1% que vive à custa de 99%

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/02/2016)

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                        Daniel Oliveira

Vivemos um momento histórico que chegou um ano antes do previsto. Segundo o relatório apresentado pela Oxfam no último Fórum Mundial em Davos (que discutiu a desigualdade entre jantares de milhares de euros), o 1% mais rico da humanidade ultrapassou finalmente os restantes 99%. O número fica mais impressionante quando se diz assim: há 62 pessoas que detêm tanta riqueza como metade da população mundial. Há cinco anos eram precisos 388 milionários para chegar a tanto.

Nos últimos cinco anos, estes 62 multimilionários aumentaram a sua riqueza em 44 por cento, enquanto os 3,5 mil milhões que se encontram na metade de baixo viram o seu rendimento reduzir-se em 41 por cento. Desde o início do século que a metade mais pobre beneficia de menos de 1% do aumento total da riqueza mundial, enquanto os 1% mais ricos fica com metade desse aumento. Isto contraria a ideia de que com a globalização o mundo tende para um maior equilíbrio e justiça e que a perda de dinheiro e de direitos no ocidente corresponde a um processo de redistribuição da riqueza.

Entre os vários mecanismos de concentração de riqueza está a isenção prática de pagamento de impostos por parte dos que mais os deviam pagar. Segundo este relatório, cerca de 7 biliões de euros encontra-se em paraísos fiscais. Se fossem taxados gerariam 174 mil milhões de receitas fiscais anuais. Só o dinheiro perdido pelos Estados africanos em paraísos fiscais permitia pagar os cuidados de saúde que, segundo o relatório, poderiam salvar quatro milhões de crianças e pagar a todos os professores do continente. Das 201 maiores empresas do mundo, apenas 13 não recorrem aos paraísos fiscais.

A coisa deve ser posta de forma clara: há uma elite económica que, através da compra do poder político, consegue que as regras sejam destorcidas e que ela própria esteja isenta dos deveres que a todos nós são impostos.

DAS 201 MAIORES EMPRESAS DO MUNDO, APENAS 13 NÃO RECORREM AOS PARAÍSOS FISCAIS. É UM ROUBO EM MASSA QUE TORNA VIRTUALMENTE IMPOSSÍVEL O FUNCIONAMENTO DOS ESTADOS

Apesar de ser uma luta difícil, os Estados têm-se unido para combater o terrorismo. Ou para combater o tráfico de droga ou de armas. Está bem, talvez não se tenham realmente unido para isso. Mas há pelo menos uma pressão política e uma censura moral perante a cumplicidade com estas atividades. Os paraísos fiscais são uma forma de roubo. E um roubo em massa que torna virtualmente impossível o funcionamento dos Estados. Aos países pobres, retira-lhes os mais rudimentares instrumentos de soberania. Aos países mais ricos, reduz os recursos disponíveis para garantir a escola e a saúde gratuitas ou um sistema de segurança social com desafogo. Quando tal se torna impossível, lá estão os mesmos a oferecer-nos os mesmíssimos serviços. Para quem os possa pagar, claro.

O pior é que esta fuga ao fisco, que permite à elite económica usar os recursos públicos pagos por nós sem para eles contribuir, começa a ser socialmente aceite. Perante a generalização dos paraísos fiscais, estamos todos sujeitos a uma chantagem: ou reduzimos drasticamente a carga fiscal para as empresas e para as grandes fortunas ou elas têm onde meter o dinheiro. No máximo estão dispostos a dar trocos. O funcionamento do Estado tem de ser, na prática, pago por nós, aqueles que entre os 99% não vivem na pobreza.

Antes de qualquer alteração legislativa ou política, temos de conseguir reverter a hegemonia ideológica que permitiu naturalizar, mesmo perante os lesados, este roubo legal e organizado. Só aí a pressão junto das elites políticas pode levar a que os paraísos fiscais passem a ser tratados como é qualquer Estado que ponha ilegitimamente em causa a nossa soberania, bem-estar e segurança. Para além de desmantelarem os seus próprios paraísos fiscais, as sociedades democráticas e desenvolvidas devem, em conjunto, isolar e impor sanções económicas e comerciais severas a todos os países que permitem esses offshores.

É um caminho difícil quando sabemos que a mesma União Europeia que quer uniformizar o défice dos Estados membros não só permite como incentiva a concorrência fiscal, servindo assim os interesses de uma elite que quer continuar a gozar das vantagens de sociedades organizadas e seguras sem ter de pagar os seus custos. Mas, pelo menos à escala europeia, temos que travar uma concorrência suicida que isenta quem mais tem dos seus deveres fiscais e esvazia os cofres dos Estados, destruindo com isso o Estado Social. A luta contra os offshores e a concorrência fiscal é uma das mais importantes lutas civilizacionais deste século. E estamos a perdê-la em toda a linha.

3 pensamentos sobre “1% que vive à custa de 99%

  1. Pois é, é tudo verdade. Mas onde estão os mecanismos ao dispor do comum cidadão para poder inverter estes abusos? Esperar que a UE se mexa é quase a mesma coisa que acreditar em milagres, porque a UE atinge sempre os mais fracos e é esta debilidade que a sustenta. O cidadão europeu está entregue a abutres que representam, salvo raras excepções, os interesses dos que estão próximos daqueles 1%. Se não forem os cidadãos a escrutinar e a exigir uma mudança de paradigma, a desigualdade entre estados, as fugas ao fisco, os gastos faustosos da UE … jamais se extinguirão. Como fazê-lo? Não sei.

    • Deixando os Europeus de votar cada vez mais à direita! Não tarda teremos Marine Lepen em França e no norte da Europa e no leste muitos países já mostraram que estão a favor de um estado forte e nada solidário. Assim não podemos esperar nada desta Europa cada vez mais desunida e prestes a entrar em “guerrinhas”uns contra os outros.

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