(Nicolau Santos, in Expresso, 16/05/2015)
Nas eleições legislativas de outubro vou votar num partido que tenha uma visão, uma estratégia, uma ambição para o país. Que nos apresente uma ideia que mobilize e congregue os cidadãos. Que faça vir ao de cima o melhor de nós. Que nos entusiasme, que nos galvanize, que nos faça sentir tão bons como os melhores, que nos faça ter orgulho de ser portugueses.
Nas próximas eleições vou votar num partido que coloque o mar no centro dessa estratégia. Mas não apenas por palavras. Eu votarei no partido que se comprometa a tornar o país como o mais avançado a nível mundial nas ciências do mar. Que assuma o compromisso de colocar os melhores recursos humanos e materiais, de forma maciça, nesse desiderato. Que não hesite em meter todas as fichas nesta aposta estratégica.
Nas próximas eleições vou votar no partido que assuma o compromisso de, até ao final da legislatura, canalizar 3% do Orçamento do Estado para a área da ciência, investigação e desenvolvimento. E que faça um enorme esforço para dar condições para que as centenas de investigadores e cientistas portugueses que se encontram no estrangeiro, na Grã-Bretanha, Estados Unidos, França e Alemanha, regressem ao país. E que desenvolva todos os esforços para que muitos desses investigadores possam trabalhar nas empresas nacionais.
Nas próximas eleições vou votar no partido que assuma que 1% do Orçamento do Estado será investido na área da Cultura. O apoio ao cinema, ao teatro, ao ballet, à música, a todo o tipo de artes é essencial para que, a par do envelhecimento dos cidadãos, não haja também uma dissolução da identidade nacional. E a Cultura é o cimento que nos une e o que nos eleva a um patamar superior.
Nas próximas eleições vou votar num partido que ataque de frente a questão da baixa natalidade, dando condições a todos os que querem ter filhos para poderem decidir nesse sentido — um partido que nos diga quais as medidas concretas, nas áreas laboral, educacional, fiscal e outras que irá tomar para inverter esta dramática tendência.
Vou votar num partido que tenha uma visão, uma estratégia, uma ambição para o país. E que acredite nos portugueses.
Nas próximas eleições vou votar num partido que me diga que vai resolver o problema das baixas qualificações de 2/3 da população ativa, através de um vastíssimo programa de requalificação. Sem isso, não haverá aumento da competitividade.
Nas próximas eleições vou votar num partido que não transija em matéria de ética e de corrupção — e que diga sem rodeios que será impiedoso para quem, enquanto servidor da Res publica, utilize os recursos públicos em seu próprio proveito. Vou votar em quem me dê garantias que resolverá a situação da Justiça. Alguém que me leve a acreditar que vai deixar de haver imprevisibilidade nas decisões, adiamentos inaceitáveis, prescrições inadmissíveis, sentenças sem senso.
Se houver um partido que cumpra a maior parte destes requisitos, pode contar com o meu voto. Até lá, como diria o Cesariny, falta por aqui uma grande razão.
Olha quem tem défice!
De acordo com a Comissão Europeia, a Inglaterra, onde Cameron acaba de conseguir uma surpreendente maioria absoluta, não seguiu as recomendações de 2009 (!) de Bruxelas e está com um défice de 5,2%. Agora tem até 2016-17 para colocar o défice abaixo dos 3%, como a França. E a Finlândia, que tanto nos criticou, “não cumpre os critérios da dívida e do défice”. Nós, pelo contrário, vamos ficar abaixo dos 3% este ano. Um dia destes, pobrezinhos mas honrados, ainda falamos de cátedra aos países do norte.
Passos ganhou a batalha ideológica
A ideia é de João Cravinho e foi avançada num debate sobre políticas públicas em tempos de troika, organizado pelo ISCTE: Passos Coelho ganhou a batalha ideológica. E ganhou-a porque não mudou só o Estado, a economia, as relações laborais: mudou-nos a alma. Hoje estamos mais descarnados, mais descrentes, mais tementes à mudança. Interiorizámos as culpas pela crise. A nossa matriz judaico-cristã leva-nos a assumir que foi o nosso pecado de luxúria consumista que nos conduziu ao pedido de ajuda internacional. E é essa mesma matriz que nos leva a aceitar que “só saímos disto empobrecendo”. Passos ganhou a batalha ideológica porque houve várias “verdades” que se tornaram oficiais, à custa de tanto serem repetidas: que vivemos acima das nossas possibilidades, que trabalhamos pouco, que não somos produtivos, que temos demasiados dias de férias, que temos excesso de garantias quando somos trabalhadores sem termo, que os pensionistas recebem de mais, que os funcionários públicos ganham muito para o que produzem, que a emigração é uma oportunidade, que os contratos a termo certo são melhor que nada, que licenciados a ganhar 700 ou 800 euros por mês é aceitável. Passos ganhou a batalha ideológica porque colocou velhos contra novos, empregados contra desempregados, funcionários públicos contra trabalhadores do setor privado. Toda a gente aceita hoje que é necessário reduzir mais e mais as pensões e que a devolução dos salários na Função Pública só esteja regularizada em 2019. O enorme desemprego é uma fatalidade. Poucos contestam o caminho que estamos a trilhar. Quando muito contesta-se o ritmo. O CDS e o próprio PS parecem estar reféns destas ideias. Passos só não alcançou ainda o seu último objetivo, embora o tenha forçado várias vezes: a revisão da Constituição. Mesmo assim, e apesar do Tribunal Constitucional, conseguiu que algumas das suas pretensões passassem. Que ninguém tenha dúvidas: Passos vai dar muita luta até às eleições de outubro. E mesmo que as perca, já nos mudou a alma.
Há qualquer coisa aqui de que não gostam
da terra das pessoas ou talvez
deles próprios
cortam isto e aquilo e sobretudo
cortam em nós
culpados sem sabermos de quê
transformados em números estatísticas
défices de vida e de sonho
dívida pública dívida
de alma
há qualquer coisa em nós de que não gostam
talvez o riso esse
desperdício.
Trazem palavras de outra língua
e quando falam a boca não tem lábios
trazem sermões e regras e dias sem futuro
nós pecadores do Sul nos confessamos
amamos a terra o vinho o sol o mar
amamos o amor e não pedimos desculpa.
Por isso podem cortar
punir
tirar a música às vogais
recrutar quem os sirva
não podem cortar o Verão
nem o azul que mora
aqui
não podem cortar quem somos.
Manuel Alegre, ‘Resgate’, in “Bairro Ocidental”, Dom Quixote, 2015