A tropa adversativa de Bonifácio

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 16/07/2019)

Daniel Oliveira

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Por excesso de voluntarismo e valentia, uma camarada caiu no campo de batalha. E os seus companheiros não a deixaram só. José Manuel Fernandes foi o primeiro a gritar presente. Veio para criticá-la “sem meias palavras”, avisa-nos. “As generalizações feitas por Fátima Bonifácio são abusivas, caricatas, mesmo ofensivas”. Muito bem… “Mas há verdades no texto que não podemos ignorar”. Longe vão os tempos em que esta direita largava uma lágrima furtiva pela libertação do Iraque e não permitia a ninguém uso de qualquer “mas”. Agora é vê-los mergulhar de cabeça num mar de adversativas.

Justiça seja feita, sem o considerar racista e aproveitando imediatamente para colar o raciocínio da sua amiga à “esquerda identitária”, José Manuel Fernandes vai fazendo algumas crítica importantes ao texto de Bonifácio. Rui Ramos é que não perde grande tempo com isso. Prometendo “tentar ser muito claro”, atira-se a Fátima Bonifácio com um brutal “não evitou alguns equívocos”. Claríssimo! Para concluir que nada do que ela escreveu, se ele percebeu bem, “faz da autora uma ‘racista’ e muito menos do seu artigo um ‘manifesto racista’”. Porque se retirarmos do texto tudo o que é racista, abusivo, caricato e ofensivo, o texto não é racista. E não sendo racista, quer dizer que é a esquerda que inventa os racistas. E é isso mesmo que Rui Ramos diz, logo no título. Com a acusação costumeira de que as quotas servem para alimentar o clientelismo universitário, que um dia destes me levará a escrever um texto sobre a lata de alguma direita moralista, absentista e instalada no confortável funcionalismo académico.

Helena Matos nem sequer perdeu tempo a distanciar-se do texto. Além de não interessar para nada se ela discorda ou concorda com o texto, ele limitou-se a repetir o que se diz nas periferias de Lisboa e Setúbal. Resolvido o problema, o que interessa é a “fatwa” contra Fátima Bonifácio. É bom recordar que Helena Matos já se tinha indignado com a fatwa contra Mário Machado, acusando a esquerda de andar a caçar fantasmas, imaginando fascistas em todo o lado. O texto de Fátima Bonifácio não é racista, Mário Machado não fascista. Quando aparecer alguém a defender a Solução Final, a Helena Matos logo nos avisa se já podemos dizer alguma coisa que ela não considere uma “fatwa”.

O assunto foi tão animado que até Vasco Pulido Valente interrompeu a escrita semanal do mesmo texto de sempre, agora em forma de pequenos posts, para elaborar uma lista de esconjurados. Começou por explicar, com um único argumento, porque é que Fátima Bonifácio não é racista: “Conheço a Fátima há quase 50 anos. Nunca dei por que ela fosse xenófoba ou racista”. Se Pulido Valente não deu por nada é porque não existe. Queixando-se da “caçada às bruxas”, organiza a sua. Nem João Miguel Tavares, para sempre excomungado pelo papa Valente, escapa. E o mesmo homem que não vê nada de racista naquele texto denota na expressão “neo-reacionarismo” de Rui Tavares o perfil de um “tirnate” que a usa com os mesmos objetivos que os estalinistas usaram o antifascista – “para esconder a sua verdadeira face e condenar por grosso os seus inimigos”. Conhecesse o Rui Tavares há 50 anos e ele poderia defender que os gulags nunca existiram sem qualquer reparo. Assim, passa imediatamente para primo-direito dos seguidores de um dos maiores criminosos da história.

A tropa da Bonifácio exige silêncio. Eles dedicarão três frases de raspanete amigo a um texto inqualificável e, depois de ligeiras correções, explicarão o que deveremos debater. A “alcateia” que se atreva a reagir sem a sua grelha de leitura está a lançar uma “fatwa” para iniciar uma “caçada às bruxas” que cale “verdades que não podem ser ignoradas”

Dado o tom, as libelinhas seguiram o vento. E, subitamente, o tema já não era o texto de Fátima Bonifácio. Era a censura. Coisa estranha perante um texto que foi publicado e largamente citado. Era os processos-crime, tratados como um abuso censório e não como um recurso ao Estado de direito, com as garantias que ele nos dá. E era, mais do que tudo, as reações. Ou seja: nem censura, nem processos-crime, nem reações. A tropa da Bonifácio exige silêncio. Eles dedicarão três frases de raspanete amigo a um texto indiscutivelmente racista e, depois de ligeiras correções, explicarão o que deveremos ali debater. A “alcateia” que se atreve a reagir sem a sua grelha de leitura está a lançar uma “fatwa” para iniciar uma “caçada às bruxas” que cale “verdades que não podem ser ignoradas”.

Há uns bons anos, alguém conotado com a esquerda que estava no mesmo lugar que Fátima Bonifácio – não era colaboradora permanente do “Público” e enviou um texto para o jornal – teve o lapso de escrever “holocausto” com “h” pequeno, quando usou a expressão “o horror do holocausto” num artigo muito crítico de Israel durante a guerra com o Líbano. José Manuel Fernandes era então diretor e, sem contactar a autora do artigo, pôs uma nota final no texto: “O Público não alterou a grafia deste texto, designadamente o facto da autora escrever Holocausto com caixa baixa.”. A brincadeira de não alertar a autora para o lapso e fazer uma nota maldosa no final mereceu forte admoestação do provedor do leitor: “O ‘Público’ optou por associar implicitamente a cronista ao negacionismo”. Esta é a mesma pessoa que mantém uma posição critica mas apaziguadora em relação a um artigo onde se escreve que os negros e os ciganos não partilham dos nossos valores morais, que não “fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade” e que não “descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789”.

Este duplo critério tem duas origens. Uma é a conhecida desonestidade intelectual de José Manuel Fernandes, que o leva a insinuar negacionismo na ausência de uma capitular e a não encontrar racismo em qualquer coisa que não proponha a solução final, apenas porque no primeiro caso está uma pessoa de esquerda e no outro uma de direita. A outra é um equívoco: a de que a identidade das suas vítimas e não a motivação e métodos dos seus autores é que é relevante no Holocausto. Isto permitiu que alguma direita, por motivos estritamente oportunistas e até com algumas motivações de novo ódio a outro grupo (os muçulmanos), absorvesse de uma vez por todas o combate ao antissemitismo sem nada perceber das razões profundas desse combate. Achando que se o destinatário da ofensa for outra etnia não tem mal nenhum. Mesmo que seja a outra grande vítima do Holocausto: os ciganos. Desde que se continue a escrever com maiúscula, está tudo certo.

Pensem num texto que substituísse a fronteira moral que Bonifácio traçou entre negros e ciganos, por um lado, e brancos, pelo outro, por uma fronteira entre judeus e não-judeus. Depois acrescentem-lhe as generalizações “abusivas, caricatas, mesmo ofensivas” que poderiam ser adaptadas aos preconceitos falsos e típicos em relação aos judeus, como a cupidez ou a avareza. Não tenho dúvidas em dizer que não seria publicado e, se o fosse, Fátima Bonifácio seria para sempre erradicada do espaço público, incluindo por esta sua guarda pretoriana. A diferença é apenas esta: uns conseguiram, ao fim de séculos de perseguição, conquistar finalmente o direito a defender a sua identidade, outros não conquistaram sequer o direito a deixarem de ser vítimas de bullying público da direita radical. Como no passado, ela sabe este discurso lhe garante o apoio popular de que as suas propostas económicas carecem. Como diz Helena Matos, é o que as pessoas dizem nas periferias.

Há muitos temas para discutir em torno das quotas e dos riscos que a obsessão identitária tem para a democracia e para a política. Tratei de muitas das coisas que me inquietam num texto sobre as políticas identitárias da esquerda, a propósito do livro de Mark Lilla. Um tema que está muitíssimo longe de ser novo e fácil. Quando este texto de Bonifácio estiver enterrado na memória e não conspurcar mais esta conversa, voltarei a ele. Mas ao virem em defesa do que é indefensável, branqueando um texto indiscutivelmente racista, negando o racional do que foi escrito para aproveitarem o emocional que ele alimenta, estas pessoas tornaram-se interlocutoras imprestáveis para este debate.

18 pensamentos sobre “A tropa adversativa de Bonifácio

  1. «O assunto foi tão animado que até Vasco Pulido Valente interrompeu a escrita semanal do mesmo texto de sempre, agora em forma de pequenos posts, para elaborar uma lista de esconjurados.», ui?!

    Nota. Vale mais um pintelho do Vasco Pulido Valente do que a tua obra literária magnífica toda, ó bronco!

    • Não te sabia fã do VPV, RFC. Mas não é de estranhar. Já agora de qual deles: 1) Do polido que não é Valente; 2) Do Valente que não é polido; 3) Ou de ambos bem regados a whiskey escocês? 🙂

      • Nota, de agora. Epá, essa do Vasco é velha (e tens de ler o teu blogue ou ires bebricando águal del cano, está visto). Poderias ir para o MEC nos tempos gloriosos do Indy, ou da Kapa, onde o excelente VPV também andou.

        _____

        1.

        […]

        Nota, 4U. Toma lá, Nicolás Madureira, qu’é para aliviares o stress com que começaste a semana (o VPV está de volta a casa).

        https://pbs.twimg.com/media/Dw0HQp7X4AANFLN.jpg

        Fonte: P., 12.1.2019, p. 7 (sublinhado, supra).

        2.

        RFC diz:
        Abril 20, 2019 às 6:24 pm

        Notas, duas.

        Porra, depois das parvoeiras do Daniel Oliveira temos de gramar as cenas do Pedro “Tagarela” Lopes? Um não sabe quase nada para além do que lhe ensinaram sobre o “sindicalismo” nos seus tempos do PCP; o outro, coitado!, escreve bacoradas atrás debacoradas e expressa-se com este nível «As centrais sindicais ou apenas os sindicatos setoriais enquadravam a luta dos trabalhadores em geral», porra!, ou «No fundo, os sindicatos, os patrões e o Estado aceitavam um modelo em que todos acreditavam que cada um dos outros estava interessado na prossecução do bem comum.», quantos?!, o que é uma espécie de aeiou sobre o fascismo corporativista e que se aprende no 9.º Ano de Escolaridade por aí, e que, pelos vistos, ainda é levado a sério por outra gente qu’anda, ou parece!, a brincar um cochito com isto.

        A ambos os três, ao Daniel porque nada sabe para além do que lhe foi ensinado pelos leninistas, ao Tagarela porque, reiteradamente, se mete por caminhos escorregadios e parte os piroliros, insiste, e parte dos pirolitos de novo ou o que ainda sobra, e ao CEO d’A Estátua de Sal que se presta, assim, a deseducar as massas, a todos, dedico-lhes eu este breve apontamento do Vasco Pulido Valente. É breve, mas demonstra na perfeição o que cada um tem (ou não tem) na cabeça.

        19 de Abril

        Por causa da greve dos motoristas de
        matérias perigosas, floresceram por aí
        vários teóricos do sindicalismo. Pena.
        Esse foi o primeiro grande erro de Marx:
        tratar a classe operária como ela era em
        1840 e como Engels a descreveu em As
        Condições da Classe Operária em
        Inglaterra, indiferenciada e una. Mas logo
        do princípio, ainda em vida de Marx, já
        os ferroviários demonstravam a falácia
        dessa visão. A economia crescia e,
        crescendo, aumentava em complexidade
        e, pela mesma medida, as classes
        trabalhadoras aumentavam em
        heterogeneidade. E alguns grupos de
        trabalhadores em posições estratégicas
        alcavam com um poder especial sobre a
        sociedade. Os governos das grandes
        potências foram forçados a perceber isto,
        durante a I e a II Guerra. Tiveram de
        negociar humildemente com os seus
        inferiores, para ter artilharia e aviões.
        Os motoristas de matérias perigosas são
        apenas os últimos em Portugal
        a demonstrar a acção de uma classe
        operária homogénea, agindo em conjunto
        e destinada a governar o mundo.
        – Vasco Pulido Valente, hoje.

        Fonte: P., 20.4.2019, p. 5.

        [Na perfeição, repito.]

        3.

        https://estatuadesal.com/2019/05/06/sete-manipulacoes-para-uma-ameaca/comment-page-1/#comment-14336

        Asterisco. Conheces este gajo, pá?

        estatuadesal diz:
        Maio 7, 2019 às 4:49 pm

        Mas que grande prosa, RFC! 🙂

        4.

        RFC diz:
        Junho 14, 2019 às 1:17 pm

        Nota, prévia.

        Só para encerrar este assunto, até porque a princípio referi que o artigo do VPV foi consequente e não expliqiuei o porquê. Infra-infra está algo que fiz chegar a quem de direito, pois tanto pela engraçada frase sobre a pena capital como pelo postal dos correios*, posterior, se compreende como um jornal com jornalistas e leitores respeitáveis acabam por ser levados com o vento mesmo sem ser intencionalmente. Quero com isto chamar a atenção para o facto de que a malta mais velhota, e isso vê-se também n’A Estátua de Sal, muita das vezes acaba por desajudar uma beca pois oarece que tem bichos carapinteiros, memória e mais tempo livre. É ler isto, é mais um exempli causa demonstrandum como dizem os nórdicos.

        https://pbs.twimg.com/media/D5fpn06XoAQldsP.jpg

        […]

        «Por isso, quando Vasco Pulido Valente acena com o facto indesmentível de se ter lá proposto a pena capital, medida trágica mas compreensível, no contexto […], como significando o espírito da assembleia», cito (e o mas compreensível, a bold).

        #standupcomedy

        Asterisco. Eis o bilhete postal, saibam quantos que ele serviu para nada.

        «Que entre as hipóteses, a pior!, será a de que o Director do P. não leu o conjunto de disparates inclusos hoje numa das cartas ao Director (?), assinada por Custódio David Catarino, de Lisboa. Um erro que são dois, factuais, para além de outras opiniões divertidamente sui generis. O tal de Almeida Contreiras não existe: o leitor refere-se, erradamente, a Almada Contreiras. No entanto, azar!, sucede ainda que a frase [atribuída pelo leitor ao mesmo Almada Contreiras] foi proferida por… Costa Neves. Em todo o caso, seguramente, direi que o excelente Vasco Pulido Valente não merecia aquilo.», fim.

        The Show Must Go On, pás.

        [E agora vou visitar o exilado da Ericeira, vai meter na mesa uma omolete desconfio… Omelete, omolete ou omeleta? Pintelho ou pentelho, &etc.?]

          • Nota. Fazes mal, mas entndo que já não tens idade para ser heterodoxamente educado (faço-te um desenho de quem te faz vibrar, para enrubesceres: José Preto, Virgínia da Silva Veiga, Fernanda Câncio, Daniel, Carlinhos, Vassalo e Dieter, José Sócrates a.k.a. “Socorro, Quem Me Ajuda A Escrever Isto”?, Pedro Marques Lopes e o Valulupi efeminado, por ordem das respectivas capacidades intelectuais). Até dói, livra!

              • Hum.

                Nota. Pois, entendo-te, mas nem um Valulupi efeminado que, assim, deverá ser menos perigoso do que as cenas escandalosas que se passam entre o Madeira e [o Sancho? e] o Burro do blogue do Jumento? 🙂

              • Coisas do Carvalho
                16 Julho 2019 às 17:58 por Valupi 3 Comentários

                Nota. Olha outra vez o ataque do doido, pá!
                (ninguém lhe liga, psiquiatra com ele)

        • Isto não é duvidar da genialidade do Pulido Valente, que nunca li nada do gajo – embora desconfie que alguém que diz que o Fernando Pessoa não era bom escritor “porque nunca tinha fodido” só pode ser uma besta.

          Mas indo ao seu copy paste do gajo, quero apenas lembrar que os marxistas já previam essa “complexidade” do proletariado.

          Nomeadamente li uma novela politico muito interessante de 1908, do escritor marxista Jack London (The iron heel) que prevê justamente uma aliança com o capital de certos sectores privilegiados do proletariado para a imposição de uma ditadura sangrenta nos EUA, no que parece uma antevisão das ditaduras direitistas sul americanas.

          • Pedro, olhe: há por aí um tipo desagradável que, veja lá, achou um dos seus comentários bastante jeitoso mas, acrecentou ele, que lhe dava 9 (nove!) valores para o meu caro ir à oral (eu sei como isso seria difícil para si porque as minhas teses estão tão bem escritas que lembro-me que, uma vez, quando fui entrevistado pelo malandro do Vitor Gonçalves, o da RTP, comecei com umas teorias, umas tangas!, sobre o estado de excepção e, enfim, só dei barraca). Veja lá que eu até me esqueci de referenciar devidamente o Carl Schmitt naquilo que entreguei na SciencesPo, um lapso sem importância nenhuma!, citei-o mas não o meti na bibliografia mas isso que interessa que ele deve estar lá nas sebentas que os outros ranhosos escreveram e pronto está resolvido, Não é verdade, amigo, que lábia e albradices é comigo?

            Bem, adiante, está aqui o disparate do engraçadinho:
            https://estatuadesal.com/2019/07/15/porque-e-que-pedro-nuno-santos-vai-mesmo-ser-lider-do-ps/#comment-15163

            Passe bem, vote bem, e deixe-me perguntar-lhe o seguinte:
            – Por acaso não tem aí uma nota de 50 euros que eu perdi, que estou sem o multibanco?

  2. Vou ler o texto do Daniel com toda a atenção e depois poderei comentar com maior propriedade. Para já, apontar defeitos aos apologistas do “mas” cheira-me a alguma hipocrisia: estes mesmos críticos/quadrante político são os mesmos que abusaram dos “mas” nos rescaldos do 11 de setembro, ataques terroristas em Paris… Para já, é isto.

  3. É de assinalar a elevada percentagem de “fazedores de história” nesta liga de amigos académicos (quase todos). Entre eles merece destaque o que contabilizou as vítimas do “estado novo” e do “Dr. Salazar” (como gostam de dizer) na ordem dos cinquenta e tais. É sobretudo nesta recriação das narrativas que esta gente não brinca. Nem nunca brincou.

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