(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 21/09/2016)

Daniel Oliveira
Estava eu a falar com uma amiga quando ela me diz, a propósito de uma possível mudança de escalões do IRS que não ponha no mesmo barco remediados e desafogados, que nós, eu e ela, éramos um excelente exemplo do que é a classe média em Portugal. Empalideci. Talvez tenha uma vantagem sobre a minha amiga: eu venho da verdadeira classe média nacional, que contava escudos ao fim do mês e a quem, apesar de não faltar o essencial (o que nos afastava da pobreza), faltavam escudos e sobrava mês. Sei bem que hoje, não sendo rico, não sou o melhor exemplo do que é a classe média portuguesa.
O que intuía confirmam os números. Verificada a coisa, pertenço, sem fortuna nem nada que se pareça, aos 2% mais ricos, olhando exclusivamente para o rendimento sujeito a IRS. E pertenço porque vivo num país pobre. Num país pobre, a classe média vive com dificuldades e os pobres vivem abaixo dessas dificuldades. Para além de ser pobre, Portugal é um dos países mais desiguais na distribuição de rendimento. Os impostos são quase exclusivamente cobrados aos rendimentos do trabalho. E como os os trabalhadores são pobres, cobra-se sempre aos mesmos.
Mostrando a sua má-fé, vários colunistas e jornalistas inventaram que Mariana Mortágua tinha defendido que se fosse buscar dinheiro à poupança. Qualquer pessoa intelectualmente honesta ouve declarações completas e faz por compreender o que a pessoa que falou realmente disse. E como Mariana Mortágua passou toda a intervenção a falar da desigualdade e dos 1% mais ricos, toda a gente que estava na sala percebeu que quando ela se referiu aos que acumulam dinheiro era desses 1% e não dos que poupavam que se referiu na famosa citação. Até porque se fosse da poupança, toda a sua intervenção se tornava desconexa. O que Mariana Mortágua disse, e não o que a propaganda implantada na imprensa nacional resolveu interpretar do que disse, ignorando todo o sentido da sua intervenção, é a mais elementar posição de um social-democrata (que ela não é): se vivemos num país brutalmente desigual, onde os mais pobres ganham tão pouco que não pagam impostos e a classe média paga quase sozinha o Estado, é aos mais ricos que temos de ir buscar mais recursos.
Só que, e voltamos à conversa da minha amiga, ainda aí uma grande confusão sobre o que é a classe média. A essa confusão não é alheio o facto de grande parte dos que comentam, nas suas profissões e no próprio comentário (estou incluído), terem rendimentos muito superiores aos da verdadeira classe média e quererem mobilizá-la em defesa dos seus próprios interesses. E os debates que tomaram conta dos media nos últimos tempos demonstram isto mesmo.
A redução de escalões de IRS foi péssima para a verdadeira classe média e o seu aumento será bom para ela. A tributação de património imobiliário que tenha o valor patrimonial superior a um milhão (o que atira para valores de mercado três ou quatro vezes superiores a isto) já foi garantida pelo governo anterior, tendo Passos dito que era uma medida “social-democrata”, vai apenas ser alterada, não belisca a classe média e pretende corrigir um problema que todos identificamos no nosso sistema (que se agravou com o fim do imposto sucessório) mas que, quando se tenta corrigir, embate com os interesses de quem mais tem e menos quer pagar: é fundamental transferir os encargos fiscais que se concentram quase exclusivamente nos rendimentos do trabalho para rendimentos que dele não dependem.
Se assumirmos como classe média os critérios determinados pelo estudo do Credit Suisse citado recentemente aqui no Expresso, baseado na riqueza (e não apenas no rendimento do trabalho), e colocarmos 44,6% dos portugueses na classe média, 2,7% na classe alta e 52,7% na classe baixa, teremos de concluir que quase tudo o que por aí aparece como um ataque à classe média se refere uma pequeníssima percentagem destas pessoas.
O termo “classe média” tem servido para defender qualquer tentativa de maior justiça fiscal, de combate à desigualdade e de alargamento do esforço fiscal a rendimentos que não resultem do trabalho. Na realidade, ricos e desafogados usam a classe média como camuflagem para defenderem os seus próprios interesses, prejudicando uma classe média sem voz na comunicação social.
A quase totalidade da classe média não é afetada quando se taxa património de um, dois e três milhões de euros. A quase totalidade da classe média não afetada (é beneficiada) quando se aumentam os escalões do IRS para diferenciar o que é diferente. A quase totalidade da classe média não é afetada quando se quer cobrar mais aos 1% mais ricos. Podem dizer, e essa é uma posição politicamente legítima (apesar de moralmente questionável), que precisamos dos ricos e que por isso não os devemos incomodar com mais impostos e devemos manter um sistema fiscal injusto, baseado quase exclusivamente nos rendimentos do trabalho e no esforço de trabalhadores por conta de outrem com rendimentos próximos da média nacional. Só não pretendam que as dores de muito poucos sejam sentidas por todos.
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