O pior dos mundos

(Pedro Adão e Silva, in Expresso, 17/09/2016)

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                              Pedro Adão e Silva

Bem sei que o exercício é exigente, mas tentemos, por um momento, esquecer a ‘Operação Marquês’ e fixemo-nos no que o processo nos tem revelado sobre o sistema judicial. Deixemos de lado as nossas considerações subjetivas sobre os arguidos e atentemos no que ficámos a conhecer sobre a nossa justiça. Não inspira confiança.

Esta semana, sem surpresa, ficámos a saber que, esgotados vários prazos para deduzir uma acusação, o Ministério Público tem mais seis meses para concluir um trabalho que iniciou vai para quatro anos. Claro que a matéria é complexa, mas tal não impede que se questione até onde é que podem ir estes prazos intermináveis. Não tarda, passaram dois anos sobre um conjunto de prisões preventivas anunciadas como resultando de uma investigação sólida, assente em indícios fortes da prática de crimes de corrupção, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. Se assim era, não seria preferível deduzir uma acusação, mesmo que imperfeita quanto antes, em lugar de prolongar os prazos para lá do razoável?

A leitura é simples: uma vez mais, fica sugerido que o sistema de justiça prende para investigar, em lugar de investigar para deduzir acusações e eventualmente prender. Esta arbitrariedade tem uma outra face, igualmente preocupante.

Num mundo perfeito, no qual a justiça respeitava o sigilo e os seus atores obedeciam ao dever de recato, a duração de uma investigação estaria longe de ser o maior dos problemas. Em Portugal, é-o.

A existência de limites temporais para uma investigação é uma forma de garantir que sobre ninguém pode pairar indefinidamente o espectro de arguido. A expressão é mesmo espectro. A figura de arguido existe para garantir a defesa dos cidadãos. Entre nós, um arguido é um culpado, pois o sistema é incapaz de garantir o seu direito ao bom nome. Incapaz porque, em processos ditos complexos envolvendo arguidos apresentados como poderosos, a dificuldade de sustentar uma acusação sólida é substituída pela formação da culpabilidade no espaço mediático — com uma gestão eficaz de fugas de informação dos processos para os media ou mesmo a plantação em órgãos de comunicação selecionados de puras mentiras.

Tudo isto vai bem para lá de Sócrates e da ‘Operação Marquês’. É que, se vivemos tranquilos com estes procedimentos e não nos entendemos quanto a aspetos basilares de um Estado de direito, porque desconfiamos de A ou de B, inviabilizamos a formação de uma sociedade decente, assente na confiança nos vários poderes.

Caminhamos para o pior dos mundos: entregues a condenações fundadas na “ressonância de verdade”, a avaliações políticas, morais e subjetivas traduzidas em sentenças definitivas. Com inocentes condenados na praça pública e culpados protegidos por um sistema disfuncional. No fundo, estamos sistematicamente a ultrapassar a fronteira, já de si ténue, entre Estado de direito e processos kafkianos.

Um pensamento sobre “O pior dos mundos

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