1.º de Maio, ou as razões de somar o número à unidade

(Vítor Ranita, in AbrilAbril, 01/05/2018)

Ao perfazer cento e trinta e dois anos sobre a brutal repressão patronal e policial que se abateu sobre os trabalhadores em Chicago, e tendo em consideração a actual situação sócio-política, será oportuno questionarmo-nos sobre o seguinte:

– Quais os interesses que se escondem na «justificação» das políticas de desvalorização crescente da remuneração da força de trabalho, das específicas reivindicações de vários grupos profissionais e do contributo das correspondentes lutas para a construção de uma sociedade mais justa?

– Quem ganha com a aceitação, por parte dos trabalhadores, dos preconceitos ideológicos inculcados na população pelas estruturas que visam perpetuar o poder dominante?

A reflexão sobre questões deste tipo ajudam-nos a compreender a existência de uma oposição insanável entre os interesses comuns de quem trabalha e os interesses de classe do capital, realidade presente no assassínio dos mártires de Chicago, na brutal repressão policial do 1.º de Maio de 1982, no Porto, da responsabilidade de Ângelo Correia, ministro social-democrata do Governo PSD/CDS de então, ou nas orientações da Troika orgulhosamente excedidas pelos serventuários do capital instalados no anterior Governo.

Desigualdade e antagonismo de classes: uma longa história

Sendo essa oposição uma realidade fácil de ilustrar, há quem recuse ver o antagonismo de interesses entre as classes que diariamente conflituam na nossa sociedade, considerando-a uma invencionice derivada de Marx e Engels. E os ignorantes mais profundos, ou os preconceituosos militantes, suporão até, reflectindo assim uma certa cultura herdada a partir do berço, que a denúncia da exploração do proletariado surgiu com o Partido Comunista Português, de constituição contemporânea, em 1921, cuja depuração programática se consolidou com a reorganização de 1940/41.

Será surpreendente, para tais preconceituosos, saber que não era um perigoso radical esquerdista quem, já em 1831, exaltava o proletariado, colocava em evidência a oposição entre os trabalhadores e os capitalistas e denunciava a desigualdade das leis feitas pelos possidentes para protecção dos seus interesses particulares à custa dos interesses dos desfavorecidos.

Essa atitude veio de um padre e filósofo católico francês, Hugues-Felicité Robert de Lamennais, na sua obra Da Escravatura Moderna. Por sua vez, na mesma época, Robert Owen, industrial têxtil escocês, denunciou a sobre-exploração dos operários, propôs uma nova ordem económica e social através da cooperação, do socialismo, da apropriação colectiva do valor da mercadoria, e tentou que diversos governos legislassem segundo as suas ideias. E também Buret e Villermé, em 1840, Ducpétiaux, em 1843, e Friedrich Engels, em 1845, entre outros, denunciaram o dramatismo da condição operária – jornadas de trabalho até 20 horas seguidas, crianças de 6 a 8 anos coagidas a trabalhar até 12 a 14 horas diárias, habitação em antros miseráveis, promiscuidade, doenças endémicas, esperança média de vida de pouco mais de 30 anos, sujeição à total arbitrariedade dos patrões e capatazes.

Foi nesse contexto que Karl Marx ponderou criticamente as análises, as teses e as propostas de outros filósofos de matriz socialista, confrontou-as com o próprio conhecimento directo da condição operária, identificou a origem da exploração do proletariado, e editou com Engels, em 1848, O Manifesto do Partido Comunista, após o que ambos se lançaram á elaboração do materialismo histórico.

Os movimentos liberais de meados do século XIX levaram ao poder a burguesia. Porém, aí instalada, a burguesia negou por lei às classes trabalhadoras a liberdade individual e de grupo que para si própria reivindicou desde a transição para o século XV. E logo usou a repressão de Estado para conter manifestações de revolta popular contra as injustiças sociais e contra as lutas proletárias.

Por isso, essas lutas cresceram e diversificaram-se pelos países, tornando necessária a criação da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 1864; conduziram à primeira experiência histórica do exercício do poder político pela classe operária na Comuna de Paris, em 1871; e causaram o alargamento da influência da I Internacional ao continente americano, até à sua extinção em 1876.

Em Portugal como em todo o mundo: exploração, desigualdade, luta dos oprimidos

Entretanto, a meio do século XIX, o nosso país mantinha-se estagnado por interesses voltados para a exploração da terra, das colónias e do comércio marítimo. Sintomaticamente, os primeiros teares mecânicos chegaram à Covilhã apenas em 1848, meio século após o início da chamada Revolução Industrial.

Na fase embrionária do movimento operário português, ainda dependente da iniciativa e direcção da pequena burguesia filantrópica, mas da indispensável confiança do regime no poder, a produção de bens de consumo mantinha-se artesanal ou com origem em pequenas empresas manufactureiras. E o operariado, diminuto, reflectia as carências infra-estruturais do país, indispensáveis à industrialização. Contudo, no terceiro quartel desse século, o movimento operário já evoluíra o bastante para se integrar no tipo de organização influenciada pela I Internacional, onde pontificava Karl Marx.

A internacionalização da luta operária, a partir do 1.º de Maio de 1886, foi a consequência resultante da generalização da já referida sobre-exploração dos assalariados, forçados a longuíssimas jornadas de trabalho, vivendo em condições miseráveis, sujeitos a todas as arbitrariedades patronais, sem direitos laborais inscritos na lei e protegidos pelo Estado.

Os pioneiros do 1.º de Maio em Portugal

Em Portugal, onde os tabaqueiros, em Março de 1889, já tinham conquistado o direito às 8 horas de trabalho diário, o primeiro 1.º de Maio, Dia Internacional dos Trabalhadores, ocorreu em 1890, mais participado no Porto, onde a polícia manteve uma presença intimidatória, mas sem impedir a aprovação das reivindicações a entregar no Governo Civil; também significativamente participadas as comemorações aconteceram em Lisboa, e foram continuadas nos dias seguintes, designadamente em Coimbra e Silves. Na ocasião, houve paralisações de trabalho apesar da proibição das greves.

Forçados pelas reivindicações operárias, os governos da Alemanha, França, Inglaterra, Bélgica e Suíça reuniram na 1ª. Conferência Internacional do Trabalho, em Maio de 1890, em Berlim, onde acordaram (o que Portugal veio a subscrever) princípios da regulamentação do trabalho na Indústria.

Logo em Agosto desse ano foi a vez dos caixeiros do Porto obterem as 8 horas de trabalho diário. Ainda nesse ano saíram as leis do descanso dominical na indústria e da protecção das mulheres e dos menores, bem como a lei do direito legal à constituição de associações de classe

A luta internacional do Primeiro de Maio já levava 3 anos de crescimento e o poder político no país, entalado entre as reivindicações operárias e o avanço da oposição liberal, receou por si: o Rei D. Carlos saiu de Lisboa para Vila Viçosa a 30 de Abril de 1890, regressando à capital em 2 de Maio; neste período foram colocadas de prevenção Companhias de Cavalaria da Guarda Municipal e houve a mobilização da Polícia.

Em 1893, o Ministério do Reino proibiu um cortejo que estava a ser organizado pelos socialistas, em Lisboa, onde a polícia só deixava seguir pequenos grupos. Mas realizaram-se comícios na Serra do Pilar, no Porto, e houve comemorações no Algarve, Setúbal, Barreiro, Almada e Coimbra. Pouco depois, o Dia Internacional dos Trabalhadores comemorava-se já em Ponta Delgada. Em 1898, envolvia a representação de 120 associações de Lisboa, chegava à Figueira da Foz, Tomar, Portalegre, Fronteira, Alenquer e Paço de Arcos… e continuou a crescer, mau grado as divergências ideológicas que se iam afirmando no movimento operário nacional, que prosseguia vencendo proibições das autoridades e a acção intimidatória da polícia.

No início, a jornada de luta internacional o 1.º de Maio desenvolveu-se centrada na conquista do direito a 8 horas de trabalho, 8 horas de estudo e 8 horas de descanso. Todavia, a situação social tornou-se mais complexa em resultado de várias crises económicas que atingiram gravemente os trabalhadores de diferentes países, designadamente os portugueses. Então, o 1.º de Maio de luta passou progressivamente a integrar as reivindicações que se generalizavam ao nível dos locais de trabalho, dando suporte prático à consideração de Marx, que afirmou não ser bastante ao êxito da luta a força do número do operariado, se não houvesse unidade na acção em defesa dos interesses comuns da classe.

Da frustração da Primeira República ao primeiro 1.º de Maio em liberdade

A Primeira República provocou a frustração das expectativas criadas pelo movimento operário quanto ao progresso dos direitos laborais, donde resultou o acentuado aumento do volume de greves nas empresas e sectores diversos.

Durante o regime fascista, estando proibido o livre associativismo sindical e as greves, sob a principal influência da orientação clandestinamente divulgada pelo PCP os trabalhadores formaram Comissões de Unidade nas empresas para reclamarem do patronato melhorias salariais e de condições de trabalho, realizaram paralisações do trabalho e participaram em concentrações e desfiles, incluindo nas comemorações do Dia Internacional dos Trabalhadores, enfrentando a brutalidade da repressão policial e as cadeias da PIDE.

O Primeiro 1.º de Maio em Liberdade, em 1974, convocado para todo o país pela Central histórica dos trabalhadores portugueses e participada massivamente pela população, constituiu a promoção de um acto de indiscutível legitimação popular da Revolução levada a cabo pelos Capitães de Abril. E na fase de recuperação do poder do capital, os 1.ºs de Maio mantiveram-se como pontos altos da luta da CGTP-IN em defesa das conquistas da Revolução de Abril e da Constituição da República, que em grande parte as continua a consagrar.

A evolução mais recente do sistema económico-social acentuou a tendência da crescente assalariação dos profissionais de actividades que já foram geralmente praticadas em regime dito «liberal», bem como a desvalorização do custo do trabalho mais qualificado. Curiosamente, mas não por acaso, os propagandistas do capital, talvez estribados na aceitação por parte de instituições sindicais constituídas para concertar, insistem em referir-se aos assalariados em geral como colaboradores, na linha do que preconizava o salazarismo.

Ao desafio neoliberal, hoje, responderão os trabalhadores com a sua luta

Mas a existência do conflito de interesses de classe antagónicos, fundamentado por Marx e Engels, não se diluiu ou desapareceu com a substituição de Passos Coelho e do PSD por António Costa e pelo PS na chefia do Governo, apesar dos acordos à Esquerda, em sede de conteúdo do Orçamento do Estado.

De facto, a natureza da política em prática continua intocável: o Governo mantém a intenção de não corrigir o retrocesso da legislação laboral do tempo do governo de Passos Coelho, teima na caducidade dos antigos contractos colectivos, valoriza mais o ritmo da redução do défice do que as necessidades de investimento para resolução dos problemas existentes no Serviço Nacional de Saúde e no Ensino Público, e o da depreciação da parte dos salários na repartição do rendimento.

Em resumo, o essencial da política continua submetida aos ditames dos interesses dominantes na nossa sociedade e protegidos pela União Europeia – é isso que evidenciam as movimentações sociais recentes, e outras que já se anunciam, e os objectivos fixados para este 1.º de Maio de 2018 da CGTP-IN.

O êxito das diferentes lutas específicas contra a tentativa neoliberal de manter a reversão dos justos anseios dos membros dos vários sectores de actividade e dos direitos laborais obtidos com a luta organizada dos trabalhadores, a todos desafia a envolverem-se em unidade. Sejam operários ou empregados, funcionários administrativos ou enfermeiros, professores ou investigadores ou médicos, efectivos ou precários.


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1.º de maio e o empreendedorismo dos escravos

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 03/05/2021)

Daniel Oliveira

(Daniel, desta vez só posso mesmo bater palmas. Excelente texto, atual, assertivo e panfletário. Dar-lhe-ia vinte valores sem qualquer hesitação. Estátua de Sal, 03/05/2021)


Os direitos que o trabalhador conquistou, e que lhe garantiram um século de liberdade crescente, são apresentados como uma prisão. A competição entre “empreendedores” miseráveis é o seu motor ideológico. E as plataformas tecnológicas, que permitem que se trabalhem 12 horas por dia, 7 dias por semana, ao ritmo do século XIX, para tirar menos de mil euros por mês, são o futuro proposto. Sem proteção na doença, férias, licenças, contratos, horário. O mundo proposto pelos vendedores das maravilhas da escravatura “empreendedora” é tão velho como o que reprimiu a manifestação de Chicago, a 1 de maio de 1886.


Um mundo mudou radicalmente nos últimos 135 anos, desde que a reprimida manifestação em Chicago exigiu a jornada de oito horas diárias. E, apesar das mudanças tecnológicas que deveriam ter libertado tempo para nós, ainda se trabalham 40,2 horas por semana na próspera e desenvolvida União Europeia – 40,8, em Portugal –, se incluirmos horas extraordinárias. Se é verdade que nestes 135 anos, os trabalhadores (agora conhecidos por “colaboradores”, para sublinhar a ausência de vínculos) conquistaram férias pagas, a semana inglesa, o direito à greve, a licença de parto e de doença, a reforma na velhice ou a negociação coletiva, as últimas três décadas foram de retrocesso.

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Não há nada mais idiota do que a fé acrítica no desenvolvimento tecnológico. A fé “progressista” na tecnologia substitui a máquina por Deus. Não é a tecnologia que determina que a prosperidade será para todos. Também não é ela que reforça os instrumentos de exploração. É o poder de cada um determinar o uso que será dado a essa tecnologia. É a política. Se os trabalhadores perderam a sua capacidade de defesa e de reivindicação, se deixaram de determinar de forma organizada e consciente as políticas públicas, a tecnologia será usada para os explorar um pouco mais, contribuindo para concentrar as suas vantagens nas mãos de poucos. Se tivessem essa capacidade, ela poderia libertá-los de trabalho alienado e oferecer a todos mais tempo livre com mais rendimento. A tecnologia reforça as tendências que já existem na sociedade. É a política, e não a tecnologia, que decide quem ganha e quem perde com cada desenvolvimento tecnológico.

Assim como é a política que determinará se a generalização do teletrabalho – com enormes riscos para a saúde mental e para as relações sociais – servirá para transferir mais custos do empregador para o assalariado e atomizar e isolar ainda mais os trabalhadores, fragilizando-os; ou se permitirá uma maior autonomia e ganho de tempo para mais pessoas. Na opção pelo teletrabalho, não está inscrita nenhuma das coisas. Mas está inscrita, na relação de poder que hoje existe, a primeira via.

As últimas três décadas resultara num enorme recuo em direitos laborais. Não se tratou de retirar da lei laboral os direitos e garantias que nela constavam, o que também aconteceu. Tratou-se de criar uma realidade paralela que é justificada com o “excesso de rigidez” das leis de trabalho, eufemismo para “excesso de direitos” dos trabalhadores. Ou com a globalização e mudanças tecnológicas, como se o uso a dar a uma e outra coisa estivesse pré-determinado. Um discurso a que foi associada a ética do empreendedorismo: quem aceitar ser um escravo será mais livre. Porque os direitos que o trabalhador conquistou, e que lhe garantiram um século de liberdade crescente – contrato, horário de trabalho, salário, direito a férias e a segurança –, são apresentados como uma prisão que o impede de ser tão rico como aquele para quem trabalha. Os sonhos que se sabem frustrados à partida, alimentados por competição entre “empreendedores” miseráveis, são o motor ideológico da perda de todos os direitos conquistados durante um século.

As plataformas tecnológicas, que permitem que emigrantes e portugueses trabalhem 12 ou 14 horas por dia, sete dias por semana, ao ritmo do século XIX, para tirarem mil euros ou menos por mês, são o exemplo da nova escravatura. Já não são as margens do mercado de trabalho, como quase sempre foi o trabalho imigrante. São o futuro que nos é proposto a todos. Sem proteção na doença, sem férias, sem licenças, sem contratos, sem limites na jornada de trabalho. Como há 135 anos. Mas com a promessa que a um destes empreendedores escravizados pode sair a lotaria. A resistência a isto não são boicotes à utilização destas plataformas, é a organização dos trabalhadores. Como não se fez, na passagem do século XIX para o século XX, não consumido os produtos manufaturados, mas pela construção de sindicatos e por greves. O ator político não é o consumidor, é o trabalhador.

Do ponto de vista político, tudo isto é possível porque a esquerda tem medo de parecer conservadora e ultrapassada. Vai abandonando estas lutas que os que sempre se opuseram a todos os avanços sociais vendem como caducas e anacrónicas. E permite que o que há de mais mofo na sociedade se apresente como novidade. Apesar de usarem as novas tecnologia e a desregulação global como alibi e de se apresentarem com uma novilíngua pejada de eufemismos hipócritas, os vendedores das maravilhas da escravatura “empreendedora” não têm rigorosamente nada de novo ou moderno para oferecer. O mundo que propõem é tão velho e conservador como o mundo que reprimiu a manifestação de Chicago, a 1 de maio de 1886.

Claro que a perda de direitos leva a uma revolta. A estratégia de direcionar essa revolta para imigrantes ou minorias é tão velha que espanta que haja quem ande à procura de explicações para o seu reaparecimento. Sempre foi esse o papel da extrema-direita: escape do poder económico para que o descontentamento poupe os de cima. Nunca teve outra função e, por isso, nunca assustou a elite económica. Em momentos de esgotamento político, como aquele a que assistimos, sempre contou com o seu apoio e financiamento.

A outra estratégia é a de canalizar a frustração dos trabalhadores contra os que ainda tenham alguns direitos. Sejam os mais velhos, com contratos (era o que se fazia há uns anos, alimentando um confronto geracional que já não tem muito a dar porque os mais velhos também já perderam direitos), sejam os trabalhadores do Estado, que estando fora do mercado competitivo e tendo maior capacidade de defesa e de reivindicação, mantêm muitos direitos que deixaram de existir no setor privado. Perante a injustiça relativa (e real), é fácil convencer os que perderam direitos que o caminho é exigir que os outros também os percam, fazendo-os acreditar que são “patrões” (contribuintes) explorados em vez de exigirem o mesmo para si.

As duas estratégias resultam. Mesmo que, intuitivamente, os trabalhadores saibam que a sua vida não melhorará um milímetro por mandarem embora imigrantes que fazem o trabalho que mais ninguém quer, por tirarem apoios sociais aos mais pobres ou por reduzirem os direitos dos trabalhadores do Estado que também deveriam ser seus. Mas não havendo quem lhes proponha melhor, é o que resta.

Diz-se que o problema deste tempo é a radicalização. Não é verdade. A radicalização é retórica e geralmente carente de foco político. O problema da esquerda, que teve um papel central nas conquistas de direitos laborais e sociais no século XX, é ter perdido a sua radicalidade nestas áreas – transferiu-as para outras. E, com isso, permitiu que um discurso ideológico se vendesse como técnico e a exigência de justiça social passasse a ser vista como devaneio ideológico.

Não há, nunca houve, outra forma dos trabalhadores conquistarem alguma coisa que não lhe querem dar que não seja a perturbação da paz social e económica. Só perante ela a concertação e negociação social acontecem. Ninguém dá o que não é obrigado a dar. A questão é se o sindicalismo, ou aquilo a que a ele suceda, descobre novas formas (e novas propostas) para o conseguir. Adaptadas, como o foram os sindicatos nascidos com a industrialização, às modalidades de trabalho e exploração que despontam. Ou se continua a acantonar-se nos poucos a quem as antigas formas de luta ainda podem servir.

O conservadorismo da esquerda não está na defesa dos direitos e garantias laborais. Essa é a radicalidade mais modernizadora que podem oferecer. Está na utilização de instrumentos de luta e resistência que não se adaptaram a este tempo. E que tenderão a ser mais, e não menos, radicais. Claro que não apelo a qualquer tipo de violência. Apelo à imaginação e à subversão.


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Associação Sindical de Juízes (ASJ) e Manuel Ramos Soares, azougado sindicalista

(Carlos Esperança, 23/03/2021)

A ASJ é uma aberração sindical de membros de um órgão da soberania que não querem apenas aplicar as leis, pretendem também interferir na sua feitura, competência da AR.

Não é o venerando desembargador homónimo que certamente se pronuncia sobre o que deve fazer o poder legislativo, é o sindicalista travesso, ébrio de mediatismo, que deseja condicionar a produção legislativa.

O sindicalista ingere-se na esfera privada dos cidadãos e quer devassar as associações a que aderem, maçonaria, Opus Dei, da esfera espiritual ou cívica. Diz como criminalizar o enriquecimento ilícito: «para os juízes, não chega que os políticos declarem a aquisição de património; também devem justificar como o fizeram» (Público, 21/3/2021 – ver aqui ). Inverte o ónus da prova ou considera que “a propriedade é um roubo”? (Proudhon).

Manuel Soares, presidente da ASJ, é reincidente. Não resistiu a juntar-se aos ataques ao Governo no termo do mandato do presidente do Tribunal de Contas. Foi uma deplorável ingerência política e um ataque à decisão do PR e PM, que tinham acordado mandatos únicos.

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No Público, 4-11-2020 (Pg. 9 – Ver aqui), onde tem colaboração permanente, o sindicalista voltou a atacar o PR e o Governo. No 2.º §, embora em linguagem mais esmerada do que a do seu homólogo do extinto sindicato de condutores de matérias-primas perigosas, afirmou: «Os últimos tempos têm sido marcados por sinais de desacerto do Governo na conceção e comunicação das medidas, por hesitações do Presidente da República e pelo agravamento de desconfiança e impaciência das pessoas.»

Não se pode acusar o Sr. Manuel Soares de ‘hesitações’ a denunciar os desacertos do Governo ou as alegadas hesitações do PR. Inadmissível é o facto de o sindicalista, que se indignaria se o PR ou o PM se referissem a eventuais desacertos e hesitações da jurisprudência, persistir em apreciações a órgãos de soberania que lhe cabe respeitar.

O respeito que é devido ao venerando desembargador perde-o o sindicalista, arrastando na sua reiterada colagem à direita a isenção que é atribuída aos juízes. Alguém lhe devia lembrar que não foi sufragado em eleições, que as suas opiniões estão sujeitas ao crivo da opinião pública e, como as de qualquer político, ao escrutínio dos cidadãos.

Temos de ser vigilantes para não voltarmos a ser vigiados.

República de juízes, nunca.