Tomar as rédeas do nosso destino

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 01/06/2017)

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Em Malta, Donald Trump fez por deixar uma impressão bem vincada. No seu estilo infantil e rufia, passou raspanetes aos aliados e teve um comportamento agressivo. Na Sicília, na cimeira do G7, voltou à carga e confirmou a posição dos EUA em relação ao acordo de Paris. E tudo indica que o mundo perdeu os EUA para o mais importante combate da história da humanidade: a luta pela sobrevivência da nossa espécie. Este tema merece um texto autónomo, que guardarei para quando a decisão for tomada.

Sem nunca referir o nome do Presidente norte-americano, Angela Merkel tirou as devidas conclusões das duas cimeiras com Trump: “O tempo em que podíamos contar completamente uns com os outros acabou em certa medida. Percebi isso nos últimos dias. E é por isso que só me resta dizer que nós, europeus, temos de tomar as rédeas do nosso destino, mantendo, claro, a amizade com os Estados Unidos e com o Reino Unido, e, como bons vizinhos, onde for possível, com outros países e até mesmo com a Rússia. Mas temos de saber que temos de ser nós próprios a lutar pelo nosso destino enquanto europeus, e é isso que quero fazer em conjunto com vocês.”

A concordância com esta afirmação parece ter sido quase geral, na Europa. Pelo menos nas motivações que levam a esta afirmação não posso discordar de Merkel. Mas quero, neste texto, falar da declaração propriamente dita. Ninguém pensa, ao ouvir Angela Merkel, que ela quer isolar a Europa do mundo, que nega a globalização, que é protecionista, que é eurocêntrica. O que ela diz parece óbvio: tendo descoberto que há um importante aliado com que afinal não se pode contar, avisa que somos “nós”, os “europeus”, a exercer a nossa soberania.

Entre 2009 e 2011 vários Estados europeus descobriram, pela sua experiência ou ao observar a experiência de terceiros, o mesmo em relação à Alemanha e a outros países aliados da União Europeu. A Grécia ainda o está a sentir agora, com a aplicação quase sádica de sucessivas medidas de humilhação e destruição social e económica do país. Nesses e noutros países muitas pessoas concluíram, naquele momento, que não podiam contar com os seus aliados. Que esse tempo tinha acabado. E passaram a defender que, mal fosse possível, teriam de tomar as rédeas do seu destino para deixarem de estar dependentes da vontade de quem não sente o dever da solidariedade. Pode-se contestar a justeza desta constatação, mas ela não tem uma natureza diferente da que Merkel anunciou em relação a Donald Trump e aos EUA.

A ideia de um povo querer tomar as rédeas do seu destino passou, recentemente, a ser vista como sinónimo de xenofobia e nacionalismo. “Let’s take back control”, o lema de campanha do Leave, no Reino Unido, é isso mesmo: tomar as rédeas do poder. Claro que, tendo a direita dos conservadores e o UKIP tomado conta do discurso eurocético (que tinha boa tradição no Labour), isso ficou muito associado às fronteiras e à imigração. Mas, na sua forma e sem mais contexto, a expressão resume o espírito da democracia. Ela não é outra coisa que um povo, seja ele britânico, europeu ou português, tomar as rédeas do seu destino. Chama-se soberania e, quando associada à democracia, não há razões para envergonhar ninguém.

No caso de Merkel, quando ela fala dos europeus tomarem as rédeas do seu destino não está a falar propriamente dos europeus. Bem sei que a comparação com Trump a está a transformar num exemplo, mas quem não surfa na espuma dos dias sabe o papel que Merkel tem tido na destruição do projeto europeu. E como transformou esta ideia numa outra: a dos alemães (talvez com os franceses) tomarem as rédeas do nosso destino. Como não acredito em imperialismos benignos, passo.

Imagine-se que alguém dizia isto: “O tempo em que podíamos contar completamente uns com os outros acabou em certa medida. E é por isso que só me resta dizer que nós, portugueses (ou gregos, ou franceses, ou espanhóis, ou britânicos), temos de tomar as rédeas do nosso destino, mantendo claro a amizade com a Alemanha e com todos os Estados da União Europeia. Mas temos de saber que temos de ser nós próprios a lutar pelo nosso destino enquanto portugueses.” Seria imediatamente acusado de isolacionismo e xenofobia. No entanto, o sentido seria o mesmo da declaração de Merkel, só que em vez da Europa, teríamos a Nação. Em qualquer dos casos, não se ignora a existência do resto do mundo, estamos apenas a debater em que espaço devemos exercer a nossa soberania. Isto, claro está, os democratas. Os que não o são até podem acreditar que, com a globalização, a soberania não se exerce.

Parece ter-se instalado no discurso político a ideia que a Nação contém em si mesma a semente do pecado. Nação é guerra, é racismo, é ódio. Devo recordar que foi nos Estados Nação, e não na Europa enquanto entidade política unificada, que nasceu e se solidificou a democracia liberal e parlamentar. Que foi através do exercício da soberania nacional que se construíram os Estados Sociais. Que continua a ser no espaço nacional que se vive a experiência do Estado de Direito, sendo uma das maiores fragilidades da União alguma discricionariedade das decisões públicas e políticas. Foi até no âmbito dos Estados Nação que o projeto europeu nasceu e se formou. O exercício democrático da soberania nacional não tem uma natureza diferente do exercício democrático da soberania de uma federação. Na realidade, a única diferença entre os democratas que defendem que os povos do seu país devem “tomar as rédeas” do seu destino e a chanceler alemã, que defende que essas rédeas devem estar nas mãos dos europeus, hoje sozinhos no mundo, é que os poderes nacionais dependem de instituições democráticas – algumas com mais de um século de história – e a União Europeia não. É esta fragilidade, aliás, que permite aos cidadãos alemães terem muito mais poder sobre o destino da Europa do que os restantes cidadãos europeus. E é por isso que o “nós, europeus” é, na boca da senhora Merkel, um eufemismo.

Claro que é possível ser europeísta e democrata. A maioria dos europeístas são-no.

O que quero sublinhar é que quem defende que a soberania se exerce de forma mais democrática no espaço nacional não é obrigatoriamente nacionalista – e muito menos xenófobo.

Tem exatamente a mesma vontade que Angela Merkel manifestou: a de ter nas suas mãos as rédeas do seu próprio destino. E não acredita que isso seja possível nesta União, onde as rédeas estão nas mãos de muito poucos. Poderão discordar desta posição. Não a podem é associar, como têm feito, a qualquer sentimento antidemocrático. Porque, pelo contrário, ele nasce, em demasiadas pessoas, de uma rigorosa exigência democrática.


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5 pensamentos sobre “Tomar as rédeas do nosso destino

  1. Daniel Oliveira tem obviamente razão. É possível ser-se soberanista sem se ser nacionalista e xenófobo. A UE é uma união de democracias e como resultado qualquer uma delas a pode abandonar sem esperar represálias (o que não é o mesmo que dizer que pode escolher com aquilo que quer ficar contra o que quer deitar fora, como os britânicos, só se os outros fossem burros). O que não é possível é ter o discurso que Oliveira tem sem completar a frase e nomear os riscos que um País corre se desejar fazê-lo (e tal implica um detalhe de propostas que a Esquerda nunca foi capaz de ter, não sei se por incapacidade técnica se por medo de afugentar os eleitores). A saída do Euro e eventualmente da UE implicam o regresso de uma política inflacionista, de desvalorização da nova moeda e juros altos e implicam que os outros Países tomarão medidas de natureza protecionista contra quem prosseguir esse caminho. E o que isto quer dizer é que quem tem este discurso na verdade fala de um conceito de soberania que ele ou ela própria definiu e que quer impor como consensual. Vão perguntar a quem tem uma prestação da casa para pagar ou poupanças no banco se se sente mais ‘soberano’ se o País enveredar por tais políticas. Vão perguntar a quem efetivamente vai perder rendimentos por via da ‘desvalorização competitiva’ se se sente mais ‘soberano’, tal como certamente não se sentiram aqueles a quem Passos e Portas tiraram parte das pensões (e logo há uma contradição entre a conversa da reversão das políticas ser compatível com ruturas). A nação soberana somos nós todos e, azar dos Távoras, não concordamos todos com tal via para uma política económica. Na verdade, quando se utilizam argumentos como aqueles que se têm utilizado neste debate, de parte a parte, o que se está a fazer é querer calar a própria Democracia dentro de um Estado. Nós porque declaramos os outros xenófobos (e alguns são-no, sem dúvida), os outros porque declaram que só eles é que defendem a soberania, quando o que isto se trata é de um debate sobre os riscos que corremos se quisermos enveredar por uma via alternativa, É que há alternativas, mas não há almoços grátis…

    • Bem, para não «quebrar» o que para mim já vem sendo uma questão de «noblesse oblige, lá terei de me repetir : ler Daniel Oliveira é mais do que um prazer; é mais do que um exercício de identificação, como se, na sua escrita, ecoasse e se libertasse o meu (nosso) pensamento. Certo, Daniel Oliveira, por força da sua profissão, há muito nos habituou ao seu «olhar de lince» relativamente ao que se passa no «nosso» mundo, e sobre o qual muitos parecem andar, alegremente, alienados. Então, faz-se arauto, dispensa opacidades, analisa, lança o seu olhar crítico muito para além do contingente e escreve. E como escreve…. O título do seu artigo de opinião, «pedido emprestado» a madame Merckel (a grande responsável pela «destruição do projeto europeu»), trouxe-me à memória a «lição» que Camões, já no século XVI, na sua epopeia, se «atreveu» a dar a El-rei D. Sebastião (Dedicatória, I, designadamente na estância 15, v.3), dizendo-lhe «(…)/ Tomai as rédeas vós do Reino vosso: /(…)», tal o reino andava mal governado…. Sobre Trump, apetece parafrasear Erich Maria Remarque, na sua obra «A oeste nada de novo». Que é «infantil», «rufia», «agressivo», sobranceiro a ponto de se achar no direito de dar «raspanetes» aos aliados, já todos o havíamos notado e concordado. Pior: é um indivíduo perigosíssimo, cuja ação (ou falta dela) põe «em causa a sobrevivência da nossa espécie». Ora, foram as suas «birras» de garoto porco e mal-educado que terão exasperado a alemã, levando-a a proferir, em jeito de defesa(?) «temos de tomar as rédeas do nosso destino». Mas como Daniel enxerga bem mais longe que muitos de nós, Atirou: «Halte!»: não podemos esquecer que foi esta «sua» (dela, da Ângela!) Alemanha «sádica» (designadamente contra a Grécia), que «humilhou» e destruiu «social e economicamente» aquele país…. Tem toda a razão Daniel Oliveira: não há solidariedade; esse valor tornou-se palavra morta. Assim, concordo com ele, quando sustenta que não devemos diabolizar conceitos como os de «nação»; antes revalorizar o de «soberania» e, sobretudo, não conotá-los com xenofobia ou nacionalismos. Não duvido que línguas viperinas o façam. Mal. Desta cobra venenosa que de anjo não tem nada, temos todos é de estar de pé atrás e descodificar devidamente os seus eufemismos. Adorei, Daniel Oliveira. Adorei e muito.

      Olga Fonseca

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