Contra as paixões e a decadência

(Por Valupi, in Blog Aspirina B, 10/04/2017)

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A concomitância do acórdão sobre um recurso de Armando Vara e do despacho de arquivamento do inquérito a Dias Loureiro permitiu captar um luminoso registo da hipocrisia política e cultural que molda o espaço público. O objecto de estudo chama-se Marques Mendes. Eis o que ele consegue verter de rajada em 5 minutos:

– Armando Vara está a ser alvo de uma mudança de paradigma nos tribunais portugueses. Essa mudança na Justiça é positiva, é até excelente. Resulta de três factores: (i) “acabou a impunidade”; (ii) “a sociedade exige punições mais pesadas para os crimes de colarinho branco”; (iii) “os tribunais querem impor uma cultura do exemplo”.

– Dias Loureiro está a ser vítima de um mau funcionamento da Justiça. A começar pela duração do inquérito, oito anos, e a terminar nas suspeições que a procuradora incluiu no despacho, impossíveis de esclarecer e apagar. “Na Justiça não se pode agradar a gregos e troianos, isso é na política“.

Face a esta importante figura da nossa elite política e mediática estava uma jornalista que concordava com tudo o que lhe aparecia à frente. Para ela, a cena com o Vara era fixe, a cena com o Loureiro era foleira. A respeito do primeiro, a sua preocupação era a de saber se o bandido ainda poderia escapar aos merecidos 5 anos na choldra. A respeito do segundo, ela queria apuramento das responsabilidades, castigos para quem fez mal ao senhor. Ora, porquê esta atitude? Porque lhe disseram que ela está ali só para concordar? Porque calhou haver uma sintonia de pensamento entre a sua pessoa e a do comentador? Mas mesmo que haja concordância, por que caralho acha esta jornalista que o deve expressar e – o que é deontologicamente crucial – por causa disso abdicar de ser crítica perante as declarações que está a ouvir? Nunca o saberemos.

Marques Mendes não gosta de Armando Vara, por várias razões, e gosta de Dias Loureiro, por várias ligações. A partir desta configuração afectiva, os seus raciocínios decorrem da seguinte forma:

– Armando Vara indivíduo, sujeito e pessoa desaparece, desaparecendo igualmente a realidade concreta do seu processo judicial, ficando apenas a sua dimensão de condenado em tribunal. Este é um exercício de abstracção que permite depois o enfoque e realce numa abstracção superior, a da “Justiça”, dos “tribunais”, dos “juízes”, os quais são apresentados como um colectivo. O uso da expressão “mudança de paradigma” intenta diluir a responsabilidade individual dos juízes que condenaram Armando Vara num processo específico, com umas certas provas e não outras, com uma certa interpretação dessas provas e não outra, com uma certa valoração jurisprudencial dos crimes implícitos e não outra. Por cima disto, Marques Mendes justifica a lógica da “mão pesada”, explicando que se trata de um agravamento penal bondoso pois está a nascer de uma suposta “impunidade” que reinava no passado, e também da crise económica que afligiu e aflige tantos e a qual pede corpos dos ricalhaços pendurados pelo pescoço nas árvores, e, por fim, do papel paternalista que não só esperamos como desejamos que os juízes tenham em relação à sociedade, a qual está cheia de malandros a precisarem de castigos “exemplares.” O que está aqui implícito nesta juliana de pressuposto populistas, demagógicos, facciosos, maniqueístas e retintamente mentirosos dava para um “Prós e Contras” com a duração de seis meses em emissão contínua.

– Dias Loureiro indivíduo, sujeito, pessoa é posto em primeiro plano no confronto com as decisões da Justiça. Aqui, os actos do Ministério Público são inadmissíveis por estarem a violar os direitos de um dado cidadão. Nenhuma justificação abstracta pode ser invocada para legitimar o ataque aos bens concretos que foram atacados no despacho de arquivamento. O poder da abstracção é utilizado para defender o indivíduo contra os malefícios concretos oriundos de alguém particular na instituição. De repente, a aludida “mudança de paradigma” que justificava a “mão pesada” contra os crimes económicos de um tal Vara desaparece por completo do radar. Mendes ergue-se feito um leão contra o Ministério Público porque este não reuniu prova sequer para avançar com uma acusação. É todo o Estado de direito que está a ser conspurcado e isso ele não admite, seja com Dias Loureiro, seja com quem for, o mais borrabotas.

Será? Acontece que não sabemos o que Marques Mendes pensa acerca do modo como se chegou a uma justificação para os supostos crimes de Vara, e isto ainda antes, muito antes, de analisarmos a gravidade da pena face à matéria do eventual ilícito. Sabe Mendes se, de facto, houve algum crime cometido por Vara? Ou ainda melhor, conhece Mendes alguma prova de que Vara recebeu dinheiro do sucateiro? Nem ele conhece nem conhece o tribunal que condenou Vara, mais o outro que confirmou a pena. Vão meter Vara na cadeia durante 5 anos sem haver certeza de ter ocorrido uma qualquer ilegalidade.

Onde está a paixão de Mendes pelo Estado de direito face a um processo que usa a liberdade de um cidadão como meio para agendas políticas e corporativas? Quem permitiu aos tribunais essa “mudança de paradigma” celebrada por Marques Mendes na ocasião em que a vê seleccionar um seu adversário político para o castigar muito para além da racionalidade judicial?

As circunstâncias em que toda a sociedade, todo o regime, está a aceitar que se trate Vara deste modo são fáceis de expor. E contam-se pelos dedos de meia mão aqueles que revelam colocar o primado da Lei democrática e da decência comunitária acima das paixões e da decadência.


Fonte aqui

5 pensamentos sobre “Contra as paixões e a decadência

  1. Acho bem que acabe a impunidade,mas a lei tem que ser para todos.tem que ser como diz o ditado ou ha moralidade ou comem todos

  2. Eu, que sou do Porto Santo, fico perplexo com o tempo de antena dado a Marques Mendes.
    Tanta é a vilania.
    É porque nós sabemos das negociatas que fez com AJ Jardim em 2009-2010. Da urgência em as consumar e do “foge que o barco mete água”, ante a perspectiva da crise política que o PPD/PSD de Passos anunciava.
    MM deu à sola e as empresas criadas pelo(s) seus(s) mentor(es) vão uma a uma mudando de mãos e testa-ferros. De facto, desaparecidas, hoje delas apenas dão novas as empresa de notação que lhes seguem rastro de calotes e mudanças de estatutos.
    Para a memória, para além das notícias do DN-Madeira, pouco mais fica que uma edição da revista do Porto Santo Verde (uma publicação da Sociedade de Desenvolvimento do Porto Santo). No verão de 2010 a revista glorificaos feitos duma tal Nutroton Energias que sob a comandita de MM, instalou 11 mil painéis fotovoltaicos no Porto Santo, prometendo um futuro “verde” e, imagino, radioso para os ilhéus.
    A edição de 4 de maio de 2010 do DN da Madeira também deu a boa nova. http://www.dnoticias.pt/impressa/hemeroteca/diario-de-noticias/204963-porto-santo-verde-e-um-case-study-IIDN204963
    Nesse mesmo ano, a capacidade negocial e o “emprendedorismo” de MM também permitiu “fechar negócio” para mais 27 mil paineis no Caniçal. Tudo com MM e a sua Nutroton conforme também noticia o DN-M
    http://www.dnoticias.pt/impressa/hemeroteca/diario-de-noticias/203315-junta-do-canical-contra-instalacao-de-fotovoltaica-EIDN203315
    Claro que nenhuma das notícias refere que a empresa emana do grupo Coimbra e que fora constituída pouco tempo antes de forma a poder concorrer (e ganhar) os concursos lançados pelas sociedades de desenvolvimento com que AJJ contornava o endividamento da região e o controlo de Lisboa e da UE.
    Como é bom de ver, quando fala de negócios e colarinhos brancos, MM sabe do que fala.
    Quando fala de justiça, de uma nova justiça, do fim da “impunidade”, sabe que fala de uma justiça para os outros.
    Para ele, que se julga patrício e quiçá senador, a impunidade parece ser um estado natural.
    PS – o que incomoda mesmo é saber que estas negociatas de AJJ/MM tiveram a benção protetora de uma determinada família política e que evidentes anomalias nos processos negociais, aparentemente, a ninguém parece interessar. Nem aos media, nem ao ministério público.
    A haver qualquer investigação estará sob rigorosíssimo sigilo.
    Haja esperança.

  3. Mudança de paradigma mais para ” Inglês ver”…..De onde sopra o vento.Há evidências tão inegáveis que a não serem afirmadas,compremeteriam a credibilidade do comentador.Meias verdades,apalpar o terreno,pesar consequências,mexer na lama e não sujar demasiado as mãos.Comunicação social tendenciosamente encaminhadora…Parecem mais manobras palacianas de quem se mexe no meio com a conivência ou consentimento dum governo sombra.Então e a ausência de comentários relativas ao distanciamento de Dias Loureiro em relação ao omnipresente anterior presidente ?….”Mão pesada para todos”? Será que há realmente mudança de paradigmas ou continuamos à boa maneira antiga,devagar,devagarinho e parados ? Apenas um primeiro ministro,no passado recente,tentou abanar o sistema e,pasme-se,ou não,e foi dentro….Particularmente interessante o facto de nunca ter sido condecorado pelo anterior presidente…

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