como é um país? Veja como os seus títulos do Tesouro são negociados na Wall Street ou qual é o índice de “risco” do seu país. Ou ouçam o que os governantes da direita lhe dizem mil vezes para justificar o holocausto social a que submetem o povo através dos ajustes no orçamento, afirmando que “os números governam o mundo”. 

Personagens como esses compõem uma classe especial e aberrante de “marxistas” porque reduziram a descoberta radical de seu fundador e toda a complexidade do seu aparelho teórico a um economicismo grosseiro. O “materialismo economicista” é uma versão abortada, incompleta e distorcida do marxismo, mas é muito conveniente para as necessidades da burguesia e de uma sociedade que só conhece preços e nada de valores. Um marxismo deformado e abortado porque a burguesia e seus representantes só se apropriaram de parte do argumento marxista: o que destacava a importância decisiva dos factores económicos na estruturação da vida social. 

Por instinto certeiro puseram de lado a outra metade: a que estabelecia a dialéctica das contradições sociais – o incessante conflito entre as forças produtivas e as relações de produção e a resultante luta de classes – que conduziriam inexoravelmente à abolição do capitalismo e à construção de um tipo histórico de sociedade pós-capitalista. Que isso não esteja iminente não significa que não vá acontecer. Por outras palavras: o “marxismo” de que as classes dominantes no capitalismo se apropriaram através dos seus intelectuais orgânicos foi reduzido a um materialismo economicista grosseiro. 

Por isso hoje somos todos marxistas. Os marxistas mais aberrantes, de “cozedura incompleta”, exaltam até ao paroxismo a importância dos acontecimentos económicos e ocultam conscientemente que as dinâmicas sociais levarão, mais cedo ou mais tarde, a uma transformação revolucionária da sociedade actual. Esse economicismo é o grau zero do marxismo, seu ponto de partida, mas não o ponto de chegada. É um marxismo truncado no seu desenvolvimento teórico; Ele contém os germes do materialismo histórico, mas estagna nas suas primeiras hipóteses e ignora – ou esconde conscientemente – o resultado revolucionário e a proposta de construir uma sociedade mais justa, livre e democrática. 

Mas temos outros marxistas para quem a revolução teórica de Marx não só corrobora a transitoriedade da sociedade actual como também sugere os caminhos prováveis da sua superação histórica, seja por diferentes meios revolucionários ou pela dinâmica imparável de um processo de reforma radicalizado. 

Contra os marxistas inacabados, da “cozedura incompleta”, apologistas da sociedade burguesa, defendemos a tese de que o modo de produção capitalista será substituído, por meio de intensos conflitos sociais (porque nenhuma classe dominante abdica do seu poder económico e político sem lutar até ao fim) para finalmente dar à luz uma sociedade pós-capitalista e, como disse Marx, pôr fim à pré-história da humanidade. Porém, para além dessas diferenças, somos todos filhos do marxismo no mundo de hoje. Não poderíamos deixar de ser marxistas, assim como não poderíamos deixar de ser copernicianos. 

O capitalismo contemporâneo é muito mais “marxista” do que quando, há quase dois séculos, Marx e Engels escreveram o Manifesto do Partido Comunista. A diatribe contra Axel Kicillof é um desabafo que pinta o brutal anacronismo de vastos sectores da direita argentina e latino-americana e dos seus representantes políticos e intelectuais, que no seu escandaloso atraso receiam os avanços produzidos pelos grandes revolucionários do pensamento contemporâneo. Eles desconfiam de Darwin e Freud e acreditam que o marxismo é o delírio de um judeu alemão. 

Mas, como Marx disse com astúcia, alguns são marxistas como Monsieur Jourdain, aquela curiosa personagem de O Burguês Gentil-Homem de Molière que falava em prosa sem o saber. Eles balbuciam um marxismo desenfreado, transformado num economicismo grosseiro e sem a menor consciência da origem dessas ideias na obra de um dos maiores cientistas do século XIX. Outros, por seu lado, sabem que o marxismo é a teoria que nos ensina como o capitalismo funciona e que, portanto, fornece os instrumentos que nos permitirão deixar para trás este sistema desumano, predatório e destrutivo da natureza e das sociedades, que se alimenta de inúmeras e intermináveis guerras que ameaçam acabar com toda a vida deste planeta. 

Portanto, longe de ser um insulto, ser um marxista no mundo de hoje, no capitalismo de nosso tempo, é um timbre de honra, constituindo uma nódoa indelével naqueles que o expressam como um insulto. 


Fonte aqui

9 pensamentos sobre “Marxistas somos todos nós

  1. «Portanto, nenhuma formação social pode aspirar à eternidade e muito menos o capitalismo, dada a densidade e a velocidade com que as contradições que lhe são próprias se desenvolvem.»

    Quase tudo o que diz o Atílio Bóron corresponde à teoria económioco-sociológica de Marx e do marxismo exacto mas o conteúdo da frase acima, contém um aditamento pessoal e espúrio relativamente ao marxismo de Marx tão evidente que, a ser de Marx, contrariaria totalmente a conclusão a que chegou Marx e que foi o objectivo fundamental do estudo formidável e incansável de rato de biblioteca que foi Karl Marx.
    Precisamente, a conclusão de Marx depois do seu exaustivo estudo acerca do modo de produção e do capital foi admitir, primeiro como verdade histórica e depois como científica que descobrira as leis que regem o processo histórico e partindo dessas leis bastava criar um Estado que detivesse todos os meios de produção e obter-se-ia primeiro o Socialismo e depois o Comunismo como Sociedade sem contradições internas e, consequentemente, imutável e definitivo.
    Marx declarou até que, perante tal modelo de Sociedade, estávamos perante o fim da história.
    Portanto se Marx teorizava para determinar como se regiam os processos históricos que detectara e estudara as suas leis universais e concomitantemente propunha as leis e o método como solucionar e atingir o fim definitivo desse processo histórico para obter uma Sociedade sem contradições internas e, por conseguinte, estável e invariante definitivamente, é evidente que jamais teria dito que “nenhuma formação social pode aspirar à eternidade” precisamente no momento em que declarava essa possibilidade.

    • Não sei se disse ou não, mas nada impede que seja mais uma das contradições do próprio Marx.

      Por exemplo, Marx pretendia ser contra o determinismo, mas era ele próprio um determinista típico do seu tempo ao vaticinar que a sociedade iria evoluir numa direção precisa. Um autêntico tarólogo…

      A gente sabe lá para onde vai a sociedade no muito longo prazo. Por vezes nem no curto sabemos e Marx e o marxistas posteriores são exemplos de erros sucessivos nas previsões.

      Há duzentos anos que nos andam a dizer que o capitalismo está mesmo, mas mesmo no fim…

      Marx foi bom e realmente científico a explicar o funcionamento do capitalismo, mas pretender que a economia é base de todo o pensamento humano e que a sociedade vai numa direção precisa são erros grosseiros do marxismo, explicáveis pelo contexto datado da época em que foi criado.

      Nessa época abundavam os determinismos e as explicações gerais do sentido e significado da história, que se pretendiam todas “científicas” desde marxistas, cientivistas, racistas, you name it.

      • Pedro! Quando se avocam radicalismos, tudo que possa contrariar suas convicções são motivação para buscar factos que, descontextualizados do seu todo, acabam por adulterar a verdadeira opulência da obra. Ninguém é perfeito, e a subjectividade de cada um sempre emana do que exprime. MARX é tal como é referido no texto alguém que como revolucionário tem similaridade com COPÉRNIO. Querer desmontar, não vai adiantar nada para qualquer leitor que se debruce sobre os factos, a realidade e a evolução das consequências, isto desde que possua a necessária capacidade de entendimento e reflexão criteriosa.

        • Eu evoquei radicalismos ?

          Até reconheci que Marx deu um grande contributo para o estudo do capitalismo.

          Apenas apontei duas falhas evidentes de Marx.

          O determinismo e a convcição de que todo o pensamento humano é economia.

          Se tem a capacidade de compreender que ninguém é perfeito, nem o Marx, deixe de chamar “avocador de radicalismos” a quem apenas aponta os defeitos evidentes de Marx.

          Por falar nisso a teoria coperniciana revelou-se mesmo perfeita, já a marxista…

          Não diga que não deu pela queda da URSS, que andou 70 anos a afirmar que o capitalismo estava a cair…

  2. Era bom, não era?… Mas, como se vê pelos comentários já aqui colocados, infelizmente, a confusão continua a imperar em torno da análise Marxiana (aquela elaborada por Karl Marx, ele mesmo) do Capital.

    • O problema é que os próprios marxistas não parecem capazes de esclarecer nada.

      Limitam-se a dizer que o homem é um génio e prontos.

      Quanto aos capitalistas, na forma indicada pelo texto, serem também “marxistas” até concordo.

      Que o homem tenha sido um génio, sim, mas com muitas falhas. Continua a ser um elogio, visto que a maior parte da humanidade não é constituida por génios.

      Já sermos todos marxistas, calma aí.

      Eu, como independente, não me considero marxista (nem capitalista).

      Estou fora desses jogos.

      • Estava a ir tão bem, e borra a pintura no último parágrafo. Estamos todos dentro do jogo e da luta, activos ou só peões, podemos é não ter uma opinião definitiva e super definida… O que é positivo, porque, como diz, o futuro não é inevitável.

        • Eu não disse que estava fora da luta, mas estou fora dos joguinhos das filiações ideológicas.

          As ideologias podem ser brilhantes, mesmo geniais. Mas nenhuma consegue captar a complexidade do real.

  3. Para que conste…
    Da leitura/estudo da obra de Karl Marx (e, já agora, Friedrich Engels) ficou-me (mais ou menos) o correspondente àquilo que os estudantes de Física estudam sobre «gravitação universal», sem que tenham estudado uma linha dos escritos de Newton ou Einstein. Ou seja, uma nova ONTOLOGIA e as consequentes ilações lógicas.
    A partir daí, tal como somos todos «Einsteinianos» (embora o «Newtonianismo» chegue e sobre para projectar idas à Lua), também era bom que fôssemos todos «Marxistas» (ou «Marxianos», tanto se me dá…).
    As divergências normalíssimas deveriam ser (num mundo utópico em que toda a gente estuda «Q.B.» para perceber o mundo) apenas – as divergências» – sobre o que fazer para «mudar o mundo», tendo em linha de conta as «leis» descobertas por Karl Marx que, como assinalava John Stuart Mill são sempre, mas sempre, tendenciais.
    Disse.

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