O desastre energético da Europa é provocado por Berlim e Bruxelas, não por Moscovo

(F. William Engdahl, in Resistir, 13/09/2022)

Em 22 de agosto, o preço de mercado negociado em bolsa para o gás natural no hub alemão THE (Trading Hub Europe) estava a ser negociado a mais de 1000% acima do que há um ano atrás. A maioria dos cidadãos é informada pelo regime de Scholz que o motivo seria a guerra de Putin e da Rússia na Ucrânia. A verdade é bem diferente. Políticos da UE e grandes interesses financeiros estão a usar a Rússia para encobrir o que é uma crise energética Made in Germany e de Bruxelas. As consequências não são acidentais.

Não é porque políticos como Scholz ou o ministro alemão da Economia Verde, Robert Habeck, nem o vice-presidente de Energia Verde da Comissão Europeia, Frans Timmermans, sejam estúpidos ou ignorantes. Corruptos e desonestos, talvez sim. Eles sabem exatamente o que fazem. Eles estão a seguir um roteiro. Tudo faz parte do plano da UE para desindustrializar uma das concentrações industriais mais eficientes em termos energéticos do planeta. Trata-se da Agenda Verde da ONU 2030, também conhecida como Grande Reinicialização de Klaus Schwab.

Mercado de gás da UE desregulamentado

O que a Comissão da UE e os ministros do governo na Alemanha e por toda a UE estão a esconder cuidadosamente é a transformação que eles criaram na forma como o preço do gás natural é hoje determinado. Por quase duas décadas, a Comissão da UE, apoiada por mega bancos como JP MorganChase ou grandes fundos especulativos de hedge, começou a lançar as bases para o que é hoje uma desregulamentação completa do mercado de gás natural. Foi promovido como a “liberalização” do mercado de gás natural da União Europeia. O que agora permite é a negociação não regulamentada no mercado livre em tempo real para fixar preços em vez de contratos de longo prazo.

A partir de 2010, a UE começou a promover uma mudança radical nas regras de estabelecimento de preço do gás natural. Anteriormente, a maioria dos preços do gás era estabelecido em contratos fixos de longo prazo para entrega por gasoduto. O maior fornecedor, a russa Gazprom, forneceu gás à UE, principalmente à Alemanha, em contratos de longo prazo indexados ao preço do petróleo. Até os últimos anos quase nenhum gás foi importado por navios de gás liquefeito (GNL). Com uma mudança nas leis dos EUA para permitir a exportação do GNL proveniente da enorme produção de gás de xisto em 2016, os produtores de gás dos EUA iniciaram uma grande expansão da construção de terminais de exportação de GNL. Os terminais levam de três a cinco anos para serem construídos. Ao mesmo tempo, Polónia, Holanda e outros países da UE começaram a construir terminais de importação de GNL a fim de recebê-lo do exterior.

Ao emergirem da Segunda Guerra Mundial como principal fornecedor mundial de petróleo, as gigantes petrolíferas anglo-americanas, então chamadas de Sete Irmãs, criaram um monopólio global do preço do petróleo. Como observou Henry Kissinger durante os choques do petróleo da década de 1970:   “Controle o petróleo e você controlará nações inteiras”. Desde a década de 1980, os bancos da Wall Street, liderados pelo Goldman Sachs, criaram um novo mercado de “petróleo de papel”, ou negociação de futuros e derivativos de futuros barris de petróleo. Criou um enorme casino de lucros especulativos que era controlado por um punhado de bancos gigantes em Nova York e na City de Londres.

Esses mesmos poderosos interesses financeiros vêm trabalhando há anos para criar um mercado globalizado semelhante de “gás de papel” em futuros que eles pudessem controlar. A Comissão da UE e sua agenda do Green Deal para “descarbonizar” a economia até 2050, eliminando os combustíveis de petróleo, gás e carvão, forneceram a armadilha ideal que levou ao aumento explosivo dos preços do gás na UE desde 2021. Para criar esse mercado “único” de controle, a UE foi pressionada pelos interesses globalistas para impor mudanças de regras draconianas e ilegais de facto à Gazprom a fim de forçar o proprietário russo de redes de gasodutos de transporte de gás na UE a abri-los ao gás concorrente.

Os grandes bancos e interesses energéticos que controlam a política da UE em Bruxelas criaram um novo sistema de preços independente paralelo aos preços estáveis ​​e de longo prazo do gás de gasoduto russo que não controlavam.

Em 2019, uma série de diretivas burocráticas de energia da Comissão Europeia de Bruxelas permitiu que o comércio num mercado de gás totalmente desregulado definisse de facto os preços do gás natural na UE, apesar do facto de a Rússia ainda ser de longe a maior fonte de importação de gás. Uma série de “hubs” comerciais virtuais foram estabelecidos para negociar contratos futuros de gás em vários países da UE. Em 2020, o TTF holandês (Title Transfer Facility) era o centro comercial dominante para o gás da UE, o chamado benchmark (preço de referência) de gás da UE [NR]. Notavelmente, o TTF é uma plataforma virtual de negociações em contratos futuros de gás entre bancos e outros investidores financeiros, “Over-The-Counter” (“ao balcão”). Isso significa que é de facto não regulamentado, fora de qualquer troca regulamentada. Isto é fundamental para entender o jogo que hoje está a ser executado na UE.

Em 2021, apenas 20% de todas as importações de gás natural para a UE foram de GNL, com preços em grande parte determinados por negociações de futuros no hub TTF, a referência de gás de facto da UE, de propriedade do governo holandês, o mesmo governo que destroi suas explorações agrícolas com uma alegação fraudulenta de poluição por nitrogênio. A maior parcela de importação de gás europeu veio da Gazprom da Rússia, fornecendo mais de 40% das importações da UE em 2021. Esse gás foi entregue por gasodutos mediante contratos de longo prazo, cujo preço era muito inferior ao preço especulativo da TTF de hoje. Em 2021, os estados da UE pagaram uma multa estimada em cerca de US$30 mil milhões a mais pelo gás natural em 2021 do que se tivessem mantido os preços de indexação do petróleo da Gazprom. Os bancos adoraram. A indústria dos EUA e os consumidores não.Somente destruindo o mercado de gás russo na UE poderiam os interesses financeiros e os defensores do Green Deal criar seu controle do mercado de GNL.

Encerramento do gasoduto da UE

Com total apoio da UE para o novo mercado grossista de gás, Bruxelas, Alemanha e NATO começaram sistematicamente a encerrar o gás vindo para a UE através de gasodutos, de modo estável e com condições de longo prazo.

Depois de romper os laços diplomáticos com o Marrocos em agosto de 2021 sobre territórios disputados, a Argélia anunciou que o gasoduto Maghreb-Europa (MGE), lançado em 1996, deixaria de operar em 31 de outubro de 2021, quando o acordo relevante expirou.

Em setembro de 2021, a Gazprom concluiu seu gasoduto submarino multimilionário Nord Stream 2 através do Mar Báltico, da Rússia até o norte da Alemanha. Duplicaria a capacidade do Nord Stream 1 para 110 mil milhões de metros cúbicos/ano, permitindo que a Gazprom fosse independente de interferências nas entregas de gás através de seu gasoduto Soyuz que passa pela Ucrânia. A Comissão da UE, apoiada pelo governo Biden, bloqueou a abertura do gasoduto com sabotagem burocrática e finalmente, em 22 de fevereiro, o chanceler alemão Scholz impôs uma sanção ao gasoduto devido ao reconhecimento russo da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk. Com a crescente crise do gás desde então, o governo alemão recusou-se a abrir o Nord Stream 2, apesar de estar concluído.

Então, em 12 de maio de 2022, embora as entregas da Gazprom pelo gasoduto Soyuz através da Ucrânia tenham sido ininterruptas durante quase três meses de conflito, apesar das operações militares da Rússia na Ucrânia, o regime de Zelenskyy controlado pela NATO em Kiev fechou um grande gasoduto russo através de Lugansk, que entregava gás russo tanto para a Ucrânia quanto para os estados da UE, declarando que permaneceria fechado até Kiev obter o controle total de seu sistema de gasodutos que atravessa as duas repúblicas do Donbass. Essa secção da linha Soyuz da Ucrânia cortou um terço do gás via Soyuz para a UE. Certamente não ajudou a economia da UE no momento em que Kiev implorava por mais armas desses mesmos países da NATO. A Soyuz fora inaugurada em 1980, no tempo da União Soviética, transportando o gás do campo de Orenburg.

Em seguida veio o gasoduto Yamal russo através da Bielorrússia e da Polánia até a Alemanha. Em dezembro de 2021, dois meses antes do conflito na Ucrânia, o governo polaco fechou a parte do gasoduto que passava pelo seu território, impedindo a entrega de gás da Gazprom a preços baixos para a Alemanha e a Polónia. Em vez disso, as empresas de gás polacas compraram gás russo no armazenamento de empresas de gás alemãs, através da secção polaco-alemã do gasoduto Yamal, a um preço mais elevado num fluxo inverso. As empresas de gás alemãs obtiveram seu gás russo por meio de um contrato de longo prazo por um preço de contrato muito baixo e revenderam-no à Polónia com um lucro enorme. Essa insanidade foi deliberadamente minimizada pelo ministro da Economia Verde Habeck e pelo chanceler Scholz e pelos media alemães, embora tenha forçado os preços do gás alemão a subirem ainda mais e piorado a crise do gás alemã. O governo polaco recusou-se a renovar seu contrato de gás com a Rússia e, ao invés, compra gás no mercado livre por preços muito mais altos. Como resultado, não está fluindo mais gás russo para a Alemanha através do Yamal.

Finalmente, o fornecimento de gás através do gasoduto submarino Nord Stream 1 foi interrompido devido à reparação necessária de uma turbina a fabricada pela Siemens. A turbina foi enviada para uma instalação especial da Siemens no Canadá, onde o regime anti-russo de Trudeau a reteve por meses antes de finalmente liberá-la a pedido do governo alemão. No entanto, eles deliberadamente recusaram-se a conceder a entrega ao seu proprietário russo, mas à Siemens Alemanha, onde fica, já que os governos alemão e canadiano recusam-se a conceder uma isenção de sanções juridicamente vinculativa para a transferência para a Rússia. Desta forma, o gás da Gazprom através do Nord Stream 1 também é drasticamente Yamal reduzido para 20% do normal.

Em janeiro de 2020, a Gazprom começou a enviar gás do seu gasoduto TurkStream, através da Turquia, para a Bulgária e a Hungria. Em março de 2022, a Bulgária unilateralmente, com o apoio da NATO, cortou o fornecimento de gás do TurkStream. O húngaro Viktor Orban, por outro lado, garantiu a continuação do fornecimento do TurkStream. Em consequência, hoje a Hungria não tem crise energética e importa gás do gasoduto russo aos baixos preços fixos do seu contrato.

Ao sancionar ou encerrar sistematicamente as entregas de gás através gasodutos com contratos a longo prazo e de baixo custo para a UE, os especuladores de gás através do TTP holandês conseguiram usar todos os tropeços ou choques de energia do mundo, seja uma seca recorde na China ou o conflito na Ucrânia, para restrições de exportação nos EUA, para licitar os preços grossistas do gás da UE através de todos os limites. Em meados de agosto, o preço futuro na TTP estava 1.000% mais alto do que um ano atrás e subindo diariamente.

A loucura do preço alemão mais alto

A sabotagem deliberada dos preços da energia e da eletricidade torna-se ainda mais absurda. Em 28 de agosto, o ministro das Finanças alemão, Christian Lindner, único membro do gabinete do Partido Liberal (FDP), revelou que, sob os termos opacos das complexas medidas da Reforma do Mercado de Eletricidade da UE, os produtores de eletricidade a partir de energia solar ou eólica recebem o mesmo preço pela sua eletricidade “renovável” que vendem a distribuidoras de energia para a rede pelo custo mais elevado, ou seja, o do gás natural!

Lindner pediu uma mudança “urgente” na lei de energia alemã a fim de dissociar os diferentes mercados. O fanático ministro da Economia Verde, Robert Habeck , respondeu imediatamente:  “Estamos trabalhando arduamente para encontrar um novo modelo de mercado”, mas alertando que o governo deve estar atento para não intervir demasiado: “Precisamos de mercados funcionais e, ao mesmo tempo, precisamos definir as regras certas para que as posições no mercado não sejam abusadas”.

Habeck, de facto, está fazendo todo o possível para construir a Agenda Verde e eliminar o gás, o petróleo e a energia nuclear, as únicas fontes de energia confiáveis ​​no momento. Ele se recusa a considerar a reabertura de três centrais nucleares fechadas há um ano ou a reconsiderar o fechamento das três restantes em dezembro. Ao declarar numa entrevista à Bloomberg que “não abordarei essa questão ideologicamente”, declarou a seguir:  “A energia nuclear não é a solução, é o problema”. Habeck e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, declararam repetidamente que mais investimento nas nãos confiáveis energias eólica e solar ​​é a resposta para uma crise dos preços do gás que suas políticas criaram deliberadamente. Em todos os aspectos, a crise energética suicida em curso na Europa foi “Made in Germany”, não da responsabilidade russa.


[NR] A Península Ibérica é uma exceção dentro da UE, pois nela os preços são estabelecidos na bolsa do MIBGÁS.

Ver também:
Norway ‘skeptical’ about EU’s gas price cap – PM

[*] Consultor de risco estratégico, autor de best-sellers sobre petróleo e geopolítica.

O original encontra-se em www.globalresearch.ca/europe-energy-armageddon-from-berlin-brussels-not-moscow/5792005


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Os EUA arriscam perder a guerra comercial com a China

(Joseph Stiglitz, in Expresso, 04/08/2018)

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Os EUA têm, na verdade, um problema, mas não é a China. É interno. A América tem poupado pouco. Trump e muitos americanos têm uma visão tremendamente míope


NOVA IORQUE — O que começou por ser uma escaramuça comercial, com o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a impor taxas aduaneiras sobre o aço e o alumínio, parece estar rapidamente a transformar-se numa guerra comercial generalizada com a China. Se as tréguas aprovadas entre a Europa e os EUA se mantiverem, Washington enfrentará quase exclusivamente Pequim, em vez de enfrentar o mundo (e, evidentemente, o conflito comercial com o Canadá e o México continuará em lume brando, dadas as exigências dos EUA que não podem nem devem ser aceites por qualquer um desses países).

Além da afirmação verdadeira, mas agora já óbvia, de que todos perderão, o que podemos dizer das consequências possíveis da guerra comercial de Trump?

Em primeiro lugar, a macroeconomia triunfa sempre: se o investimento nacional dos EUA continuar a exceder as suas poupanças, o país terá de importar capital e de manter um défice comercial assinalável. Pior que isso, devido aos cortes fiscais promulgados no fim do ano passado, o défice orçamental dos EUA está a atingir novos máximos — recentemente, foi previsto que ultrapassasse 1 bilião de dólares até 2020. O que significa que, quase certamente, o défice comercial aumentará, independentemente das consequências da guerra comercial. O único cenário em que isso não acontecerá é se Trump levar os EUA para uma recessão, fazendo os rendimentos diminuir tanto que o investimento e as importações caiam a pique.

A “melhor” consequência da obtusa insistência de Trump no défice comercial com a China seria a melhoria do saldo bilateral, contrabalançada por um aumento correspondente no défice com um qualquer outro país (ou países). Os EUA poderiam vender mais gás natural à China e comprar menos máquinas de lavar; mas venderiam menos gás natural a outros países e comprariam máquinas de lavar, ou quaisquer outros bens, à Tailândia ou a outro país que tenha evitado a colérica ira de Trump. Mas, como os EUA interferiram com o mercado, pagariam mais pelas suas importações e conseguiriam menos pelas suas exportações do que em caso contrário. Em resumo, a ‘melhor’ consequência significa que os EUA ficarão pior do que estão hoje.

Os EUA têm um problema, mas não com a China. O seu problema é interno: a América tem poupado demasiado pouco. Trump, como muitos dos seus compatriotas, tem uma visão imensamente míope. Se tivesse um mínimo de entendimento da economia e uma visão de longo prazo, teria feito o que pudesse para aumentar a poupança nacional. Isso teria reduzido o défice comercial multilateral.

A ‘MELHOR’ CONSEQUÊNCIA SIGNIFICA QUE OS EUA FICARÃO PIOR DO QUE ESTÃO HOJE

Existem soluções rápidas e óbvias: a China poderia, de facto, comprar mais petróleo americano, e vendê-lo, de seguida, a outros países. Isto não faria qualquer diferença, a não ser talvez um ligeiro aumento dos custos de transação. Mas Trump poderia anunciar, então, que teria eliminado o défice comercial bilateral. Mas, na verdade, será difícil reduzir significativamente o défice comercial bilateral de um modo relevante. À medida que diminuir a procura de bens chineses, a taxa de câmbio do renminbi depreciará, mesmo sem qualquer intervenção governamental. Isto compensará, em parte, o efeito das taxas aduaneiras dos EUA; mas, ao mesmo tempo, aumentará a competitividade da China relativamente a outros países. E isso acontecerá mesmo se a China não usar outros instrumentos que detém, como os controlos sobre os salários e os preços, ou se incentivar fortemente aumentos de produtividade. A balança comercial global da China, tal como a dos EUA, é determinada pela sua macroeconomia.

Se a China intervier de forma mais ativa, e retaliar mais agressivamente, a alteração na balança comercial entre os EUA e a China pode ser ainda mais reduzida. A dor relativa que cada um provocará ao outro é de difícil determinação. A China tem um maior controlo sobre a sua economia, e tem procurado orientar-se para um modelo de crescimento baseado na procura interna, em vez de no investimento e nas exportações. Os EUA estão simplesmente a ajudar a China a fazer o que tem estado a tentar fazer. Por outro lado, as ações dos EUA surgem numa altura em que a China tenta gerir uma alavancagem excessiva e uma capacidade excessiva; em alguns sectores, pelo menos, os EUA dificultarão estas tarefas.

Se um país entra numa guerra, comercial ou não, deve certificar-se de que tem bons generais — com objetivos claramente definidos, uma estratégia viável, e apoio popular — no comando. É aqui que as diferenças entre a China e os EUA são importantes. Nenhum país poderia ter uma equipa económica menos qualificada que a de Trump, e a maioria dos americanos não apoia a guerra comercial.

O apoio do público esmorecerá ainda mais à medida que os americanos compreenderem que perderão duplamente com esta guerra: por um lado, os empregos desaparecerão, não apenas devido às medidas retaliatórias da China, mas também porque as taxas aduaneiras dos EUA aumentam o preço das exportações dos EUA e as tornam menos competitivas; e, por outro lado, aumentarão os preços dos bens que compram. Isto pode forçar a descida da taxa de câmbio do dólar, aumentando ainda mais a inflação nos EUA — e promovendo uma oposição ainda maior. A Reserva Federal terá então de aumentar as taxas de juro, originando um enfraquecimento do investimento e do crescimento, e mais desemprego.

Trump já demonstrou como responde quando as suas mentiras são expostas ou quando as suas políticas falham: dobra a aposta. A China disponibilizou repetidamente saídas airosas para que Trump abandonasse o campo de batalha e declarasse vitória. Mas ele recusa aceitá-las. Talvez possamos encontrar esperança em três outras características suas: a sua ênfase na aparência em vez da substância, a sua imprevisibilidade, e o seu carinho pela política de “homem forte”. Talvez, numa reunião grandiosa com o Presidente Xi Jinping, venha a declarar que o problema foi resolvido, com alguns pequenos ajustes de taxas aqui e ali, e alguma nova iniciativa no sentido da liberalização do mercado que a China já tenha planeado anunciar, e todos poderão regressar felizes a casa.

Nesse cenário, Trump terá “resolvido”, de forma imperfeita, um problema criado por si. Mas o mundo que se seguir à sua disparatada guerra comercial continuaria a ser diferente: mais incerto, menos confiante nas normas do direito internacional, e com fronteiras mais rígidas. Trump mudou o mundo, permanentemente, para pior. Mesmo nos melhores cenários possíveis, o único vencedor é Trump — com o seu ego desmedido um pouco mais inflado.


Prémio Nobel da Economia, professor universitário na Universidade de Columbia.© Project Syndicate 1995-2018

Animar em Malta

(Mariana Mortágua, 30/05/2017)

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Em 2013, a organização holandesa SOMO publicou um relatório com o nome “Evitando impostos em tempos de austeridade”. Segundo o documento, o investimento direto estrangeiro português em 2011 cresceu 134%, e o seu maior destino foi a Holanda. Surpreendentemente, 38% do stock de investimento estrangeiro português estava concentrado na Holanda, e apenas metade disso em Espanha. Da mesma forma, o maior país de origem do investimento estrangeiro em Portugal era, imagine-se, a Holanda.

É certo que a Holanda é uma importante economia europeia, mas está longe de ser o nosso maior parceiro económico e comercial. A explicação é outra, e reside nas várias sucursais que as maiores empresas portuguesas criaram lá fora para reduzir a sua fatura fiscal.

Estes dados não refletem verdadeiros fluxos de investimento, mas sim transações financeiras entre empresas do mesmo grupo, por exemplo para transferir lucros para territórios com menos impostos. É o caso da EDP, analisado no relatório, mas também de quase todas as empresas da Bolsa portuguesa.

A Holanda não é caso único. Em 2014, o LuxLeaks revelou como centenas de empresas usavam o Luxemburgo, com o apoio das grandes consultoras internacionais e a cumplicidade do Governo, para fugir aos impostos nos seus próprios países. Em 2015, o SwissLeaks expôs dezenas de milhares de contas secretas, abertas no banco HSBS na Suíça, que serviam para de tudo um pouco, de financiamento do terrorismo à fraude fiscal. Em 2016, conhecemos o Panamá Papers e regressamos agora à Europa, com o trabalho do Consórcio Europeu de Jornalismo de Investigação sobre o regime fiscal de Malta.

De acordo com as notícias do fim de semana, houve 48 sócios portugueses da Deloitte (uma das quatro grandes consultoras internacionais) que, só num ano, receberam 53 milhões de euros em dividendos. O número em si já é astronómico, mas acresce que este dinheiro circulou por Malta, através de um complexo esquema de empresas, para chegar a Portugal tendo pago apenas 5% de imposto. É só um caso, muitos outros haverá.

Há quem olhe para estes esquemas de planeamento fiscal agressivo e veja formas legítimas de fazer negócios. Há ainda quem se prefira esconder na impotência face à chantagem da fuga de capitais. É um erro. A fronteira entre o legal e o ilegal, a fraude e o planeamento neste tipo de esquemas é, propositadamente, muito ténue. Mas, para além da legalidade, o que está em causa é a legitimidade de todo o sistema fiscal e, por inerência, do Estado. Como pode um Estado ter credibilidade quando os cidadãos sentem, legitimamente, que o esforço fiscal não recai sobre todos da mesma forma? E como pode um Estado manter uma situação financeira sustentável se a sua base tributária se vai erodindo com a fuga dos que mais podem? Este não é um pequeno problema e, sobretudo, não se resolve enquanto os tabus sobre a livre circulação de capitais, o segredo bancário e a liberalização financeira impedirem qualquer debate sério sobre a matéria.

* DEPUTADA DO BE