Olhá bujarda, é a fina flor do entulho

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 09/02/2021)

Se alguma pessoa tem a ingenuidade de pensar que os insultos, a calúnia ou outras trivialidades semelhantes são produtos do nosso século, não poderia estar mais enganada. São uma constante universal. No entanto, o tempo presente gerou duas particularidades, que não serão de pouca monta: a poderosa tecnologia de comunicação que promove o escalonamento da frase fulgurante e que, em segundo lugar, a acarinha. Este é o duplo valor da bujarda, que é o signo do sucesso comunicacional mais apetecível nos dias que correm. Se se atentar com cuidado, muitos dos incidentes e das disputas atuais exprimem a linguagem da bujarda.


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O meu primeiro exemplo é o da Bastonária dos Enfermeiros, que tem levado a sua Ordem aos píncaros do tribalismo partidário. A anatomia das suas esforçadas mensagens demonstra como se constroem os efeitos da velocidade e da grosseria, que são essenciais para obter viralidade, a forma de se ser ouvido nesse universo de gritaria. O primeiro efeito, o da velocidade, exige que a influencer multiplique as reações, numa avalancha que inunde as redes comunicacionais provocando conflitos cada vez mais grotescos.

Ana Rita Cavaco demonstrou-o com a pitoresca descrição de como um secretário de Estado e a sua mulher foram indevidamente vacinados: “Pegou nela, dizem, na família e nuns amigos socialistas e toca de fazer de fura filas e chicos espertos a tomar a vacina. Se assim for, a quantidade de trastes por metro quadrado no país, que é pequenino, está insuportável! Oh criaturas horrorosas, fina flor do entulho!” Tudo tremendo. A bastonária “ouviu dizer” que o governante tinha sido vacinado, como explica, e construiu o cenário: “pegou nela, na família e nuns amigos socialistas”, uma verdadeira excursão. Uma “quantidade de trastes por metro quadrado”, tudo “criaturas horrorosas”.

Só que era falso e o homem teve até a cortesia de lhe telefonar a pedir correção da calúnia. O que ele foi fazer. Só provou que era ainda mais culpado: “Ficou aborrecido com o que as pessoas dizem. Achei que devia pôr aqui a sua posição mas confesso que fiquei confusa, não foi mas tem critério. Lembrei-me de outra coisa também, o critério neste país para se ter um alto cargo público, família.” Portanto, o governante “ficou aborrecido com o que as pessoas dizem”, que por acaso era ela própria que repetia sem o menor resquício de prova. E a óbvia conclusão, não é mesmo evidente?, é que chegou ao lugar devido à sua família. Como se chega a tal sentença, isso fica nos recônditos da lógica condenatória, mas aqui está como se viaja de um “ouvir dizer” e dos “trastes por metro quadrado” até uma conclusão sobre “o critério neste país para se ter um alto cargo público, família”, lembrou-se-me.

Daniel Oliveira registou estas incoerências, portanto foi imediatamente apelidado de “seu esterco”, ultraje repetido para que não ficassem dúvidas sobre a esterquicidade do acusado, que é além disso “defensor de fura filas”, como o tal secretário de Estado que afinal não tinha furado nenhuma fila nem sido vacinado, mas isso não muda nada, ela ouviu dizer e por isso sabe que são trastes de metro quadrado e, de qualquer modo, lembrou-se de que ele só lá está por causa da família, a tal que teria sido vacinada na excursão governista, ou talvez não, na via das dúvidas é “a fina flor do entulho”. Em todo o seu esplendor, fica aqui exibida a vertigem do discurso punitivo sobre a desgraçada horrorosidade que afunda o país.

É isto um entretenimento? Não, é uma estratégia. Para quem vive naquela redoma das redes sociais e está viciado no seu fulgor, não é preciso ser informado, nem sequer usar argumento, o que é necessário é conseguir likes e partilhas ou talvez uma notícia de telejornal. A estratégia é fazer perder o fôlego criando uma irracionalização total do discurso, o que é reforçado pelo truque de subir sempre a parada com um tiroteio imparável (Trump, sempre o mestre bufão que inspirou esta técnica, chegou a fazer 400 tuítes por dia). É por isso que a bujarda é tão apetecível, tão contagiante, é um clamor, um apelo a que se olhe para os bujardistas. Não pretendem sequer ser lidos, aspiram a ser multiplicados. O título conta mais que a informação, que é irrelevante. Para esta conta, o ódio é o aplauso mais eficaz, os entusiastas recompensam a alarvidade.

O segundo exemplo, que prova que a estratégia trumpista tem seguidores fiéis mesmo entre os mais cordatos dos comunicadores, é a da fronda pela saúde privada. Como os hospitais privados se submeteram ao vexame da condenação popular pelo seu comportamento na primeira vaga, quando recusaram tratar doentes covid sem um preço apetitoso, tendo mesmo expulso dos seus serviços as grávidas que tivessem o vírus, os seus embaixadores sentiram-se motivados para um contra-ataque na segunda vaga. A forma de o fazerem é o que me interessa aqui, foi a bujarda.

O mote foi repetido em campanha eleitoral por um liberal que anunciava dez mil mortos provocados pela ministra da Saúde (Tiago Mayan) e pouco depois por um aspirante a profeta da direita, Henrique Raposo, que insistiu ipsis verbis: “o desprezo deste governo pelos hospitais privados é mais grave, é outra coisa, é uma tragédia séria que nos custou milhares de vidas nesta pandemia”. Há uma carnificina em curso, uma “ideologia” que mata, esperando-se que algum Tribunal de Nuremberga castigue estes genocidas.

A artimanha é mais uma vez evidente: se a posição bujardista é fraca, berra muito; se a razão é escassa, acusa o adversário; se falta senso a tudo isso, chama-lhe assassino. A coisa passa a ser uma pugna de sangue, a diferença é entre a vida e a morte. A bujarda, que fabricou o Pizzagate contra Hillary Clinton, sugere agora o Covidgate contra a homicida Marta Temido e o secretário de Estado que furou a fila, ou se não furou, está lá por causa da família, todos protegidos pelos “estercos” e pela “fina flor do entulho”, “criaturas horrorosas”.

Tendo feito uma carreira tardia em aforismos, Nietzsche escreveu um dia que se “pode perdoar qualquer falta de estilo, mas não de pensamento”. Como estava enganado. Conhecesse esta forma de comunicar da contemporaneidade e saberia que, se o estilo sempre interessou pouco aos bujardistas, o pensamento que anima este belicismo dos dias de hoje é simplesmente eficaz, o seu segredo é multiplicar sempre o absurdo de cada alegação que seja absurda, criando uma bolha impenetrável pela verdade. É uma pirâmide, é um vício. Já não vão sair disto, foi o que aprenderam e é onde se reconhecem. O problema é como é que a democracia vive ao lado deles, se não há tradução possível entre as duas linguagens.


A “fufa de merda” e as linhas vermelhas da democracia

(Daniel Oliveira, in Expresso, 01/04/2019)

Daniel Oliveira

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Isabel Moreira partilhou uma mensagem que lhe foi enviada através de uma rede social: “És uma vergonha, fufa de merda, mata-te…” Podia ser uma das centenas de mensagens que figuras públicas recebem. Sobretudo se defenderem minorias. Sobretudo se afrontarem o preconceito. E sobretudo se forem mulheres. Só que esta mensagem não vinha de um cidadão comum. O seu autor é dirigente do CDS de Barcelos. Como todos os cobardes que se escondem atrás de um teclado para assediar os outros, não teve a coragem de assumir a sua autoria. Veio dizer que a mensagem não era sua. Talvez um hacker apostado em tramar Armindo Leite. Quem sabe Rui Pinto.

Como é natural perante um crime de ódio contra uma deputada, Assunção Cristas veio pedir desculpas pela mensagem enviada pelo seu colega de partido, dizendo que repudiava aquilo tipo de discurso. Não chega a ser motivo de aplauso, mas felizmente o CDS não tem na primeira linha um Fernando Negrão disponível para defender o indefensável.

Sei que o repúdio e o pedido de desculpas de Assunção Cristas foram sinceros. Com todas as discordâncias que tenha, considero Cristas uma mulher civilizada. Nem sequer partilho a embirração que sinto haver à esquerda contra ela. Talvez por ter menos tendência para confundir a natural agressividade do confronto político com o carácter das pessoas. Sou assertivo e espero encontrar pessoas assertivas pela frente. Mas, perante a enorme gravidade desta mensagem, um pedido de desculpas não chega.

O gesto deste dirigente do CDS não foi pessoal. Foi dirigido a uma deputada por razões políticas. E o seu conteúdo, para além de corresponder a um crime, tem uma mensagem política explícita que não pode deixar de vincular o partido de que ele é dirigente. Menos do que um processo disciplinar que leve à sua expulsão não resolve o problema.

Não se trata de perseguir Armindo Leite pelas suas abjetas opiniões. Trata-se de traçar uma fronteira entre a atividade política e a criminalidade política. Aquela mensagem não foi apenas uma manifestação de um ponto de vista inaceitável, foi dirigida a uma pessoa concreta que ainda por cima é uma deputada de um partido a que o CDS se opõe.

É evidente que está a crescer no CDS (e também no PSD) uma corrente que se sente animada pelos ventos que vêm de fora e que fizeram parecer aceitável o que antes tínhamos como impensável. A conversa contra o “politicamente correto” libertou bestas que estavam contidas pela censura social. Os textos e declarações da inenarrável Joana Bento Rodrigues são exemplo disso. Mas esses estão no estrito espaço da opinião e representam, por mais que custe a Assunção Cristas e a Adolfo Mesquita Nunes, uma boa parte da base de apoio do CDS. Isto foi outra coisa. Uma coisa que tenderá a aumentar se a liderança do partido não fizer nada.

Não estou a tentar encontrar um Bolsonaro em cada esquina. Eles sempre andaram por aí assim como sempre andaram pelo Brasil. Agora sentem-se mais à vontade e é natural que estejam em maior número no partido mais à direita do espectro democrático português. Apesar de não ter ajudado a sua neutralidade quando foi a segunda volta das eleições brasileiras, Assunção Cristas não é responsável por isso. Mas terá responsabilidade se não for muito firme quando essas bestas começam a alimentar um clima que tornará o debate político no esgoto em que gente perigosa se sente mais à vontade.

Compreendo a tentação de ficar em cima do muro. Se Assunção Cristas fizer alguma coisa será acusada pela linha mais dura do partido de cedência ao “politicamente correto”. Haverá até quem ache que mais vale não irritar esta gente, não vão eles engrossar as fileiras da extrema-direita. Mas se não houver qualquer consequência para este dirigente do CDS, isto passará a ser visto como uma coisa criticável mas dentro do que pode acontecer em política. Será mais uma linha vermelha que se passará.

Um dirigente de um partido que se apresenta como democrático não pode mandar uma deputada matar-se chamando-a de “fufa de merda” sem que nada lhe aconteça. Compreendo que Isabel Moreira não queira fazer o papel de vítima. Mas o assunto não é sobre Isabel Moreira. É sobre a fronteira entre os partidos democráticos e o lixo. Não chega repudiar para traçar essa fronteira. É preciso pôr para lá dela quem não sabe participar no jogo democrático.