Um procurador que abala o regime

(Daniel Oliveira, in Expresso, 27/02/2016)

Autor

                         Daniel Oliveira

Para quem tem estado em Marte, Orlando Figueira foi procurador e, enquanto tal, arquivou um processo que envolvia Manuel Vicente, vice-presidente de Angola, Leopoldino Nascimento (general Dino, amigo de José Eduardo dos Santos, consultor do general Kopelipa na Casa de Segurança do Presidente e sócio de Manuel Vicente e Kopelipa numa das maiores empresas privadas de petróleo angolanas, a Nazaki Oil & Gas) e José Pedro Morais Júnior, antigo ministro das Finanças e atual governador do Banco Nacional de Angola. No mesmo dia em que arquivou o processo por ausência de provas, a 16 de janeiro de 2012, terão caído na conta do procurador 170 mil euros provenientes da sociedade Primagest, onde a Sonangol tem participação. Manuel Vicente era então CEO da petrolífera angolana. Orlando Figueira já teria recebido antes outros 130 mil. Também já vi, noutras notícias, o valor total de 200 mil. Não sei qual deles é rigoroso. Depois do arquivado o processo o procurador meteu licença sem vencimento e foi trabalhar para o BCP, que tem como principal acionista a Sonangol. Figueira foi detido esta semana por suspeitas de corrupção passiva na forma agravada, branqueamento de capitais e falsidade informática e encontra-se desde ontem em prisão preventiva. Teve mais sorte do que Sócrates. A confirmarem-se estas suspeitas, estamos perante escândalo que tem repercussões profundas nas relações diplomáticas com Angola, no sistema financeiro e no sistema de Justiça.

Antes de tudo, é preciso dizer que este processo começa como todos os outros: com fugas para o “Correio da Manhã”. Em vez da clareza da informação, dada de forma oficial e nos limites determinados pela lei, temos a costumeira promiscuidade entre investigadores e jornalistas, que promove julgamentos mediáticos seguidos de falhanços judiciais. Enquanto assim for será difícil a Justiça reconquistar a confiança dos cidadãos. É quase sempre demasiada parra noticiosa para pouca uva na investigação.

Ainda assim, este caso escabroso poderá vir a ter enormes consequências. A primeira tem a ver com a relação de Portugal com Angola. Manuel Vicente é suspeito de corrupção ativa por duas transferências bancárias feitas para uma conta de Orlando Figueira. O vice-Presidente da Angola ou alguém por ele terá corrompido o sistema de Justiça português para o arquivamento de um processo. A banalidade com que já tratamos casos que envolvam os homens fortes do regime de José Eduardo dos Santos talvez não deixe perceber a gravidade desta suspeita. Caso ela se venha a provar é impossível que não abale de forma muito profunda as relações do Estado português com o Estado angolano. Há muito que sabemos que a estreita relação das nossas empresas e do nosso sistema financeiro com o regime cleptocrata de Angola põe em causa a credibilidade da nossa economia e das nossas empresas. Mas isto passa uma fronteira que não pode ser ignorada. Quando nos vamos começar a chocar? Quando alguém mandar matar um juiz?

Por enquanto recomenda-se o silêncio que Rui Machete não soube respeitar, quando quis descansar os políticos angolanos quanto a qualquer possibilidade de serem investigados em Portugal. Mas no fim de tudo alguma coisa terá mesmo de acontecer. Um vice-presidente não é um generalzeco qualquer. Recordo que é a primeira vez que políticos de topo em Angola são suspeitos de corrupção em Portugal. O caso envolver um vice-Presidente e um procurador do DCIAP é uma estreia de estrondo.

Depois há o papel do Millennium BCP. Não é para mim ainda claro, pelo menos através das notícias que li, que papel tem o banco em toda esta história. Mas a Sonangol é acionista deste banco e foi para lá que Orlando Figueira rumou, na função de consultor do departamento de “compliance” desde 2012, depois de arquivar uma investigação que envolvia o ex-CEO da Sonangol. Em 2014 passou a ser também assessor jurídico do CEO do ActivoBank, uma instituição do grupo Millenium BCP vocacionada para a banca online. Esta promiscuidade da banca nacional com os negócios mais estranhos em Angola, que agora a põe no olho do furacão de um dos casos mais graves de corrupção na história do país, é só mais um prego na moribunda credibilidade do sistema financeiro português. Mas se serviu de veículo para corromper um magistrado estamos, mais uma vez, para lá de uma fronteira que até agora não tinha, que se soubesse, sido ultrapassada.

Por fim, os efeitos que isto tem no nosso sistema de Justiça. Eles são contraditórios. Comecemos pelos positivos: parece que os mecanismos de investigação não poupam a própria casa. E isso é um excelente sinal de saúde da própria Justiça. E pode, já agora, ser pedagógico. Muitos magistrados com menor formação democrática convenceram-se que a corrupção é um fenómeno da política e que estão envolvidos numa luta corporativa em que eles são os justiceiros imaculados contra uma classe de corruptos. Este caso recorda que a corrupção é sempre um fenómeno transversal. E que a existência de um corrupto não tem de manchar todos os que com ele partilham funções. Talvez seja mais fácil, para alguns procuradores mais dados ao populismo tabloide, compreender agora os perigos da generalização e da transformação da aplicação da Justiça numa guerra de corporações.

Orlando Figueira não era um procurador perdido numa qualquer comarca irrelevante. Era, à data do sucedido, magistrado do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), estrutura de elite do Ministério Público. O que fez, fez nas barbas de quem tem de investigar estas coisas. Muito pior do que isto: apesar do incómodo causado pelo pedido de licença sem vencimento logo depois de um arquivamento estranho, o Conselho Superior do Ministério Público concedeu-lhe uma licença de longo prazo, permitindo-lhe ir trabalhar para o privado e voltar, mais tarde, a exercer as funções na magistratura. E fê-lo sem se saber ao certo para onde ele ia trabalhar. Devo dizer que só a possibilidade de um magistrado poder interromper as suas funções para trabalhar no privado e depois regressar me deixa atónito. Num país que está tão concentrado nas incompatibilidades dos políticos, quando a política não é uma carreira profissional, é curioso que isto seja possível. Demonstra apenas que os magistrados têm estado sujeitos a pouco escrutínio público.

A confirmarem-se as suspeitas avançadas pelo Ministério Público, assistimos, depois de José Sócrates, à mais significativa investigação por corrupção de que tenho memória nas últimas décadas. Não pelos montantes envolvidos. Mas porque ele abalará de forma profunda as relações de Portugal com Angola. Como lida um Estado com outro, quando esse tem como Vice-Presidente alguém que corrompe os seus procuradores? Porque, caso o BCP, para onde o procurador foi trabalhar, esteja envolvido nesta história é mais uma machadada na já quase nula credibilidade da nossa banca.

E porque, dando sinal de que o sistema de justiça é capaz de se investigar a si mesmo, revela que é possível um procurador de topo saltar da magistratura para o privado para depois regressar, com uma licença sem vencimento autorizada dos seus pares. O que corresponde a um convite à corrupção. O caso do procurador Orlando Figueira faz quase o pleno dos problemas nacionais: as relações com Angola, a credibilidade da nossa banca e o estado da nossa justiça. É obra.

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