Ponto sem retorno

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 09/11/2016)

Autor

                             Daniel Oliveira

Quando cheguei das convenções democrata e republicana vim convencido da possibilidade de uma vitória de Donald Trump. Percebi que Trump não era apenas um palhaço que dizia uns disparates, mas alguém que, de forma incompreensível para aqueles a quem não se dirigia, representava um sentimento insurrecional difuso. Mas o fenómeno, nestas eleições, não era apenas Trump. Era também Clinton. Não poderia haver escolha mais falhada para uma oposição a Trump do que um dos maiores símbolos de tudo o que a maioria dos norte-americanos queria recusar. Depois de regressar, com o filtro europeu, voltei a desacreditar. Fiz mal.

Ainda será preciso muito tempo para digerir o que aconteceu esta noite. Nos próximos dias ouviremos explicações semelhantes às que foram dadas depois do Brexit: a ignorância dos eleitores, o medo perante o exterior e outras caracterizações patetas que impedem um debate sério sobre as razões profundas deste voto, que é coerente com o ambiente que também se vive aqui na Europa. Que corresponde a um momento de ruptura política que a pressão da globalização e da longa crise financeira e económica que dura desde 2008 está a causar nas sociedades ocidentais.

As pessoas sentem-se inseguras e a insegurança que sentem é sinal de lucidez, não de estupidez. Perante o aumento da desigualdade, a perda de rendimentos, o endividamento das famílias que resulta da substituição de salário por crédito e a perda de empregos, os mais maltratados pela globalização estão disponíveis para dar o seu apoio a quem prometa, com ou sem fundamento, uma mudança. O problema é a resposta a esta ansiedade não vir de quem tinha de vir, com soluções bem diferentes. Os norte-americanos querem, como muitos europeus, uma mudança radical num sistema político paralisado e incapaz de responder às suas ansiedades no meio de uma crise económica e social prolongada. E Donald Trump foi o candidato que falou sobre estes assuntos. Usando a mentira e a falsificação, a demagogia e soluções infantis. Mas dirigiu-se ao sentimento dominante. E assim conquistou bastiões populares que determinaram os resultados em estados tradicionalmente democratas.Assim como o Brexit venceu em bastiões trabalhistas. O voto latino contra Trump não compensou o voto operário branco contra Hillary.

Trump não poderá fazer muitas das coisas que anunciou. Mas o seu discurso, o que ele significa, com o poder que agora concentra, terá efeitos muitíssimo profundos. Escusa de se instalar o cinismo habitual, que tudo normaliza como se nada alguma vez mudasse. Nem tudo é histórico, como a imprensa gosta de anunciar. Mas nem tudo é imutável, como os cínicos preferem acreditar. A eleição de Trump é mesmo uma mudança histórica. A sua chegada à Casa Branca criará, sem que seja preciso ele fazer alguma coisa, um clima insuportável de tensão racial no país. Um homem que não acredita no Estado de Direito terá um poder decisivo na constituição do Supremo. Aqui ao lado, os muçulmanos não esquecerão nada do que Trump disse e os norte-americanos voltarão a ser tóxicos na luta contra o terrorismo. O combate às alterações climáticas recuará e o preço será pago pelos nosso filhos e netos. A democracia americana entrará num momento de enorme instabilidade. O mundo ficará ainda mais perigoso.

Quando alguém com o percurso, o discurso e o perfil de Donald Trump chega à liderança da maior potência mundial passámos um ponto sem retorno. E não me refiro à natureza antissistémica da sua candidatura, até porque não estou seguro que ela seja real. Refiro-me o facto de ser um privilegiado de recorte fascista a liderar o descontentamento popular e a transformá-lo em poder pessoal. Se precisávamos de mais sinais, este foi o último. É para aqui que o mundo ocidental se está a dirigir. E desta vez não há um Roosevelt que salve a América.

As pessoas não ficaram estúpidas e passaram, de um dia para o outro, a aceitar o inaceitável, a não compreender o óbvio. As pessoas sentem-se desamparadas. Cabia a quem recusa o que Trump significa responder a isto com o ímpeto de mudança que elas desejam, com figuras que lhes inspirem confiança, com uma candidatura que representasse estes sentimentos. Um democrata que fosse capaz de falar aos pobres (fossem brancos, latinos ou negros) e recentrar o debate político norte-americano no tema que, desde Roosevelt, deveria fazer parte do seu DNA: a desigualdade. Bernie Sanders teria sido essa resposta.

Mas, mais uma vez, as forças progressistas deram à extrema-direita a iniciativa de representar o descontentamento popular. Se isto não provocar uma profunda mudança nos que foram derrotados, nos EUA mas também na Europa, esperam-nos dias negros. Nem sei se ainda vamos a tempo. Sei que vivemos tempos terríveis e não é com figuras como Hillary Clinton que nos livraremos dos novos monstros.

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