A regra infirma a excepção

(Por Valupi, in Blog Aspirina B, 14/09/2018)

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Na verdade, o processo “Marquês” nunca foi distribuído nem sorteado. A escolha do juiz, que deveria ter acontecido em 9 de setembro de 2014, não resultou de uma operação de distribuição que deveria ter sido por sorteio ou, como diz a lei, “realizada por meios electrónicos, os quais devem garantir aleatoriedade no resultado”. Em conclusão: desde 9 de Setembro de 2014 que o processo “Marquês” não teve um juiz legal ou juiz natural. O Tribunal já comunicou também que nenhum juiz presidiu à dita “atribuição manual” e que tal intervenção terá ficado a cargo da escrivã de direito, Senhora Maria Teresa Santos. Espero que nos poupem ao debate sobre a responsabilidade da senhora escrivã, porque o que se passou com a denominada “atribuição manual” não foi uma falha, um descuido burocrático que se possa atribuir a um funcionário. Pelo contrário, o que se passou consistiu num ato intencional de escolha de um juiz, ludibriando a lei. Estamos para ver exatamente quem deu essas instruções, mas é importante que nada fique por dizer: o mais provável é que o processo tenha sido ilegalmente “avocado” e o principal suspeito é o Juiz Carlos Alexandre.” (José Sócrates)


As únicas pessoas a quem reconheço o direito a não mexerem uma palha na defesa pública do inocente cidadão Sócrates, inclusive o direito a julgarem-no moralmente sem piedade, são aquelas que se consideram lesadas com a “Operação Marquês” devido ao teor das suas relações privadas com Sócrates até então e as consequências que os actos do actual acusado vieram a ter para estes terceiros do círculo íntimo ou próximo (fosse política, pessoal e/ou socialmente). Há razões psicológicas que se sobrepõem à postura cívica dado estarmos perante acontecimentos traumáticos. Os restantes, se ficarem calados estarão a ser cúmplices de quem está a fazer deste processo uma homérica guerra política que implica a planeada e sistemática violação do Estado de direito, onde tal possa ser levado a cabo sem consequências para os responsáveis, de forma a montar um julgamento excepcional. Excepcional nisso de colectivamente se aceitar que Sócrates deva ser condenado antes de ser julgado, e julgado sem respeito absoluto pela Lei – assim obtendo o supremo troféu de impor o maior castigo possível a um estupendo e aterrorizador inimigo político e a quem ouse defendê-lo.

Correio da Manhã, para usar aqui o arquivo mais extenso e fiel em Portugal a respeito da matéria, publicitou ao longo dos anos as suspeitas acusatórias maximalistas dos procuradores. Que acontece se juntarmos todas as capas produzidas pelo esgoto a céu aberto sobre a “Operação Marquês”? Acontece que não vamos encontrar uma única prova de corrupção. Ninguém sabe, no Ministério Público, como provar que uma certa quantidade de dinheiro na posse de Carlos Santos Silva tenha tido origem em actos governativos ilegais. Como não sabem, e como não podiam deixar de acusar Sócrates fosse do que fosse depois de terem posto a gigantesca máquina acusatória a funcionar, juntaram as teses todas e criaram um megaprocesso que, só para ser dilucidado em tribunal, já corresponde a uma forma de impor uma pena aos acusados mesmo que depois venham a ser ilibados parcial ou totalmente. Isto em si mesmo pode não ser uma violação do Estado de direito, embora tal dependa da interpretação que cada um faça desse edifício jurídico-político, mas quando se cola à evidência de termos tido um juiz de instrução que não se comportou como juiz dos direitos e garantias dos arguidos, antes como duplo e carrasco do MP, então a constatação de que o Estado de direito é neste processo uma fantochada tem de ser retirada por qualquer um que não abdique da sua decência como cidadão, como eleitor, como pagador de impostos, como mero anónimo que não admita ver a Justiça a ser usada para vinganças e perseguições políticas.

Aquando da condenação de Vara à pala do sucateiro, o próprio Marcelo Rebelo de Sousa considerou que a pena era muito exagerada face ao suposto delito em causa (delito esse também sem provas directas). Porém, ele não estava escandalizado, sequer preocupado. O fenómeno nascia, explicou, da maior importância que esse tipo de crimes estava a ter na comunicação social, logo os juízes iam atrás do que aparecia na imprensa e julgavam de acordo com o sentimento popular. A sua placidez opinativa compreende-se sem dificuldade dado estar na berlinda um socialista, ainda por cima já tendo anos como alvo de calúnias por conta do seu passado maculado por suspeitas graves e pela sua amizade com Sócrates. Não sabemos o que diria se a vítima da justiça jornaleira fosse alguém da sua cor política, amigo ou familiar. O que sabemos é que Marcelo sabe perfeitamente bem que uma campanha de assassinato de carácter, de suspeições, de difamações e de calúnias pode ter, com alto grau de probabilidade, influência nos juízes na altura de usarem o seu arbítrio para carimbarem um dado cidadão como inocente ou culpado, com esta pena ou com aquela. À luz do que temos visto, e continuamos a ver, acontecer no processo que envolve Sócrates, só por milagre se fará justiça na Justiça onde a parte mais importante do seu futuro será decidido.

A regra que enche por estes dias a retórica dos justiceiros é a de que todos são iguais perante a lei, que ninguém está acima da lei. A “Operação Marquês” revelou que a Justiça, a Assembleia da República, o Governo e o Presidente da República se podem aliar numa passividade cúmplice com aqueles que fizeram da excepcionalidade deste caso uma regra conhecida de antanho: os mais fortes são a lei.


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