A nostalgia das causas

(José Pacheco Pereira, in Público, 15/06/2019)

Pacheco Pereira

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Há uma doença que, de vez em quando, assalta a nossa democracia: a nostalgia das causas. Em particular, quando essa nostalgia é enunciada como desejo político, e quando essas causas representam uma distorção democrática. Num país que teve uma ditadura de 48 anos e um PREC de dois ou três, em que existiu uma censura total durante mais do que uma geração, as causas tendem a ser um remake, ou do pensamento orgânico ou da ditadura ou do PREC. Elas associam-se também ao discurso sobre a identidade nacional, quer visto negativamente, quer na ideia expressa na pergunta “que país queremos”? Se passarmos dos truísmos, – na verdade toda a gente sabe que país queremos, – entramos num terreno muito pantanoso e profundamente iliberal.

Cito dois exemplos, porque percebemos melhor do que estou a falar juntando nostalgias à esquerda e à direita que são espelhares. A nostalgia do PREC ou, se se quiser, do “25 de Abril” como programa político é fácil de enunciar: “ainda não se cumpriu Abril”. A ideia de que havia um programa implícito no 25 de Abril para além da democracia, da descolonização, e do desenvolvimento (o elemento mais ambíguo) traduz-se não só em várias formas de minimização da democracia representativa a favor de formas descritas como “participativas”, de que um exemplo eram as ideias de Maria de Lurdes Pintasilgo, como também num programa político muito próximo dos partidos como o BE e o PCP. As causas enunciadas de “Abril por cumprir” não são de Portugal, mas de parte dos portugueses.

Podem ser enunciadas com as melhores intenções do mundo, o combate à exploração, a defesa da igualdade, a condenação da ganância e do lucro, a dignidade a que todos têm direito e que a pobreza sonega, tudo isto. A democracia contém essas causas, mas o livre jogo do voto escolhe como elas são traduzidas em política, ou em ideologia, deixando para os mecanismos democráticos a escolha das soluções e prioridades. Por isso, elas não são universais, e quando se anda com saudades dessas causas como sendo de todos, é para um mundo não-democrático que vamos.

Num mecanismo muito espelhar, a esquerda do “cumprir Abril” encontra-se com a direita dos “desígnios nacionais”. Nos dias de hoje, e nos discursos do 10 de Junho, – o feriado péssimo da hipocrisia num país que não respeita a sua soberania, nem as suas Forças Armadas, nem os seus emigrantes, e muito menos lê Camões, – assistiu-se ao retorno ideológico da orfandade das causas. O pressuposto é o de que faltam causas, como havia no passado, em particular entre os jovens. Já não têm que lutar pela democracia, nem pela liberdade, nem pela Europa e, como encontram o mundo “ocupado” pelos mais velhos, que usurpam a riqueza em nome dos direitos adquiridos (uma das heranças ideológicas do período da troika), e como as elites os abandonam, ficam sem “futuro”. Tudo isto são tretas, mas ficam para outra altura.

Voltemos à democracia. As democracias não tem causas teleológicas, nem “desígnios”, nem “políticas de espírito”, nem “objectivos consensuais”, porque a essência da democracia é a diferença: pessoas que pensam diferente, que se organizam em partes, com visões do mundo distintas, expressando interesses diferentes. Não partilham “desígnios”, nem “sentidos comuns”, nem mesmo, citando Cavaco e Silva, tendo a mesma informação chegam a conclusões comuns. As democracias não são regimes científicos, nem naturais, são artificiais e culturais.

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As democracias só têm duas regras, a soberania popular expressa pelo voto, e o primado da lei. O seu programa único é o bem comum, o bem de todos, homens, mulheres, adultos, crianças, jovens, negros e brancos, católicos e budistas, desde o primeiro dia até aos cem anos. As democracias não são providenciais nem religiosas, não acham que os homens na terra estão a fazer uma prova para serem julgados e enviados ou para o Paraíso ou para o Inferno. São regimes laicos e do presente, o bem comum é para os que estão vivos e para quando estão vivos.

Sobre o que é esse bem comum, cada “parte” tem um entendimento diferente, muitas vezes conflitual, quanto ao que isso significa e como lá se chega. Por isso os “consensos”, para além das diferenças, dos partidos, das políticas e das ideologias, são uma anomalia ambígua, por muito que também haja uma “consensomania”, que vem de 48 anos de anátema sobre a política, que os considera momentos altos da vida cívica. Seria tão bom entendermo-nos todos? Não em democracia.

Quem é que cria obstáculos às causas do “país que queremos”? No passado era o clericalismo, a monarquia, depois no Estado novo a “balbúrdia” da política, e hoje, no discurso populista, as elites. Quem são essas elites? Os políticos, os sindicalistas, os jornalistas, alguns artistas, por coincidência as únicas entidades que a democracia e a liberdade criou e permite, a começar por aqueles que respondem perante o povo e o voto. Na lista das elites, raras vezes entram os empresários, os tecnocratas “não políticos”, os poderes fácticos da Igreja e do futebol, e tenho quase a certeza que se fizesse uma lista nominal estariam lá os deputados, os dirigentes partidários, os sindicalistas, os comentadores, embora não estivessem todos. Mas já alguma vez aqueles que hoje falam das elites incluíram a Associação Industrial, ou a Confederação da Indústria, os Amorins e os Pereira Coutinho, ou os Soares dos Santos, ou os Melos, etc.? Mas certamente que incluiriam a FENPROF e a CGTP. E no entanto a maioria das decisões que condicionam a vida do país e o “futuro” dos jovens, condenados a salários baixos e ao trabalho precário, têm muito mais a ver com esta elite, a começar na sua relação discreta com o poder político.

Poupem-nos, pois, ao retorno aos “desígnios” e às causas, ao unanimismo orgânico de Portugal, e a um discurso envenenado mais pela impotência política do que pela razão. Para lutar contra a pobreza e a exclusão não é preciso nenhuma causa, nem “desígnio”, nem bandeira, é preciso lutar contra aquilo que a permite. E aqui, como é natural em democracia, divergimos.


8 pensamentos sobre “A nostalgia das causas

  1. Finalmente estás de acordo comigo ou vice-versa, como queiras Pacheco.
    Podias ser mais directo que tudo ficava mais claro ao povo acerca de discursos populistas reaccionários disfarçados de elogios aos banais para melhor os levar ao engano. Aqueles que fazem a apologia da banalidade em contraponto com as “elites” que não são “nós” mas os “outros”, os corruptos que não dão ao povo um mito, um slogan, um salvador em que “acreditar”, ou uma raça ou pátria sagrada à qual “pertença”.
    A guerra colonial decidida sem escrutínio por um ditador “rapidamente e em força” sob a crença de um império imperecível é um bom exemplo de “pertença” a que o povo analfabeto das aldeias mais recôndidas foi obrigado a “acreditar” e ao qual deu a vida e a morte a quem pertencia duplamente; era pertença da nação e do império simultâneamente.
    Desta vez usaste bem o teu estilo literário e por uma causa justa.

      • Epá, ó da Estátua, deixei de beber o leite de cabra com bagaço que me estava a baralhar a testa e, desta vez, experimentei um quarto de copo de leite de burro para três quartos de medronho.

        As melhorias são estas, e das boas como vês… ó qué que tu bebes ao acordares, nada?

          • Fazes bem, mas todos os dias isso é luxo de ricalhaços pá! Olha que eu poupo nas pílulas dos médicos e só ligo a net de madrugada para não encher o bandulho da EDP mas, quando dou por ela, só me sobram uns cobres para ler as patifarias do Correio da Manhã e, às vezes, para beber um cafézinho e estar entretido. O que me vale é o Aspirina B, aqueles gajos ainda são pior que êu (escreve-se assim?)

            • Nota. Ó José Neves, pá, então o Valulupi está há horas a dar à perna no Aspirina B, anda no engate coitadinho!, e o único comentário que eu vi por lá até agora é o deste gaijinho ali em baixo? Então, tu hoje não abrilhantas, não comentas, a prosa daquele irmão até agora desconhecido do famoso Zé Bastos?

              ______

              XXXX
              17 DE JUNHO DE 2019 ÀS 17:43
              O seu comentário aguarda moderação. Esta é uma pré-visualização, o seu comentário será visível depois de ter sido aprovado.

              17 JUNHO 2019 ÀS 14:16 POR VALUPI DEIXE O SEU COMENTÁRIO, por favor!

              Nota. Ó Valulupizinho, três ou quatro horitas ofegante e ninguém te ligou peva outra vez?

  2. …”Para lutar contra a pobreza e a exclusão não é preciso nenhuma causa, nem “desígnio”, nem bandeira, é preciso lutar contra aquilo que a permite.”…. EXCELENTE resumo

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