A importância de algumas coisas

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 11/07/2015)

Miguel Sousa Tavares

                                     Miguel Sousa Tavares

Por que razão me parece importante defender causas como a rejeição do Acordo Ortográfico, a venda da TAP, a destruição da Praia da Dona Ana, em Lagos, a concessão do Oceanário de Lisboa a privados ou a condenação sem apelo da Grécia? E por que razão a actual maioria de centro-direita não consegue pensar em nenhuma destas questões sem reduzir tudo a uma simples soma de deve e haver, que, em si mesma, daria a resposta ‘moral’ e política adequada? Poderemos justificar tudo com as necessidades financeiras geradas pela crise: aumentar as receitas do turismo (destruindo a paisagem), potenciar teoricamente o comércio externo (abdicando da língua escrita a favor de gramáticas alheias), criando receitas para os cofres do Estado (vendendo monumentos públicos ou a companhia aérea que, junto com a língua, era o maior embaixador de Portugal no mundo)?

Terá a direita abandonado as bandeiras do patriotismo para a esquerda e feito do internacionalismo “europeu” o seu território sagrado? Será a antiga noção de “interesse nacional” hoje apenas um chavão da extrema-esquerda, substituído pela necessidade de obedecer às regras ditadas por Bruxelas, em quaisquer circunstâncias? Mas, sabendo-se que o patriotismo pode, em alguns espíritos fracos e acessíveis, confundir-se facilmente com o seu lado negro, que é o nacionalismo (em cujas águas turvas navega a extrema-direita), terá a direita democrática razão quando sustenta que são as suas lideranças europeias que mantêm o nacionalismo antidemocrático e antieuropeu a uma distância higiénica?

Como sairemos desta armadilha, defendendo simultaneamente uma Europa unida no essencial, mas conciliando permanentemente a vontade comum com a vontade individual de cada povo que a integra? Muito mais do que a dramática situação financeira e económica a que chegou a Grécia (mas que é ridícula em termos financeiros da União), são as outras questões que a Grécia coloca a toda a Europa que nos surgem como determinantes. De facto, se há coisa que se pode ter como certa na questão grega é que ela é tudo menos “simples”, como proclamou o vice-presidente do PSD, Marco António Costa: ou aceitam as regras do euro ou saem. Aliás, é justamente este simplismo de análise que encerra em si todos os perigos. Se aquilo que a Europa tem, em substância, para dizer à Grécia é que a vontade do povo grego, duas vezes manifestada, não conta para nada face às regras do grupo, então parece inevitável extrair daí a conclusão lógica: as eleições nacionais, no contexto da União, não significam nada. Isto seria uma hipótese plausível, se houvesse um governo europeu, tout court, eleito em sufrágio universal directo por todos os povos da Europa, em simultâneo. Porém, não é assim que as coisas acontecem dentro do clube: uma das grandes justificações para com a intransigência europeia face à Grécia é a oposição maioritária dos alemães, do seu parlamento e do seu Tribunal Constitucional. E temos o caso da Hungria, cujo Governo de extrema-direita fez alterações constitucionais e revisões da lei de imprensa que violam as regras da UE e agora pretende erguer um muro na fronteira com a Sérvia para estancar o fluxo de refugiados extraeuropeus, à revelia dos acordos comunitários e das políticas comuns nesta área. Ou seja: parece estarmos, de facto, a caminho de uma Europa chefiada por um directório dos grandes países e seus aliados, os únicos onde a vontade manifestada pelos eleitores tem importância. Aos pequenos países, restar-lhes-ia apenas tentar sobreviver num espaço comum onde, à desigualdade das condições financeiras, fiscais e laborais, se viria sobrepor uma desigualdade estrutural de representatividade e peso politico. Seriam “sleeping partners” numa empreitada que, de comum, já pouco teria.

Como podem os países convergir entre si se são diferentes as regras bancárias, as taxas de juro e as cargas fiscais entre os seus membros?

Dir-me-ão que essa é a evolução fatal de uma União em que dos fracos não pode a história apiedar-se. Em que é preciso deixar cair os fracos para que o núcleo duro prossiga em frente. Mas o que mede o peso relativo de cada país dentro da União? Será apenas o PIB, a dívida, a competitividade? Ou serão muitas outras coisas, anteriores e irrevogáveis, mesmo quando aparentemente submersas? Sem sequer trazer à colação a contribuição de cada um para a história da Europa e da humanidade, pergunto quem interessa mais à Europa: a Finlândia, bem-comportada e intransigente com os mal-comportados, ou a Itália, completamente endividada? A fábrica da BMW em Munique ou as ilhas do Mar Egeu da Grécia, onde o Oriente e o Ocidente, o mundo islâmico e o cristão se cruzam? A resposta só pode ser uma: depende do que entendemos por Europa e que Europa queremos ter.

Mas sim, claro, não podemos negligenciar a questão financeira. E é forçoso repeti-lo todas as vezes necessárias: nenhum país pode querer viver em situação de perpétuo endividamento, sustentado pelos outros. Mas também é muito fácil aproveitar as fraquezas e as ambições alheias para levar alguém a endividar-se acima do que pode pagar. Nos factos concretos da dívida grega, e da nossa também, existe uma enorme responsabilidade dos credores, cuja ambição de lucro fácil não foi menor do que a ambição grega de uma vida fácil. Mas, além dessa circunstância histórica, resta a questão de fundo que o caso grego tornou dramaticamente actual: será a moeda única um factor de união ou antes de desigualdade crescente? Como podem os países convergir entre si, e os países mais pobres do euro competirem com os mais ricos, se são diferentes as regras bancárias, diferentes as taxas de juro a que Estados e empresas se financiam, diferentes as cargas fiscais entre os seus membros? Ou dito, de outra maneira, como podem os pobres jogar o jogo segundo as regras dos ricos e aguentarem-se?

Se houvesse tempo, poderíamos estar a discutir essas questões. Discutir o destino da Europa, que é a questão mais importante. Se houvesse tempo e gente capaz de liderar essa discussão. Mas, de reunião em reunião do Eurogrupo, de conselho em conselho europeu e de cimeira em cimeira europeia, tudo parece não passar de uma enorme perda de tempo, em que, na melhor das hipóteses, se concorda em adiar a discussão para não ter de a encerrar sem nada.

Desintegramo-nos aos poucos, movidos por uma inércia invencível que nada mais permite do que gerir a Europa à semana. Os mais fortes ainda se podem permitir o luxo de levar em conta a vontade dos seus povos e nela fundamentarem a sua inércia; os pobres nem isso: são uma espécie de governo-sombra de si mesmos.

P.S. — Já todos disseram mais e melhor do que eu, alguns até antes de tempo. Eu queria apenas — na hipótese de lá em cima Maria de Jesus Barroso poder continuar a ler jornais — agradecer-lhe uma amizade familiar sem tréguas, que passou por quatro gerações.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

2 pensamentos sobre “A importância de algumas coisas

  1. Com tanta prosa em que não se distingue entre os países e a sua liberdade de fazer diferente (porque são independentes financeiramente e os que são permanentemente mal governados, deverá a perspectiva pessoal dos escriba influenciar o que se defende.
    Quem tem uma independência económica garantida (dado a profissão na Brigada das Colheres a volta do tacho público, ou por rendimentos seguros próprios ou herdados) talvez se sinta mais próximo de defender que os gregos “devem” ou têm o “direito” de receber a ajuda dos outros povos. A mim julgo que tanta incompetência não deve pesar nos ombros dos eficientes a governar-se.

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