O anátema sobre os não-TINA

(José Pacheco Pereira, in Revista Sábado, 25/05/2015)

Pacheco Pereira

            Pacheco Pereira

Embora eu já não me espante com quase nada – uma excepcional experiência que Portugal dos nossos dias dá a todos –, fiquei um pouco perplexo quando, por duas vezes, António Costa, nos debates, não conseguiu dizer que era… socialista. Não é dizer que era do PS, mas dizer que era… socialista. Uma foi quando, confrontado com a semelhança de algumas das suas propostas políticas com as de Sócrates (e não me refiro às que são mais controversas), não dizer que isso era normal, visto que ambos eram socialistas e isso implicava uma certa maneira de ver a sociedade e a política e as suas prioridades. Por exemplo, serem keynesianos, ou qualquer variante dessas posições. A outra foi dizer que era “social-democrata”, a única autoclassificação ideológica que fez de si próprio, em vez de dizer que era… socialista. Em bom rigor o mesmo se passa com a maioria dos membros do PS, que parecem ter medo de dizer que são… socialistas. Ou que o seu socialismo não é… socialista.

É proibido ser socialista?
A mim, que não sou socialista, preocupa-me esta caução que, pelo silêncio e incómodo, os socialistas dão ao pensamento dominante, a célebre “não há alternativa”, a TINA da senhora Thatcher, “there is no alternative”, porque esta maneira de pensar e falar com medo é a mais forte legitimação que se dá a essa mesma TINA. Hoje, há ideias de primeira e de segunda, partidos de primeira e de segunda, há os bons, de rating A, que são os da TINA com mais ou menos nuances, os de rating B, que são os sociais-democratas e os socialistas que não dizem que são socialistas (e quase nunca o dizem) sem precisar logo que são moderados, pacíficos, que aceitam as “regras”, e os de rating “lixo”, que estão fora do “arco da governação”, como o BE e o PCP e um número substancial de partidos europeus, uns mais radicais do que outros, alguns aliás bem pouco radicais, apenas críticos da Europa da TINA. Já para não falar desse perigoso radical que é o Presidente Obama.

Porque é que os defensores da TINA precisam dos partidos socialistas

O que aconteceu com os partidos socialistas nos últimos anos, subservientes ao Tratado orçamental, à política de “austeridade” e à salvação do sistema financeiro a todo o custo, é vital para reforçar a TINA. Deu aos seus partidários uma enorme força e legitimidade, visto que até os socialistas se convertiam ao “não há alternativa”.

É por isso que o caso grego, com todas as suas peripécias, fez soar todos os alarmes e suscitar uma punição exemplar, mesmo que não conseguissem, como não conseguiram, lá pôr a Nova Democracia. E a eleição de Jeremy Corbyn para o Partido Trabalhista é também preocupante. Leia-se a sucessão de artigos que aparecem na imprensa e na Rede, que mostra como não se pode ser… socialista sem se ser um monstro de sete cabeças.

Corbyn e o trabalhismo
O Labour Party, o Partido Trabalhista inglês, é um dos grandes partidos socialistas europeus. Mesmo nos seus momentos mais complicados, mesmo nas suas grandes derrotas eleitorais, ele representa um dos partidos históricos da esquerda europeia, ou melhor ainda, uma das tradições da esquerda europeia que mais moldou a história do seu país, dotada de uma base social, de uma autonomia política, de uma identidade, que deixa na sombra muito do socialismo europeu. Não é comparável a quase nada, nem ao PSOE espanhol, nem ao SPD alemão, nem aos partidos sociais-democratas nórdicos, e muito menos ao PS francês. Enquanto em vários países como a França e a Itália, os partidos comunistas tinham importantes posições sociais e políticas, o Partido Trabalhista inglês foi daqueles que melhor resistiu aos cantos de sereia do comunismo, num país em que o Partido Comunista sempre foi muito pequeno. Pelo contrário, foi um terreno fértil para várias correntes de extrema-esquerda, que tocavam a base social e política do trabalhismo, os trotskistas por exemplo, assim como para múltiplas causas desde a luta contra o apartheid na África do Sul até à solidariedade com os presos políticos portugueses no tempo da ditadura.

O Partido Trabalhista inglês era também um exemplo das peculiaridades da história inglesa, pela relação única com o movimento sindical, que era “parte integrante” do Labour com grande poder interno, até que a combinação da Thatcher e de Blair “libertou” o trabalhismo do domínio dos grandes sindicatos do Trade Unions Congress (TUC), a começar pelos mineiros e pelos trabalhadores dos estaleiros. Com o declínio da indústria britânica, fez uma transição difícil e não inteiramente conseguida para outros sectores da sociedade como os professores, os trabalhadores da saúde, os funcionários, o pessoal dos serviços, cuja radicalização substituíra a dos sectores operários tradicionais. Implantou-se igualmente entre os emigrantes que, vindos das nações da Commonwealth, chegavam ao Reino Unido, principalmente à Grande Londres.

O Labour conheceu uma história complicada nos últimos anos, que incluiu o seu processo de “social-democratização” com Blair e a “terceira via”, com sucesso eleitoral, e depois ficou, como muitos partidos socialistas europeus, numa espécie de limbo político com a crise da “austeridade” virando cada vez mais à direita na competição com os Conservadores. Com o crescimento do nacionalismo escocês perdeu um dos seus grandes bastiões eleitorais, e com o carácter errático da direcção dos sucessores de Blair, a começar em Gordon Brown e passando pelos irmãos Miliband, conheceu sucessivas derrotas eleitorais.

O Labour teve sempre aquilo que os ingleses e americanos chamavam “lunatic fringe”, mas Corbyn está mais dentro da cultura do trabalhismo do que Blair. Aquele que a imprensa conservadora chama “o bolchevique”, é um típico membro da esquerda trabalhista, sucessivamente reeleito sete vezes na sua circunscrição e, em 2015, com uma maioria considerável.

No Reino Unido não se é tradicionalista apenas à direita. A esquerda tem também um conjunto de tradições que são únicas numa Europa em que o movimento operário perdeu muita da sua identidade. Em Inglaterra, ricos e pobres podem ser diferenciados pelo sotaque e por uma série de outros “costumes” que, vistos de fora e nos tempos de hoje, parecem anacronismos. Corbyn representa também muitos desses costumes, do seu republicanismo à sua maneira despreocupada de vestir, até à recusa de algumas práticas que rompem com a tradição conservadora, do hino até ao ajoelhar perante a Rainha. Mas, também aqui, se deixarmos o domínio recente dos homens de pin stripes no trabalhismo, Corbyn está longe de ser solitário.

Mas, o que verdadeiramente não lhe perdoam é ele romper o consenso com a TINA, visto que não acredito que os articulistas do Observador, do Economist, ou os “europeístas” da TINA, estejam muito preocupados com a sorte eleitoral do Labour Party.