O Ronaldo, o André, o Paddy e eu

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 09/11/2019)

Clara Ferreira Alves

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Estou inconsolável. 2019 era o ano em que ia aparecer para os lados da Web Summit e participar do Portugal vibrante, moderno e rico, habitado por nerdstechies e surfistas com um metro e oitenta. Era o meu cheirinho de Silicon Valley, que afasta a tristeza urbana e a depressão suburbana que ensombram os utentes de transportes públicos e salário mínimo nas paragens de autocarro, quando passo por elas. Passava por elas, visto que estou de perna estendida, os médicos chamam-lhe elevada, com gelo e imobilização forçada. Lá se foi o momento alto do ano. E sobretudo a oportunidade de comprar não um sobretudo mas uma camisola Paddy Cosgrave, igual a uma que ele vestiu numa entrevista, azul, à venda por 700 euros. Feita à mão por artesãs (artesãs são mulheres) no condado de Donegal, na Irlanda, edição limitada e numerada. Cinquenta. Esgotada. Perdi ainda a oportunidade de comprar a camisola preta do dito Cosgrave, 765 euros, feita à mão pelas mulheres de Donegal num “ponto impossível de replicar pelas máquinas”. Pensava que a Web Summit era sobre a supremacia das máquinas, enganei-me. Sendo uma consumidora, como qualquer ser humano, uma coisinha que custa mais do que um salário mínimo atrai as atenções. Edição limitada? Do Paddy? Foi-se. Gostaria que o Paddy conhecesse um daqueles burlões de antigamente que vendiam gravatas e prédios no Marquês do Pombal a estrangeiros. Foram-se.

Falando de edição limitada, dei uma queda espetacular numas sapatilhas Nike edição limitada, com grau de aderência zero em caso de chuva copiosa. Estava a odiar os sapatinhos quando alguém teve a bondade de me enviar um WhatsApp com festiva foto do Cristiano calçando os ditos sapatos. Mesma cor e tudo, brancos, CDG, Nike. Edição limitada (mais baratos do que a camisola). Cuidado, Ronaldo, uma mãe partiu um pé nesse número! Eu. Mas o Ronaldo, um ‘Gucci boy’, não anda de metro em Londres nem usa as escadas rolantes e, tenhamos tino, uma perna dele vale mais do que a minha. O Ronaldo não treina nem joga com os sapatinhos japoneses, só tem de ter cuidado ao entrar no Range Rover. Ou no Bugatti Veyron. Se chover. O aviso fica.

Mal refeita da cirurgia à fratura trimaleolar, descubro que a grande irmandade do futebol e eu mesma temos mais em comum do que os sapatos. Outro futebolista famoso, e caro, sofreu uma lesão em campo semelhante à minha. Apercebi-me, pelos minutos que passei a ler “A Bola”, “O Apito” e outras publicações online nacionais e internacionais sobre a má sorte do André Gomes, que tinha uma “lesão terrível” e mesmo “horripilante”.

Descobri que ele gritou de dor, eu não, que lhe insuflaram imediatamente o anestésico metoxiflurano para atenuar a dor, a mim não, e que saiu de maca do relvado. Eu fui a caminhar até ao hospital e à urgência, amparada. Pelo meu restante pé. E não fui atendida nem operada logo, graças ao facto de o NHS inglês me ter chutado no primeiro avião para casa, fazendo-me perder dois dias de tratamento. E esperar horas sem analgésicos. Sabendo que a minha perna vale menos do que a do André Gomes, ficam as palavras de solidariedade.

Rapaz, vais sofrer. Ou, como te disse um futebolista internacional rodado nestas coisas, rapaz, vais lutar. Fiquei a saber pelo internacional que é uma “luta diária”. Ora, se o André me emprestasse o batalhão de preparadores, massagistas e fisioterapeutas, era excelente. Suponho que não. Valho menos, por comparação, do que uma artesã do condado de Donegal, e a minha idade é a do André ao contrário. Imaginem o quadricípite dele. O gastrocnémio. O solear. Todo o tricípite sural. Brutal. E nem falo do esternocleidomastoideo, não é para aqui chamado. E o André não teve de escrever uma coluna neste jornal na manhã da operação e acabá-la dez minutos antes da anestesia. Esta malta do futebol, umas rainhas do drama.

Qualquer velhote de Lisboa enclausurado num andar sem elevador depois de ter dado uma queda num dos passeios esburacados da calçada portuguesa, que a Câmara e as Juntas recusam repavimentar exceto nas zonas onde os hotéis pousam a majestade e servem os turistas, sabe que o sofrimento é coisa mental. Sendo Portugal o país mais velho da Europa e aquele onde o número de reformados e pessoas com mais de 65 anos em breve suplantará a população ativa, o que não parece deixar nenhum político preocupado, e ainda menos os deputados, os jornalistas e o povinho das redes, entretidos com a gaguez da Joacine e a retórica do Ventura, os nossos Demóstenes, pressinto que vamos ter os melhores ortopedistas da Europa. E do mundo. Há por aí muita fratura por acontecer. Muita mesmo. Parece-me ver aqui uma oportunidade de negócio superior ao das camisolas do Paddy e aos hoodies para crianças, “futuros aspirantes ao sucesso”, vendidos a 216 euros. “Dado o pormenor com que foram feitos”, segundo a organização da Web Summit.

No país dos lorpas, quem tem olho é rei. Se a Câmara pode gastar milhões com a WS, não vai dispersá-los a consertar pavimentos ou a tratar dos velhos. Segundo o Paddy, “ser empreendedor é ter uma ideia, concretizá-la, ganhar dinheiro com ela e descobrir novas formas de a pôr a render”. Se não o tivesse dito, nunca lá chegaria. Vou tentar descobrir o modo de pôr a render a alta percentagem de reformados. E coxos, que não têm representação parlamentar. Vou dedicar a imaginação não a arrumar e vender palavras e sim a raciocinar sobre canadianas e gelo. São “futures”. São “securities”. São “commodities”. Gelo, com o aquecimento global, é platina. Cadeiras de rodas são ouro. A mobilidade reduzida, plus a velhice, são mais valiosas do que petróleo. Os velhos vão precisar de material ortopédico. E de muito titânio para as reparações, placas e parafusos. O André Gomes sabe do que falo.

Quanto ao Paddy, sugiro, dado que vai passar dez anos em Lisboa e em Summits, que dê corda ao algoritmo. Vais envelhecer connosco. Esquece os hoodies, não temos crianças. Investe em cadeiras de rodas e muletas trendy. Coxos, inválidos, imobilizados e deficientes não faltarão. A Câmara providencia. É uma ideia G.O.A.T. (Greatest Of All Time). É Gucci (boa). É basic (básica). Precisamos de um look snatched (fixe).

Tou na tua vibe.


LISBON VALLEY

(Dieter Dellinger, 27/10/2018)

websumit

 

Segundo o Expresso Economia:

– A GOOGLE quer criar um centro tecnológico em Lisboa, empregando cerca de 500 pessoas e vai aproveitar o Web Summit para fazer os primeiros contactos.

– CISCO e o Governo português assinaram um memorando de entendimento para transformar Portugal numa nação digital com inovação e cibersegurança.

– MERCEDES-BENZ vai abrir no verão de 2019 o seu maior centro digital na Europa, a localizar no Beato para fornecer soluções tecnológicas para clientes do Mundo inteiro. Devem empregar, pelo menos, 125 programadores no departamento de camiões que já abriu um hub tecnológico que vai empregar 30 especialistas. Saliente-se que a fábrica de camiões da Mitsubishi no Tramagal pertence à Mercedes Trucks.

– BMW juntou-se à tecnológica portuguesa “Critical Software” numa parceria entre as áreas de mobilidade e engenharia de software para desenvolver aplicações para desenvolver o carro do futuro.

– VOLKSWAGEN decidiu criar em Lisboa um novo centro de desenvolvimento de software para o departamento da MAN Trucks and Bus, contratando 300 especialistas, sendo na maioria engenheiros e programadores de design.

– ZALANDO, plataforma de moda e lifestyle, abriu um centro tecnológico internacional em Lisboa. O terceiro fora da Alemanha. Até 2020 querem empregar 150 especialistas.

– AMAZON abriu em Setembro a plataforma na nuvem (cloud) para apoiar em Portugal os clientes na transição para esta nova tecnologia.

e muitas mais pequenas e médias tecnológicas estão a instalar-se em Portugal.

Um engenheiro informático alemão disse-me que o Estado português está muito mais avançado que o alemão na informática. Curiosamente, a revista “Der Spiegel” veio esta semana criticar o governo da Merkel de ter feito muito pouco pela informatização dos serviços públicos.

O Web Summit injetou 500 milhões de euros nas duas edições realizadas em Lisboa, esperando-se muito mais na próxima, já que Portugal ficou conhecido como um centro do futuro tecnológico europeu, tendo os nomes sonantes da indústria alemã estado a contribuir muito para isso.

Só na edição de 2017, entraram nos cofres do Estado 70 milhões de euros em receitas do IVA. Nessa edição estiveram em Lisboa 1500 investidores.

LSBON VALLEY é já uma realidade.I

Jantar com os mortos para recordar as asneiras dos vivos 

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 13/11/2017) 

Daniel

Daniel Oliveira

 

O jantar da Web Summit, que tanta e tão justificada indignação causou, não é o primeiro nem o segundo que se realiza no Panteão Nacional. Ao que parece, mesmo antes do regulamento existir, já tinham dado essa estranha função ao lugar onde estão aqueles que o País mais quer recordar. O regulamento, de 2014, aprovado pelo secretário de Estado da Cultura de Passos Coelho, Jorge Barreto Xavier, determina a possibilidade de alugar, para eventos sociais e culturais, os vários monumentos nacionais, apenas vedando isso a sindicatos (mas não associações patronais) e partidos. E diz que que o uso dado aos monumentos não pode colidir com a sua dignidade. Deveria chegar para impedir este aluguer? Não, mas já lá vamos.

Este regulamento, que autoriza o que não devia ser autorizado – não me refiro a todos os monumentos, mas a espaços como o Panteão –, corresponde a um pensamento hoje dominante: o da rendibilidade. A lógica de tornar os “ativos” do Estado rentáveis, aplicando-lhes a mesma lógica de qualquer empresa, só podia dar disparate. O predomínio absoluto dos critérios financeiros sobre os simbólicos, ignorando a importância da memória coletiva para a sobrevivência de uma comunidade, levou à tentativa de extinguir o 5 de outubro e o 1º de dezembro e ao total desinvestimento na cultura e no património. O regulamento que expressamente permite a utilização do Panteão Nacional para jantares e beberetes corresponde ao abandalhamento institucional que o período da troika impôs ao Estado. E que este governo, em demasiadas matérias, não abandonou.

É claro que o governo de António Costa tinha o dever de revogar este regulamento sem esperar que o escândalo rebentasse nas redes sociais. Até porque ainda há pouco tempo a Navegação Aérea de Portugal (NAV), que é uma empresa pública, tinha usado o Panteão para a mesmíssima função. A parte interessante desta e de outras críticas que vamos ouvido a este governo é que elas correspondem, na realidade, ao lento acordar de um pesadelo. Cada vez que levantamos uma pedra descobrimos os efeitos que a austeridade teve nos serviços públicos e na dignidade do Estado. E o principal reparo a fazer a este governo é não ser suficientemente rápido a reparar o que o anterior foi fazendo.

Mas voltemos ao regulamento. Sim, é verdade que que nele se diz que os eventos a realizarem-se nos monumentos nacionais não podem colidir com a sua dignidade. Todos achamos, ao que parece, que a organização de um jantar colide com a dignidade do Panteão. Suponho que não nos choca mais um jantar de empresários e convidados da Web Summit, evento apoiado pelo Estado, do que um qualquer outro.

O problema não é quem jantou e como jantou, é mesmo o jantar. Ora, o mesmo regulamento prevê expressamente o aluguer do Panteão para jantares e cocktails. O que quer dizer que, no espírito e na letra daquele regulamento, organizar jantares no Panteão não colidia com a dignidade daquele espaço. As regras, que existem, foram todas cumpridas. Elas não incluem nem aconselham a interdição de jantares. De tal forma não interditam e não aconselham que os jantares estão previstos, com uma tabela de preços definidos no regulamento em causa. Três mil euros para o aluguer do corpo central do Panteão para jantares, 1.500 para cocktails.

Não cabe aos governos alugar espaços ou tratar da sua gestão quotidiana. Cabe aos governos definir regras, garantir que elas são cumpridas e dar os meios para que isso aconteça. Essas regras, que foram cumpridas, existiam e têm um autor: Jorge Barreto Xavier. A responsabilidade deste governo é, como já disse, não as ter alterado. E a responsabilidade do aluguer é da diretora do Panteão e da Direção Geral do Património Cultural (DGCP), que não é governo, e que tem a gestão destes espaços como dever seu. A DGCP não devia ter alugado para este e para outros jantares, mesmo que o regulamento não só o permita como expressamente o preveja. Mas não aceito que se cruxifiquem os serviços por cumprirem, na letra e no espírito da lei, o que o poder político definiu como regras para a utilização dos monumentos nacionais. Barreto Xavier queria que se usasse o Panteão Nacional para jantares, determinando que isso deveria corresponder a um pagamento de três mil euros. O pecado da diretora do Panteão e da DGCP foi cumprir o regulamento, o do atual ministro foi não o rever. Mas os últimos a poderem apontar o dedo a alguém são os responsáveis políticos pelas regras que levaram a isto.

Mas nem isso os impediu de o fazer. Em declarações à TSF, Barreto Xavier atribui as responsabilidades à DGCP, recordando que é ela que tem a última palavra para avaliar se uma determinada iniciativa põe em causa a dignidade de um determinado espaço. O antigo secretário de Estado pensa que, neste caso, é isso que sucede. Como neste caso a única coisa a apontar é ser um jantar, fica a pergunta: se um jantar põe em causa a dignidade do Panteão (eu acho que põe), porque raio definiu o mesmíssimo secretário de Estado um preço para que ele tivesse esse preciso uso? Era para dizer quanto é que não se devia cobrar por jantares no Panteão?

Apesar disto, um deputado do PSD não hesitou em vir a terreiro pedir a demissão de funcionários do Estado. Acho incrível que tenham alugado o Panteão para um jantar, como o regulamento aprovado pelo governo do PSD expressamente previa. Sim, o jantar colide com a dignidade daquele monumento. Mas não consegue estar ao nível da falta de dignidade de quem toma decisões políticas e depois pede a demissão de quem as cumpre.