(José Pacheco Pereira, in Sábado, 23/09/2016)

Pacheco Pereira
O meu desejo é que se combata com toda a eficácia a fraude fiscal. Mas, como se passa com os homicídios, os roubos, a violência doméstica, os incêndios, os raptos, a pedofilia, etc., etc., espero que tal se faça no quadro da lei, da Constituição e das regras escritas e não escritas do Estado democrático.
A razão é simples: violando-se essas regras, seja em nome da eficácia, seja para ceder à pressão demagógica, faz-se um maior mal a todos nós, diminui-se a liberdade e os seus valores, dissolve-se a base de uma democracia que assenta em duas coisas: a vontade popular e o primado da lei.
Que o Estado, com base no correcto procedimento policial e judicial, tenha fundadas suspeitas de que alguém tem uma actividade criminosa, como seja a fraude e evasão fiscal, isso pode significar determinados procedimentos como escutas telefónicas, acesso às contas bancárias e aos seus movimentos, vigilância pessoal, buscas, por aí adiante. Mas há uma condição básica para que isso aconteça: que alguém, um juiz ou um magistrado independente do processo, avalie que há razão para suspeitas. A não ser assim, e no caso do contraterrorismo também se caminha para uma discricionariedade policial, sem controlo judicial, começa-se a criar o perigoso hábito de permitir escutas, buscas, vigilâncias, inquéritos, apenas na base do zelo policial e do carácter persecutório de alguns.
Prefiro que se crie a possibilidade de haver um juiz 24 horas por dia, de quem em tempo quase real se obtém uma autorização e, quando isso não for possível, e há casos em que nem minutos se pode esperar, que tudo isso seja muito explicadinho e justificado logo a seguir. E espero que um polícia ou um fiscal tenha receio da decisão desse juiz e faça o seu trabalho para a justificar diante dele. Um juiz com experiência sabe muito bem como é o crime e deve ser sensato, espera-se. Prefiro também que se invista em mais mão-de-obra e meios para as autoridades fazerem o seu trabalho, e que lhes permitam seguir as fundadas suspeitas, em vez de se criarem autorizações de “pesca de arrasto”, em que direitos, liberdades e garantias de cidadãos inocentes e presumidos inocentes possam ser atingidos, como se passa já há alguns anos com as prepotências e o abuso de poder do fisco. E não era preciso, há muitas maneiras de obter resultados sem violar a vida privada de cidadãos inocentes. Um exemplo típico é o E-factura, em que as facturas não deviam discriminar os produtos ou serviços mas apenas a sua categoria para efeitos fiscais, para se saber como é o seu tratamento tributário, coisa que o fisco recusa em confronto com a Comissão Nacional de Protecção de Dados.
Os socialistas deveriam lembrar-se que permitir às autoridades policiais, aos magistrados, e neste caso ao fisco, a chamada “pesca de arrasto”, ou seja atirar as redes a ver se se apanha alguém, atirando as redes para milhões de inocentes para ver se apanha um culpado, foi um procedimento usado no chamado “caso Casa Pia” por um magistrado que achava que a pedofilia era uma culpa de grupo, nesse caso dos “políticos” ou dos “famosos”. Queria pedir todas as chamadas telefónicas feitas num período de tempo para fazer cruzamento de dados, num alvo potencial que eram todos os portugueses. Era absurdo, e impraticável na época (hoje já não é) mas, era acima de tudo ilegal. Além disso, enlameou muita gente que nada tinha a ver com o crime em causa. O resultado foi um processo atamancado que muito provavelmente deixou de fora alguns pedófilos e, para condenar outros, inocentes ou culpados, usou de muito débeis provas, se é que nalgum caso se sustentavam como provas. Mas havia uma enorme pressão da opinião pública e uma vontade justiceira e daí resultam normalmente processos coxos e um rastro de atropelos aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Não é que este seja um argumento principal, mas convém lembrar que considerar suspeito ter contas bancárias acima de 50.000 euros, controlar pagamentos por transferência bancária acima dos 2.000 euros, poder aceder indiscriminadamente às contas bancárias, dificultar por todos os meios que um cidadão possa movimentar a sua conta bancária como precisa, quando o dinheiro é dele, escutar por norma e não por excepção e não só os criminosos presumíveis, mas toda a gente ao lado, numa geografia muito grande, criar no fisco a regra de inversão do ónus da prova, pelos vistos, é tudo menos eficaz como se vê com os offshores. As leis permitem a fraude fiscal dos grandes, muitas vezes com nomes e artifícios pomposos, permitem redimir a culpa com pagamentos muito abaixo do que qualquer cidadão paga se prevaricar nos seus impostos, e depois quer-se colocar todos por igual num estado de vigilância abusiva, ilegal e inconstitucional e, obviamente, mais penalizante para os pequenos. Hoje, a coisa mais próxima de um Estado policial que existe na nossa democracia, é o fisco