Margarida, estou contigo. Deixem-me sair, vocês são estúpidas

(Ana Sousa Dias, in Diário de Notícias, 20/01/2018)nanny

O menino Nelito foi uma das criações geniais de Herman José. Um menino de bibe a destruir tudo à passagem, a fazer perguntas embaraçosas e a ser encantador. Aí estão três características das crianças. Destroem muita coisa à passagem, fazem perguntas embaraçosas e são encantadores. Fazem e são muitas outras coisas, todos os dias, a todas as horas, e o sossego muitas vezes só chega quando adormecem. Como anjos, não é?

Esforcei-me por ver aquela coisa chamada Supernanny da SIC, mas várias vezes parei, desliguei, respirei fundo e voltei atrás por me sentir obrigada a ver até ao fim. Estou à procura de uma expressão. Enojada, indignada, cheia de pena daquela criança e daquela mãe que consentiu na devassa da vida da sua filha e dela própria e de caminho levou também a avó. Aquela criança e aquela mãe, aquela família, identificadas e com a morada evidenciada, não podem ficar melhor depois de aquilo ter sido emitido.

(Talvez eu esteja a ver mal, a portar-me mal e, portanto, vou ver se descubro aqui em casa um banquinho onde me sinta suficientemente humilhada e culpada. Mas talvez isso não resulte sem uma câmara a filmar a minha humilhação, talvez não seja suficientemente cruel. E dada a minha idade, um minuto por cada ano vai dar uma conta bem demorada, ultrapassando todos os máximos recomendáveis.)

Ter filhos é uma experiência em que saímos sempre a ganhar e a perder ao mesmo tempo. Não tem regras que sirvam para todos e para tudo, erramos muitas vezes e gritamos e cedemos e fazemos muitas daquelas coisas que, quando os não tínhamos, sabíamos com toda a certeza: nunca hei de fazer isto. Ou comes a sopa ou etc. Gritei de fúria e desespero. Fiquei farta muitas vezes e disse-o. Era o que estava a sentir. Muitas vezes fiquei feliz, encantada, aconchegada, recompensada, mais completa. Na maior parte do tempo, é a vida como ela é, a correr de um lado para o outro, a fazer contas e a dizer não faças isto não faças aquilo, a afligir-me com as doenças e os acidentes, a rir de disparates, a contar tropelias aos amigos. Nesse processo aprendi imensas coisas e eles também, e não o digo porque fica bem dizer isto em momentos-chave para pacificar a conversa e diminuir a culpa. Digo-o porque é verdade.

Depois do que vi naquele episódio, respondo aquele que tem sido o mote de muitas intervenções sobre o tema: o direito da criança à privacidade não é respeitado. Não é um programa de informação, invocar o Código Deontológico dos Jornalistas pode parecer deslocado, mas cito-o porque é, também, uma súmula de regras de sensatez e respeito pelos outros: o jornalista “deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor”.

Não é aceitável expor o comportamento de uma menina de 7 anos que está a ser filmada em casa (mesmo quando ela está a dormir há uma câmara de vigilância), num contexto que finge ser uma sessão de ensinamentos sobre boas práticas de educação numa casa de família. Vai contra vários direitos das crianças e, estou segura, contra as normas éticas dos psicólogos.

A Margarida não é o Nelito nem uma personagem ficcionada de This Is Us, é uma criança que tem direito a ser protegida. E é falacioso o argumento de que se pretende ajudar os pais a lidar com filhos difíceis, sobretudo os que não têm dinheiro para pagar psicólogos. Se os adultos querem autoflagelar-se em público, façam-no, mas não ponham à frente as crianças. Se uma psicóloga quer ganhar dinheiro e notoriedade, faça-o sem usar cobaias humanas.

Com isto concluo, citando a menina que faz uma birra de sono e está de castigo no banquinho: “Deixem-me sair, vocês são estúpidas.” Quer dizer. Quem de certeza não é estúpido é quem está a ganhar dinheiro e outras benesses no processo.

(Aproveito para dizer que se uma criança com cabelo revolto chora quando a penteamos: 1) tem razão; 2) podemos cortar-lhe os caracóis para ser mais fácil; 3) há uns produtos que ajudam a desembaraçar os nós. É só uma dica para a miúda de cabelos compridos daquele primeiro e funesto episódio, ou para a mãe dela, ou para quem fez aquele programa e usou os gritos da menina a ser penteada para ilustrar a grave acusação: ela grita!)

O direito a não existir

(Daniel Oliveira, in Expresso, 08/10/2016)

Autor

                       Daniel Oliveira

Um dia, já lá vai quase uma década, uma produtora contactou-me. Queria a minha ajuda para fazer um documentário sobre Herberto Helder, um homem que sempre fez questão de não ser aquilo a que chamamos “figura pública”.

Públicos eram os seus livros, nada mais. “Tudo pelos vícios privados, nada pelas públicas virtudes”, respondia ele a quem o atormentava com pedidos de adesão a nobres causas comunitárias. O meu pai não queria existir no meio da tribo. E esse era um direito seu. E por isso mesmo recusei o apoio, pedi para desistirem e telefonei-lhe para o avisar do “ataque”. E ele logo se pôs em campo, com a militância angustiada que punha nestes assuntos, telefonando a amigos para que não colaborassem com a coisa. O título do fraco e amputado filme era a confissão da traição e da incompreensão da intenção de quem queriam retratar: “Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro.”

Escrevo pela primeira vez sobre o meu pai por causa do triste episódio que envolve a escritora que assina com o nome de Elena Ferrante. “The New York Review of Books” decidiu tornar pública a identidade da popular escritora que, dizem-nos agora, é tradutora.

O jornalista italiano Claudio Gatti foi vasculhar os pagamentos feitos pela editora à dita tradutora — mulher de um escritor que há muito estava na lista de “suspeitos” — e os sinais exteriores da sua riqueza, incluindo o seu património imobiliário. Num tempo em que nos escasseiam direitos — laborais, cívicos, económicos e sociais —, um direito cresce a cada dia que passa: o direito à verdade. E essa verdade inclui, numa sociedade que se está a transformar numa provinciana e sufocante aldeia global, meter o nariz na vida de todos. Esta investigação fez-se com base numa confusão: a de que tudo o que o público deseja é direito seu. O investigador ignorou, como bem escreveu a jornalista Deborah Orr, no “The Guardian”, o meu direito a não saber quem é Elena Ferrante. O meu direito a só conhecer o que a escritora quis revelar.

Um escritor só tem um dever para com o seu leitor: escrever. E a única verdade que interessa é a verdade interna à sua obra. É ali, naquelas páginas, que o escritor e a sua verdade se consomem. Pode, quem o queira, promover a sua própria personagem pública para fugir à solidão da criação. Mas esse não é um dever seu e muito menos é um direito nosso. Só que a arrogância coletiva acha-se devedora de explicações e julga ter a tutela da vida privada de cada um. À medida que perdemos o estatuto de cidadãos parecemos ganhar o estatuto de ditadores. Elena Ferrante, como o meu pai e todos os que façam essa opção, tem o direito a não existir. Ainda mais quando tantas pessoas se transformam em personagens virtuais sedentas de ‘gostos’. Onde a privacidade se tornou um bem de baixo valor comercial, de tal forma está disponível a todos e para todos. Não existir é, aliás, a única forma de fugir a um sistema que transforma a vida do autor no produto que vende os seus livros. Tivesse eu mais talento e não existia. Longe da multidão coscuvilheira e de tantos jornalistas que, chafurdando no moralismo da verdade, se transformaram no inverso do rei Midas: tudo aquilo em que tocam se transforma em porcaria!