Que raio, os funcionários públicos nunca estão satisfeitos?

(Ricardo Paes Mamede, in Diário de Notícias, 09/10/2018)

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O aumento dos salários da função pública tornou-se, sem surpresa, a principal polémica da fase de elaboração da proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2019. É difícil perceber o protesto dos sindicatos depois das várias medidas tomadas pela atual maioria parlamentar em benefício dos funcionários públicos. É difícil, mas não é impossível. Na verdade, não faltam razões de protesto para quem trabalha para o Estado português.

Até ao ano 2000 o peso das despesas públicas com salários não parou de aumentar em Portugal, atingindo então um dos valores mais elevados da UE em percentagem do PIB (13,7%, segundo os dados da Comissão Europeia). Esta evolução refletiu o crescimento dos serviços coletivos (educação, saúde, apoio social) e o crescimento dos salários dos seus profissionais ao longo dos anos noventa.

Com a desaceleração do crescimento económico após 2000 e a crescente pressão das regras orçamentais da UE sobre as contas públicas portuguesas, todos os governos se sentiram obrigados a encontrar formas de conter a despesa salarial com os trabalhadores do Estado.

Como resultado, entre 2000 e 2008 os salários dos funcionários públicos cresceram abaixo da inflação média registada no período, traduzindo-se numa perda acumulada de poder de compra de 11% (enquanto os salários no setor privado cresciam em média 7% em termos reais). A isto soma-se o congelamento das progressões que teve início em 2005 (e que ainda não terminou por completo).

A trajetória de desvalorização salarial no setor público foi brevemente interrompida no OE para 2009. Nesse ano de eleições legislativas os funcionários do Estado foram agraciados com um aumento de 2,9%, valor claramente insuficiente para repor a perda de poder de compra ocorrida desde 2000.

Entre 2010 e 2018 o poder de compra dos funcionários públicos caiu mais 12% em termos médios

Após 2010 a história é conhecida. Não só as progressões na carreira e os níveis salariais ficaram congelados como os funcionários públicos foram sujeitos a vários cortes, na sua já habitual condição de variável de ajustamento das finanças públicas nacionais.

Assim, entre 2010 e 2018 o poder de compra dos funcionários públicos caiu mais 12% em termos médios. Para alguns grupos profissionais (professores de todos os níveis de ensino, médicos, oficiais de justiça, dirigentes superiores e outros), a quebra dos salários reais desde 2010 é próxima de 20%. Na melhor das hipóteses, como é o caso dos assistentes operacionais, a redução foi de 6,5%.

Tudo somado, os funcionários públicos perderam em média 1/5 do seu salário em termos reais desde o início do século. Algumas classes profissionais (tipicamente, as mais qualificadas) viram o seu poder de compra cair perto de 30%.

Portugal é de longe o país da UE onde a massa salarial do Estado mais desceu em percentagem do PIB desde a viragem do século (-2,7 pontos percentuais, face a uma média de 0,3 na UE). Desde 1989 que a despesa pública com salários não representava uma proporção tão baixa do PIB em Portugal como aconteceu em 2017.

Note-se que isto se verificou apesar das medidas de recuperação de rendimentos aprovadas na atual legislatura (reversão dos cortes salariais do tempo da troika, descongelamento das progressões na carreira, etc.), já que o crescimento do PIB medido em preços correntes foi ainda superior.

De acordo com as projeções do Conselho das Finanças Públicas, o peso dos salários da função pública no PIB vai continuar a descer nos próximos anos, devendo atingir em 2022 o valor mais baixo desde 1979.

Em termos práticos, isto significa que há centenas de milhares de trabalhadores em Portugal que nem daqui a uma década irão recuperar o poder de compra que tinham 30 anos antes, mesmo que a economia continue a crescer.

Aqui chegados, o mínimo que estes trabalhadores e as organizações que os representam devem exigir é que os seus salários aumentem anualmente em linha com a inflação, para que o seu poder de compra não continue a degradar-se. É um favor que fazem a si próprios, mas também à dignificação do papel do Estado em Portugal. O impacto orçamental não é superior a 0,1% do PIB. Não se pode dizer que seja pedir demais.

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