(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 05/09/2015)
1 Aylan está morto e abandonado, o seu corpo virado de costas ao sol e à vida e a sua cara mergulhada na rebentação das ondas da praia de Ali Hoca, em Bodrum, Turquia. O mar que lhe deveria ter dado uma vida, trouxe-o de volta, morto e notícia. A fotografia do jovem corpo de Aylan Kurdi, de três anos de idade, é daquelas que estão destinadas à eternidade. Mas, antes da eternidade, a fotografia de Aylan, morto e exposto, estava, como seria de prever, destinada à modernidade: a tornar-se, como é moda dizer, “viral nas redes sociais”. Durante alguns dias, o tempo de outro fugaz evento apagar a sua memória, a última imagem da sua breve vida aliviará consciências nas “redes” e um simples forward deixará à multidão em rede a sensação de dever cumprido. Até que novidades sobre Kim Kardashian ou sobre um cão violento que vai ser abatido remetam a memória da insuportável banalidade da sua morte para o não-lugar de onde veio e o não-lugar onde acabou: às portas da Europa sonhada.
É curioso ver a forma como a mesma fotografia foi tratada, por exemplo, entre nós. Enquanto que o “Público” escolheu um plano próximo da criança, de cara contra a rebentação, e um polícia ao lado, aparentemente tomando notas, o “Diário de Notícias” optou pela fotografia completa, e esta, abrindo o campo, mostra-nos outro polícia afastando-se da cena com uma máquina fotográfica a tiracolo (em lugar de um colete salva-vidas ou de uma mala de primeiros socorros) e, ao fundo, dois pescadores, de cadeira e cana de pesca montadas, alheados da presença da criança morta — um deles olhando para a objectiva do fotógrafo, como se a sua presença ali fosse a única coisa estranha. Como nas “Meninas”, de Velázquez, é a profundidade de campo e os personagens finais, em fundo, que nos revelam toda a verdade. É óbvio que a opção do “DN” é a única que nos conta a história toda e que verdadeiramente nos interpela, em lugar de apenas nos chocar, remetendo-nos para aquilo a que o Papa chamou, em Lampedusa, “a globalização da indiferença”.
É disso que se trata, apenas: ficar ou não ficar indiferente. Ver e parar ou ver e continuar à pesca. A Europa não pode, simplesmente, ver e seguir em frente, como se não tivesse visto. A Europa, cada uma das suas nações, cada um dos seus cidadãos. Cada um de nós. Os refugiados políticos da Síria, fugidos do horror e da barbárie, são mais importantes do que as ruínas romanas de Palmira destruídas pelos mesmos monstros sob forma humana, são mais importantes do que o nosso bem-estar e as nossas eleições, que têm de seguir em frente e ser disputadas. Indo ao concreto, que é aquilo que interessa a estes deserdados da terra, os nossos governos, o Governo português incluído, têm o estrito dever moral de organizar a solidariedade, o apoio e o acolhimento desta gente: tantos quantos cada país puder, na proporção da sua riqueza, da sua população, das suas disponibilidades. A solidariedade individual ou das organizações da sociedade civil é muito importante, mas não chega para as necessidades e não é justamente repartida. Defendo a criação de um imposto nacional de solidariedade destinado a financiar o acolhimento dos refugiados sírios; defendo a imposição de quotas obrigatórias para os municípios; defendo a mobilização de todos os espaços públicos disponíveis ou subaproveitados; defendo, enfim, a solidariedade colectiva de todos os portugueses e de cada um segundo as suas possibilidades, organizada pelo Estado, e sem que isso possa ser, como em Inglaterra, motivo de discussão política e de aproveitamento eleitoral. (Mas, atenção: acolher os refugiados não é pô-los a limpar matas, como, num momento de grande infelicidade, defendeu António Costa).
“E eu vi-te numa praia abandonado,à luz e pelos ventos destroçado,e os teus membros rolaram nos oceanos”
Vejo, com satisfação, que, depois de ter regateado a nossa quota de refugiados, conseguindo que baixasse de 2000 para 1500, Passos Coelho mudou o discurso e alinhou (desta vez, com razão!) pela postura exemplar da chancelerina Merkel: não podemos, simplesmente, fechar as fronteiras, rodearmo-nos de arame farpado, deixá-los morrer no mar. A Alemanha dispôs-se a receber 800.000 sírios (1% da sua população, o equivalente a 105.000 em Portugal), a Suécia, com uma população idêntica à nossa, vai receber 300.000, e os islandeses estão dispostos a acolher 50.000, o equivalente a 20% da sua população. Perante estes números e a dimensão do que está em causa, os 1500 refugiados que Portugal aceitou receber ou os 32.000 que Bruxelas aprovou para toda a União, não passam de uma forma de olhar e seguir em frente. Deixem-nos ser um bocado melhores do que isso!
É claro que a, prazo, a solução está na origem e não na foz do rio. Não se trata de despovoar a Síria e torná-la para sempre um país de uma nação sem pátria, dispersa pelo mundo. É claro que a raiz do problema continua a ser a irresponsabilidade criminosa da segunda guerra do Iraque, que desintegrou o Estado e permitiu o advento do Daesh, logo propagado à Síria. E é claro que, mais cedo ou mais tarde, o problema terá de ser atacado na sua raiz e por via militar. Mas agora não se trata disso, trata-se, pura e simplesmente, de salvar vidas. E, para isso, não há nenhuma alternativa, a não ser deixar morrer. Quem poderá defendê-la?
2 Não é só por causa do drama dos refugiados que a política doméstica nos aparece agora como coisa quase mesquinha. Mas é difícil não comparar o que está em jogo para os milhares de pessoas que todos os dias arriscam a vida para poderem chegar até nós com, por exemplo, o absoluto vazio defensivo das ideias (?) dos candidatos ou protocandidatos a PR. O que nos interessa a nós que Maria de Belém anuncie que só anuncia a sua candidatura em Outubro, que Rui Rio continue em profunda reflexão até lá ou que Marcelo já tenha falado com os filhos e os netos? Deles, dos seus projectos e ideias, sabemos apenas que todos desejam, intensamente e como está à vista, chegar a Belém — de preferência teletransportados em ombros e sem imprevistos. Mas o que pensam eles, por exemplo, desta crise dos refugiados sírios e da posição que Portugal deve assumir? O que pensam eles da dívida pública e da factura eterna que ela representa? O que pensam de todas as privatizações que se traduziram em pior e mais caro serviço para os portugueses — a EDP, a PT, a ANA, em breve a TAP? O que pensam da ruinosa gestão da Caixa Geral de Depósitos? Ou da inacreditável perda de valor do Novo Banco em apenas um ano, deixando agora encalacrado o coro dos apoiantes entusiásticos da Resolução do Banco de Portugal? O que pensam quando nos vêem a suplicar aos chineses que nos comprem o que resta a preço de saldo? O que pensam dizer aos 350.000 portugueses que emigraram nos últimos quatro anos? E, já agora, o que farão com um governo minoritário daqui por um mês? Se não pensam nada, ou se não se atrevem a pensar nada em voz alta, porque concorrem? É que, por mais legítimas que sejam as profundíssimas reflexões pessoais dos candidatos sobre a sua própria candidatura, eles não são mais importantes do que o lugar a que aspiram. E, por isso, em vez de nos massacrarem com este ridículo jogo do “segurem-me, empurrem-me, vou já, vou daqui a pouco, estou quase”, deveriam começar logo por dizer qual a razão primeira e primordial que os leva a pensar numa candidatura.
Na verdade, olhando para o que está à vista, não fosse pela continuação em funções do actual PR, e eu estaria tentado a defender o cancelamento destas presidenciais. Como nos concursos em que se declara não preenchida a vaga por falta de qualificações dos candidatos. Aliás, e como sou um bocado iconoclasta em relação aos poderes majestáticos, até seria capaz de sonhar em suprimir o cargo de chefe de Estado. E, de caminho, suprimia o Tribunal Constitucional, reduzia a Constituição a trinta artigos de compreensão linear e universal, acabava com a autonomia do Ministério Público e a das autarquias em matéria de licenciamentos urbanísticos. Não estou certo de que ficássemos pior.
(Mas não levem a mal estes desabafos: é só a depressão pós-férias ou pós-fotografia).
(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia)
E que pensam eles (e o Miguel Sousa Tavares) da pensão de Ricardo Salgado, antigo dono do BES, que vai triplicar, passando de 26 000 € a 90 000 € ???