Trump e as fronteiras erradas

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 27/01/2017)

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                          Daniel Oliveira

Ao ler a coluna do Rui Tavares, no início desta semana, descobri que sou um dos responsáveis pela ascensão de Trump ao poder e serei, como brinde, responsável pela vitória de Le Pen. “Se você defendeu que ‘não pode haver democracia para lá do estado-nação’ (…) você andou a promover ideias nacionalistas. Se sim, parabéns. Você ganhou por agora. Seja de direita, de esquerda, ou nem-uma-coisa-nem-outra, você ajudou a preparar o terreno conceptual para a vitória do presidente do país mais poderoso do mundo. De brinde, talvez lhe saia a presidente da França.”

Dizer isto não é diferente de acusar um europeísta ou um cosmopolita de ser um aliado da Monsanto e da Goldman Sachs, responsável pelo TTIP ou amigo de Barroso. Dizer que quem à esquerda defende que a soberania democrática só se tem conseguido exercer no espaço do Estado-Nação (uma constatação de facto) tem em Trump e Le Pen o resultado dos seus pontos de vista é substituir ideias por insultos políticos. Infelizmente, Rui Tavares tem-no feito tantas vezes, nos últimos meses, que já não pode ser um excesso de linguagem. Acha que muitas pessoas de esquerda, onde eu estou incluído, são, na prática, aliados dos neofascistas (ou, como disse noutro texto, “mentes intelectualmente superficiais”). E estende este ataque a todos os que tratem o euro como um problema sem cura ou considerem que a União Europeia está politicamente falida, cavando trincheiras de irracionalidade que impedem qualquer debate sereno. Para quem se propunha unir a esquerda é um estranho exercício.

Nos EUA, Bernie Sanders não mudou de posição sobre os acordos comerciais internacionais (até diz que, nesta matéria, pode trabalhar com esta administração) e nunca Rui Tavares deixou de se entusiasmar com este democrata patriota. Conheço a posição de Rui Tavares sobre o TTIP (a mesma que eu tenho) e não me passaria pela cabeça acusá-lo de ter aberto o caminho a Trump por se opor a este acordo comercial entre os EUA e a Europa. Nem o colocaria no mesmo saco que Marine Le Pen. Porque sei que são diferentes as suas motivações, o seu modo de agir e a sua forma de pensar. Gostaria que Rui Tavares fizesse o mesmo exercício com os outros. Porque a fronteira da cumplicidade com Trump não pode ser aquela onde acabam as posições do Rui Tavares e começam as dos outros. Contra o TTIP, aceitável, contra o euro, facilita a vida aos neofascistas. Se assim for, temos razões para dizer que usa Trump, não para o combater, mas para calar aqueles que, em relação à Europa, discordam dele.

Por mim, preferia que o debate à esquerda fosse construído com base na boa-fé, como vi Rui Tavares defender muitas vezes. Percebendo todas as reais diferenças políticas entre os vários pontos de vista: nada une os que se batem pela soberania democrática no espaço do Estado-Nação aos movimentos xenófobos, assim como nada une um europeísta de esquerda aos neoliberais globalistas. Porque se obrigarmos as pessoas a escolher entre a globalização dos financeiros e a Nação dos fascistas estamos a atirar milhões de democratas e progressistas para os braços da extrema-direita. E é isso que o Rui Tavares, ao definir uma fronteira intransponível entre os soberanistas e democratas, está a fazer. Há quem ache que a democracia é um travão ao bom funcionamento do mercado global.

São muitos dos que hoje dominam muitas das políticas da União Europeia, que, citando Freitas do Amaral, se transformou numa ditadura sobre as democracias. E há quem defenda o Estado-Nação por achar que ele é a única forma conhecida e eficaz de defender a democracia, até porque não há democracia sem soberania. Estou incluído nesse grupo. Está o Rui Tavares interessado em dizer que está mais próximo dos primeiros do que dos segundos? É o que parece.

Poderemos achar que uns ou outros estarão errados (eu considero o europeísmo de esquerda, hoje, um monumental equívoco, mesmo que movido por excelentes intenções), mas temos de evitar a superficialidade de associações abusivas em que nem Rui Tavares pode acreditar — ou não teria andado, na última década, a fazer política com quem defende estes pontos de vista.

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