(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 24/02/2016)

Daniel Oliveira
No Parlamento vi o que vejo mais ou menos todos os anos. Um debate genericamente aborrecido e pobre em que a oposição desancou no orçamento. Ouvi a repetição da ideia de que este é, entre o esboço e o orçamento final, o quarto ou quinto orçamento. Esta é talvez a acusação mais pateta. Só há um orçamento: o que é aprovado no fim. Tudo o que é feito antes são propostas. Se um partido tem maioria absoluta e um país não está dependente de vistos prévios externos ele é pouco mudado. Se negoceia com outros partidos é mais alterado. Se tem de ir a Bruxelas para ser aprovado por burocratas em quem ninguém votou é ainda mais alterado. Sendo um documento de trabalho, é natural que sofra modificações. Tantas mais quantos mais intervenientes houver. Uma coisa é a crítica às erratas, algumas delas substanciais e por isso motivo natural de chacota, outra é ignorar que o processo legislativo passa por alterar documentos. Deputados fazerem disso gozo é gozarem com o essencial do seu próprio trabalho.
Vi que a oposição continua a confundir carga fiscal com receita fiscal. A tese é esta: o crescimento económico será sempre uma má notícia para os contribuintes porque isso aumenta a receita fiscal. O facto de insistirem nesta fraude, em vez de medirem a variação da carga fiscal, como sempre se fez, é a demonstração de uma enorme fragilidade da sua argumentação.
Ouvi dizer que o orçamento não era realista, e por isso era apenas intercalar. E que, no entanto, não virava a página. Uma acusação absolutamente coerente, já que, se houver um orçamento retificativo, esse é um hábito e seguramente não se virou página alguma. Isto tendo em conta que os mesmos que falam de irrealismo aprovaram 12 orçamentos em apenas quatro anos.
Aliás, a oposição mantém um discurso duplo que não lhe permite grande fluidez argumentativa: este é um orçamento irresponsável que mantém a austeridade. Passos Coelho anunciou que Bruxelas chumbou este orçamento, mas nós não sabemos. Costa vergou-se a Bruxelas mas Bruxelas está zangada. O orçamento é tão austeritário como o do governo anterior mas, apesar das mudanças de política não terem passado de uma farsa, é voluntarista e irresponsável. Tanto que assustou os mercados. Ou seja: o orçamento é igual mas totalmente diferente, austeritário mas despesista, uma cedência à Europa que a Europa não aceitou, uma encenação que deixa tudo na mesma mas põe toda a gente em pânico com as suas aventuras. E as taxas de juro aumentaram por causa de tudo isto e baixaram por outra razão qualquer. Esta confusão serve para driblar um facto: no deve e haver, o cidadão comum ficou a ganhar. Mal ou bem, os custos do ajustamento não foram cobrados aos mesmos. Mas lá se clarificou alguma coisa: o dinheiro que se foi buscar aos impostos sobre combustíveis Passos queria ir buscá-los aos cortes no sistema de pensões que andou a defender no último ano.
No Parlamento vi o que vejo todos os anos. Um debate genericamente aborrecido e pobre em que primeiro-ministro e deputados do partido do Governo defenderam o seu orçamento. Defenderam as opções fiscais feitas, que em vez de taxarem ainda mais o trabalho taxam o produto que mais importamos e que mais baixou de preço, mantendo-o a valores semelhantes aos do início do ano. A defenderem que, exatamente ao contrário do que diz o CDS, as deduções de 550 euros por filho e o aumento do abono de família favorecem mais a maioria das famílias do que o quociente familiar, que ajudava tanto mais quanto mais dinheiro se tivesse. Defenderem o aumento dos apoios sociais. E recordaram as propostas com que a anterior maioria se tinha comprometido, onde os 600 milhões a ir buscar às pensões era apenas uma das partes. E falaram demasiado do passado. Mas isso é já um hábito nacional.
Não ouvi em nenhum momento o PS e o Governo a enjeitarem a paternidade deste orçamento, sendo um pouco estranho que na comunicação social se fale de “orfandade”. Um orçamento é sempre o caminho entre o que se quer e o que se pode. Dizer que não se conseguiu tudo o que se desejava no braço de ferro com a Europa é a confissão de que a política é o que sempre foi, a arte de casar a vontade com a realidade.
No Parlamento vimos todos uma coisa que nunca tínhamos visto: Bloco e PCP a aprovarem um orçamento. Nunca se tinham sequer abstido. Na realidade, nunca tinham realmente negociado um orçamento (houve um exercício cénico entre o Bloco e António Guterres, onde nada realmente aconteceu).
O momento a que estamos a assistir foi indiscutivelmente histórico. Mas foi diminuído pelos próprios, quando deputados do BE e do PCP repetiram, em todas as suas intervenções, que este não era o seu orçamento. Não pode ser. Não há umas coisas simpáticas que são nossas e outras antipáticas que são de quem as apanhar. Quem aprova um orçamento é responsável por um orçamento. Assumir a responsabilidade do que se faz é condição para debater de rosto erguido com os adversários.
Este orçamento é, ao contrário do que os próprios disseram, do PS, BE, PCP e PEV. E só nisso Assunção Cristas tem toda a razão. Essa foi a única vitória que, neste debate, foi dada a uma direita sem um discurso que corresponda a uma narrativa com princípio, meio e fim.