A nova divisão

(Daniel Oliveira, in Expresso, 30/07/2016)

Autor

                 Daniel Oliveira

Responder à frustração quando ela se generaliza não é sinal de populismo, é o dever de qualquer político. O cansaço, o medo e a ansiedade não desaparecem se os políticos os ignorarem. Trump, a que me dedico na Revista E de hoje, e Sanders responderam ao mesmo mal-estar com um sistema político que não se regenera e um sistema económico e financeiro que salta de crise em crise. Mas, além de contestarem os acordos comerciais com a Ásia e com a Europa, nada mais os une. Um apela ao ódio, outro à inclusão. Um ataca os imigrantes, outro o poder financeiro. Um apela a um pragmatismo egoísta, outro a um idealismo generoso. Um quer menos impostos e mais repressão contra as minorias, outro quer Estado social, mais direitos para as minorias e mais regulação financeira. Um é demasiado rico para ser comprado, outro demasiado coerente para ser corrompido. Um insulta tudo e todos, outro nunca se dedica a ataques pessoais. Um é desprezado por todos os que não o apoiam, o outro é respeitado pelos seus adversários.

A divisão política e demográfica continua a existir nos Estados Unidos e ela pode salvar Hillary Clinton. Mesmo não gostando do que ela representa, 85% dos que votaram em Bernie votarão em Clinton, dizem as sondagens. A questão é a maioria, menos politizada, que não vota nas primárias. Para eles contará mais a perceção emocional. Hillary Clinton representa o que falhou no sistema. Está há muito tempo debaixo de holofotes, é a preferida de Wall Streat, tem recebido enormes contribuições financeiras que determinaram muitos dos seus ziguezagues. É tida como calculista e pouco confiável. E há a convicção de que, nos bastidores, é capaz de tudo para derrubar um adversário. Claro que para a sua impopularidade na direita republicana conta ser mulher, ser Clinton e ter estado num governo de um negro. Mas a ideia de que representa o establisment conta mais.

Com 46% de delegados realmente eleitos e uma grande clareza programática, tendo sempre fugido à lama dos escândalos diários, Bernie Sanders conseguiu importantes cedências na plataforma eleitoral democrata (um enorme aumento do miserável salário mínimo, por exemplo) e a esquerda do partido tornou-se incontornável. Mostrando a sua maturidade política, foi a Filadélfia unir os democratas em torno de Clinton. Mas para vice-presidente Hillary escolheu um centrista que, falando bem castelhano (voto latino) e sendo governador de um swing state (Virginia), em nada se afasta da cultura política que está a ser contestada. É como se os sentimentos expressos pelo voto em Sanders e Trump não existissem para a cúpula democrata. Percebendo a cegueira, Trump não para de piscar o olho aos eleitores de Bernie. A descoberta de e-mails trocados pelo topo da estrutura democrata, que indiciam a vontade de sabotar a campanha de Sanders, aumentou ainda mais a sensação de um jogo viciado que só Trump terá conseguido vencer.

Os apoiantes de Hillary acham que os americanos vão sair de casa para votar em quem menos os assusta. Esperemos que sim. Mas há o risco de estas eleições se transformarem num confronto entre o establisment e a revolta. Sanders dava uma resposta democrática ao fascismo de Trump. Mas essa resposta perturbava o verdadeiro establisment. Assim, a rebeldia que os americanos procuram ficou com Trump. E isso pode ser fatal.

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