Joker

(Daniel Oliveira, in Expresso, 09/11/2019)

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Se André Ventura fosse um político como os outros, a divulgação da sua tese seria mortífera. Alguém que, no espaço de apenas cinco anos, defende que há uma expansão excessiva dos poderes policiais e depois cria um partido que se assume como “securitário”; celebra sermos um dos primeiros países a acabar com a pena de prisão perpétua e depois defende a sua reintrodução; e lamenta a associação superficial da comunidade islâmica ao terrorismo e depois propõe medidas drásticas para reduzir a sua presença na Europa diz o que é: um oportunista sem convicções.

Uma coisa é a ciência e outra é a opinião, disse Ventura em sua defesa. E assim explica porque afirma, na sua tese, que Portugal é “um dos países mais seguros do mundo” e, no seu programa eleitoral, que sofre de uma “insegurança crónica”. Num caso baseou-se em relatórios, noutro baseou-se na perceção. Isto não é a diferença entre ciência e opinião, é a diferença entre políticos sérios e demagogos. Os primeiros baseiam-se em dados fiáveis, os segundos na perceção que ajudam a criar. Não preciso explicá-lo a Ventura. Escreveu-o na sua tese, quando disse que o “populismo penal” resulta do “processo pelo qual os políticos aproveitam, e usam para sua vantagem, aquilo que creem ser a generalizada vontade de punição do público”.

Como André Ventura não é um político normal, isto não o afeta, reforça-o. Para os seus apoiantes, provou que está a ser perseguido porque incomoda o sistema. Ou, como defende Rui Ramos, que afinal não era racista. Estas pessoas não são estúpidas. Tal como Ventura, não acreditam no que estão a dizer. Como disse Francisco Mendes da Silva, houve um tempo em que as pessoas queriam políticos que dissessem o que pesavam. Agora, querem quem lhes diga o que elas pensam e tinham vergonha de dizer. Este voto não é um gesto de exigência, é um desabafo. Eles, os políticos, o sistema, a oligarquia, o que quiserem, que fiquem incomodados. É por isso que Trump dizia que se matasse alguém na 5a Avenida seria eleito na mesma. Desmascará-los não resulta, ignorá-los também não. Foi o que se fez com o discurso de Ventura no Parlamento e ele foi ouvido por mais de 700 mil pessoas no YouTube. Resta concentrarmo-nos nas causas.

Em muitas revoltas populares espalhadas pelo globo têm-se visto rostos pintados como Joker. O novo filme com a personagem da DC Comics é narrativamente medíocre, cenicamente interessante e genialmente interpretado. E é, como bem disse Pedro Mexia, oportunista. Quer dizer tanta coisa sobre tanta coisa que não chega a dizer realmente nada. O que permite que cada um tire de lá o que quer. O efeito é interessante porque a forma como está a ser apropriado apanha bem o ar deste tempo. Em manifestações tão justas como as que se assistem no Chile ou no Líbano, a figura icónica é a de um homem perturbado que, vítima da sua biografia, assume não ter qualquer agenda política a não ser a da violência niilista e revanchista. O oposto de movimentos revolucionários com horizonte. Os símbolos de revoltas justas (ou injustas), com causas nobres (ou abjetas), já não são modelos que, mal ou bem, os cidadãos gostassem de seguir. São espelhos do estado de desorientação em que se encontram. Não inspiram pelo exemplo ou pela proposta. São vilões de banda desenhada que juram destruir o que existe em nome de coisa nenhuma. São, como André Ventura, palhaços perigosos sem qualquer convicção ou propósito. São jokers.