A institucionalização da infâmia

(Pedro Marques Lopes, in Diário de Notícias, 26/11/2018)

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Pedro Marques Lopes

Já se sabe, quando algo se torna rotineiro tendemos a considerá-lo normal. Provavelmente de forma inconsciente, deixamos de lhe dar atenção, transforma-se num dado adquirido por muito que seja errado ou que ponha em causa coisas que julgamos importantes. Esta semana, a CMTV/Cofina passou áudios de interrogatórios judiciais do caso referente aos ataques à Academia do Sporting, em segredo de justiça. Neles, uma procuradora destratava cidadãos, fazia perguntas retóricas e berrava declarações grandiloquentes sobre o sentir dos portugueses sobre jogadores de futebol.

A única surpresa deste acontecimento talvez seja percebermos que há procuradores que fazem discursos que parecem ser feitos para consumo não de quem têm à frente mas para o público em geral. Fica uma estranha sensação de que querem que saibamos que a malandragem é maltratada durante os interrogatórios, que há procuradores, neste caso, que fazem gáudio de mostrar que estão a borrifar-se para um conjunto de regras básicas de tratamento e de interrogatório como, simplesmente, ouvir as respostas. Tenho, infelizmente, poucas dúvidas de que há muita gente que rejubilou com aquele tipo de atuação. É esse o ponto em que estamos.

Fica uma estranha sensação de que querem que saibamos que a malandragem é maltratada durante os interrogatórios, que há procuradores, neste caso, que fazem gáudio de mostrar que estão a borrifar-se para um conjunto de regras básicas de tratamento e de interrogatório como, simplesmente, ouvir as respostas.

O facto é que o crime que é a divulgação daqueles interrogatórios passou praticamente em claro na opinião pública – a PGR anunciou na sexta-feira a abertura de um inquérito disciplinar à procuradora, esperemos, mas, convenhamos, a esperança de que as coisas mudem não é muita. Esse crime e, já agora, a infelicíssima atitude da procuradora. Nada de especial, só mais uns crimes, só mais uns áudios de um interrogatório numa longa e já costumeira lista de pornográfica exibição de escutas, vídeos e demais peças processuais que tornam qualquer processo um arremedo burlesco de justiça, num simples meio para uns escroques disfarçados de justiceiros ganharem mais uns cobres. Business as usual neste departamento da Cofina.

A questão é já termos percebido que já se passou para uma nova fase do relacionamento entre a Cofina/CM e o sistema judicial.

Neste momento já temos uma parte da Justiça entregue à Cofina/CM ou, pelo menos, fortemente condicionada por esta organização.

Estou convencido de que numa primeira fase eram pessoas do sistema judicial que se aproveitavam da Cofina/CM, eram alguns juízes e procuradores que, desconhecendo os seus verdadeiros deveres, lideravam o processo. Não podendo acusar ou condenar através de meios legítimos, utilizavam as páginas do CM para julgamentos na opinião pública, para mandar mensagens, fazer ameaças veladas ou, simplesmente, ajudar em processos.

Uma troca, portanto: a Cofina/CM fazia uns euritos mais com os atentados à justiça e alguma gente do sistema judicial fazia, no fundo, justiça privada ou, pior, prosseguia uma agenda justiceira.

Mas, como acontece amiúde, o mensageiro tomou conta da mensagem. Agora é a Cofina/CM que promove e despromove operadores judiciais (as notícias sobre Ivo Rosa e Carlos Alexandre são exemplares) e seleciona as informações já não em função das agendas desses mas da sua própria.

o mensageiro tomou conta da mensagem. Agora é a Cofina/CM que promove e despromove operadores judiciais (as notícias sobre Ivo Rosa e Carlos Alexandre são exemplares) e seleciona as informações já não em função das agendas desses mas da sua própria.

A forma como se foram relevando os constantes crimes contra o sistema judicial, como esse próprio sistema foi pactuando com quem estava – e está – a pô-lo em causa, como os políticos preferiram fechar os olhos por medo ou por calculismo (Assunção Cristas continua a comentar e a escrever para o CM e para a CMTV ao mesmo tempo que passam filmes e áudios de interrogatórios), como as pessoas foram aplaudindo a pornografia – só é mau quando nos toca a nós, não é? -, resultou em que a Cofina/CM constitui já uma justiça paralela. Mais do que isso, pretende impor uma espécie de justiça CM. Uma em que basta alguém ser acusado para ser culpado – desde que o CM assim o diga; uma em que os direitos dos arguidos não passam de esquemas para escapar à justiça; em que as salvaguardas dos processos são truques.

Sei que não é a primeira vez que abordo este tipo de situações, nem aqui nem noutros espaços onde posso dar a minha opinião. Mas é também por poucas pessoas evidenciarem o profundo atentado aos mais básicos direitos que é a divulgação de escutas, áudios e vídeos de interrogatórios que este tipo de conduta se tornou rotineira e até aplaudida por muitos. É também por poucas pessoas lembrarem que a exibição de partes do processo inquina-o definitivamente e põe uma pressão insuportável sobre o sistema judicial – que o leva para as mãos de gente pouco recomendável – que leva a que não seja possível fazer justiça.

A Cofina/CM constitui já uma justiça paralela. Mais do que isso, pretende impor uma espécie de justiça CM. Uma em que basta alguém ser acusado para ser culpado – desde que o CM assim o diga; uma em que os direitos dos arguidos não passam de esquemas para escapar à justiça.

Mas a principal responsabilidade de não serem respeitados direitos fundamentais protegidos pela Constituição é do próprio sistema judicial e da nossa classe política. Até quando? Será que só quando os interrogatórios passarem em direto numa TV alguém se lembrará de fazer alguma coisa? Já estamos muito, muito próximos disso. Talvez algo mude quando os tribunais se mudarem definitivamente para a sede de um qualquer tabloide.


Os queixinhas

Eu também sou daqueles que acham que teria caído o Carmo e a Trindade se fosse um governo do PSD a ordenar a intervenção da polícia contra os estivadores do porto de Setúbal. Por esta altura, os líderes do PCP e do BE já teriam vindo alegar que os direitos dos trabalhadores estavam sob séria ameaça, já havia manifestações na rua e o primeiro-ministro apelidado de perigoso fascista. Mas, claro, os direitos dos trabalhadores não são assim tão importantes estando esses partidos próximos do poder e a manifesta ilegalidade da intervenção do governo não é assim tão grave se estiver, digamos assim, do lado certo da história.


Na sexta-feira sonhei que alguém me amava

Na sexta-feira fui ao Coliseu ver o Johnny Marr. Se o Marr fosse só o melhor guitarrista de música popular de todos os tempos também teria ido ouvi-lo tocar, mas ele é, para mim, muito mais do que isso. O Marr compôs a banda sonora da minha vida. São as notas do piano do Reel around the Fountain que me acarinham quando a vida me trata mal, é aquela carícia nas cordas da guitarra e a melancolia do baixo do I Know Its Over que me ajudam a chorar, são os acordes do There Is a Light That Never Goes Out que me dão a esperança de pelo menos conseguir morrer ao lado de quem amo e é a ouvir o Asleep que quero ser enterrado. Estas são todas músicas que o Marr compôs e o Morrissey escreveu e cantou. Bem sei que o grande Johnny toca cada vez melhor e continua a fazer belas canções a solo e para outros, mas o que ele e o Morrissey fizeram nos Smiths é único e irrepetível. Dois miúdos, pouco mais do que adolescentes, escreveram sobre os meus sentimentos, as minhas angústias, as minhas frustrações, os meus desejos, como se me tivessem entrado na alma. Passados 35 anos, as músicas, que conheço de cor, têm em mim o mesmo efeito. E não, não é por me voltarem a trazer a adolescência, continuam a falar de mim.

The songs that saved your life
Yes, you’re older now
And you’re a clever swine
But they were the only ones who ever stood by you 
(Rubber Ring).

5 pensamentos sobre “A institucionalização da infâmia

  1. Obrigado por manter sempre esta ideia presente. Nem mesmo os especialistas (oriundos ou não do direito) estão a evocar as consequências nefastas da publicação de interrogatórios, entre outras divulgações de dados que estão efetivamente proibidas pela lei. O sindicato dos polícias que “lembra” a gravidade do crime para justificar a publicação das fotografias; a atividade dos procuradores e juízes confunde técnicas de interrogatório com infantilização e inferiorizarão do questionado, réu, etc.; o polícia incapaz de explicar qual o decreto ou artigo infligido infanticida o infrator, o professor infantiliza os alunos e os pais, assumindo condutas de uma agressividade e arrogância impensáveis em contexto educativo, o funcionário púbico (estio antigo) que atende o “público” exige a compreensão e cumprimentos de regras impossíveis de compreender e cumprir (até para os próprios) e assume o seu direito a agredir e infantilizar perante o incumprimento, fogo deliberadamente da política, até porque há muitos mais exemplos. Tenho vindo a construir a ideia de que há algo errado coletivamente (enquanto povo) quando assumimos de funções/posições de poder. “Encarnamos” ou “materializamos” um personagem que nos é estranho e sentido como sendo outro (na realidade nós não somos assim tão agressivos se pudermos utilizar como critério os baixos índices de criminalidade) que não escuta, não tolera, impõe e pode desvalorizar/desprezar na medida em que o “falhante”/errante é considerado como incompetente/inapto/incapaz, alguém que já devia saber e deve ser castigado por isso. Como uma criança tratada por uns pais “à antiga”. Penso que a parentalidade hoje foge deste tratamento evitado qualquer Assumpção de poder, como forma de proteção da geração mais nova. Penso que a longa ditadura revela este processo e/ou intensificou-o. Não sei. Penso que deve haver ou devia haver estudos sociológico/filosóficos/psicológicos sobre isto, sobre a forma como nós (portugueses) procedemos quando estamos numa função ou posição de poder. Primeiro investigar, e, uma vez confirmanda ou encontrando alguma outra ideia, intervir. É que com este problema – geral – estamos a aniquilar todos aqueles que se assumem na vida como errantes e aprendizes, ou seja, os mais capazes e aptos do nosso país.
    Obrigado,

  2. Perdão algumas gralhas: “…o artigo infringido, infantiliza…” eliminar “de”, “evitando” e não evitado, “assumção”

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