A PASSAGEM DA CARAVANA

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 10/11/2018)

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Clara Ferreira Alves

(Nas madrugadas de sábado tomo o peso ao Expresso, mal a edição online fica disponível. Hoje os colunistas estavam mesmo pouco inspirados. Salvou-se a Dona Clara com este texto magnifico. Ela, quando escreve sobre Trump, cresce dez centímetros e a pluma, mais que caprichosa, fica contundente quanto baste.

Comentário da Estátua, 10/11/2018)


Vamos desviar a atenção dos resultados das intercalares na América, que põem um travão a Trump mas não o impedirão de ser reeleito. Se ao fim de dois anos esta vitória é tudo o que os democratas conseguiram, devida ao voto e à militância das mulheres, está provado que o Presidente está habilitado, como ele disse bem alto, a dar um tiro em alguém na Quinta Avenida e escapar ileso. Repare-se na imagem: alguém na Quinta Avenida.

Donald Trump tem dificuldade em imaginar a vida num mundo diferente dos rococós da Trump Tower e de Mar-a-Lago, os castelos de Versalhes. E tem dificuldade em imaginar a vida fora dos forros dos aviões, helicópteros, polícias e guarda-costas e das centenas de servos que o rodeiam dentro e fora da Casa Branca. Nada, na vida deste homem, tem a ver com a realidade da pobreza, da privação, da violência e do crime. O criminoso de colarinho branco nunca é tratado como um bandido e sim como um explorador que hasteia a bandeira no Evereste do poder.

Isolado, rodeado de televisões que são o espelho do mundo que lhe interessa, ignorante da História e desconfiado da humanidade que não se parece com ele ou não o idolatra, comunicando por epigramas temperados de vitríolo, Trump é imune ao sofrimento. Tal como o casaco de Melania, que apregoava que não se interessa por coisa nenhuma. Melania é a primeira serva do marido, apesar dos tolos que viam nela a libertadora da tirania.

Os Trumps do privilégio, incluindo o resto do clã, não sabem nem podem saber o que é nascer, viver e morrer nas Honduras, onde as estatísticas de homicídio batem o recorde mundial. Os Trumps fazem como a rainha Vitória: põem as joias para visitar os pobres. É o que se espera deles. Olhem para o meu belo helicóptero Sikorski, perorava o candidato na campanha, antes de ser eleito, a uma base em adoração. Um multimilionário que olha para eles, ou por eles, é uma bênção.

Prestemos atenção à caravana, aquela caravana que começou nas Honduras com mil seres humanos que resolveram escapar da morte, da violência e da miséria e caminhar em direção à fronteira do eldorado, a do México com os Estados Unidos. Os mil do êxodo inicial, um êxodo bíblico e correspondente a um ritual de fuga da opressão tão antigo como a fuga dos judeus do Egito, são hoje dezenas de milhares, ninguém sabe o número certo.

Pelo caminho das pedras e dos espinhos, a caravana foi engrossando, procurando a segurança da multidão. Estão agora no México e, miraculosamente — daí a segurança dos números —, ninguém lhes impediu a marcha e a passagem, apesar das tentativas da polícia mexicana e das ameaças barafustadas de Trump.

Olhem bem para esta caravana, porque ela constitui o primeiro grande teste da presidência Trump, das leis anti-imigração, do racismo latente na sociedade americana, do liberalismo em crise, do novo Senado reforçado dos republicanos e da Casa dos Representantes dos democratas. E da alma do povo americano, que julgamos generosa. Esta caravana constitui o primeiro grande teste do futuro, das políticas do futuro, quando as grandes migrações climáticas, engrossando as migrações do desemprego, da pobreza e da violência, fizerem de certas estradas do planeta um cenário de “Mad Max”. No Mediterrâneo e no Sara morre-se anonimamente, silenciosamente, longe dos olhares do mundo, porque o deserto é um túmulo e o mar engole as vítimas a coberto da noite.

Nos caminhos perigosos da África e da Ásia para a Europa foge-se da guerra usando os serviços de traficantes humanos. A caravana originada nas Honduras é diferente. A caravana ruma ao futuro, esquecendo que o futuro é um lugar onde vamos todos morrer. É um movimento humano, uma grossa serpente que nada consegue travar em nome de um raciocínio que preside a todas as razões.

Vão matá-los todos? Prendê-los todos? Deportá-los todos? O número gigantesco garante a impossibilidade da solução ótima em democracia, e os Estados Unidos são uma democracia. É um movimento imparável, porque aquelas pessoas preferem sofrer em terra norte-americana do que regressar às Honduras e aos países ingratos. Nada as fará parar e preferem morrer na berma da estrada.

Este foi o grande tema da campanha de Trump e não a economia, ao contrário dos conselhos soprados pelos politólogos. Mais uma vez, instintivamente, Trump percebeu que na caravana se joga o seu futuro político e, arrisquemos, histórico. O que ele fizer com a gente da caravana marcará a América para sempre. E o mundo. Formará, ou negará, um padrão de comportamento e ataque aos problemas que vamos ter, as sociedades de bem-estar e abundância. Que já estamos a ter, secretamente, envergonhadamente, e tentamos ignorar. As migrações serão como a caravana: tenderão a aumentar, os deserdados assaltando as muralhas da fortaleza. Por alguma razão, os de Silicon Valley andaram a comprar casas na Nova Zelândia, o futuro distópico faz-se anunciar.

Trump prometeu colocar 20 mil soldados na fronteira. Uma operação militar de grande escala contra migrantes e refugiados. Quem lançar pedras será abatido, prometeu. Aquilo é uma invasão. É uma guerra. É terrorismo. Diz ele. A caravana ou será parada ou arrastará tudo à sua passagem, incluindo a nossa humanidade.

A fronteira não fica na Quinta Avenida.

4 pensamentos sobre “A PASSAGEM DA CARAVANA

  1. Clara Ferreira Alves, não. Ela pode escrever, tocar, cantar e dançar, ser uma grande artista mas enquanto ela não formar uma unidade intrínseca não a leio.

  2. A Clara só não consegue perceber que esta marcha humana de “vida ou morte já” contra a “morte lenta” desta mole de gente desesperada que foge da condenação à morte lenta é uma resposta devida ás brutais e inumanas alterações sociais que lhes são impostas tais como as tempestades e catástrofes que assolam o planeta devidas às alterações climáticas.
    A Natureza não sofre de emoções racionais ou imediatistas mas também não é impávida aos inaceitáveis trabalhos constantes de assalto que o homem lhe faz diariamente: destruição do clima, do meio ambiente, do meio social e dos meios de vida quase até à impossibilidade de sobreviver.
    Quando ao Homem, como ser da Narureza, lhe é negada toda a dignidade e o remetem para a condição de “sem-vida” e sem nada a perder senão o corpo, ele, o Homem, como ser natural-racional reage com a única coisa que ainda possui, o “corpo-massa”, empurrando-o contra a ignomínia e força bruta dos trumps do mundo.
    E os trumps do mundo podem ganhar estas batalhas mas as “valas-comuns” mais tarde ou mais cedo serão reabertas e cair-lhes-ão em cima com o simbolismo que tinham as vinganças das Erínias na mitologia.

  3. Obrigado pela partilha. De facto, magnífico! Num momento charneira como o que vivemos hoje a nível mundial, esta caravana põe à prova, mais do que Trump, toda a nossa capacidade de nos indignarmos ao ponto de dizer BASTA. Obrigado. A si e à Pluma, que, para além de caprichosa, é corajosa.

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