A autonomia energética da União Europeia e as histórias da Carochinha

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 18/05/2022)

Confesso, a minha mãe nunca me contou histórias da Carochinha. Contou-me histórias de índios na Califórnia onde nasceu, de aventureiros nos vales de São José e São Joaquim, no Oeste americano, do medo que tinha de cobras, de vaqueiros. Daí que eu seja bastante relapso a histórias da Carochinha, de tesouros escondidos, de génios bons, de fadas.

Hoje ouvi a Presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, vi-a nas Tvs com um fato azul ucraniano que é um uniforme, contar aquilo que logo às primeiras frases me pareceu uma história de adormecer crianças. Falava a nossa chefe de turma (é o que entendo sermos) da autonomia energética da União Europeia, da libertação da ditadura do gás e do petróleo russo, da diversificação de fontes, das energias renováveis e da maravilha que vai ser um continente limpo de CO2 russo do Cabo Espichel a Donesk, ou a Karkhiv! O programa, tudo o que sai de Bruxelas é Programa tem o cabalístico título de REPowerEU.

A história contada pela nossa tutora, que também é, pode ser assim resumida: A Europa deixa de adquirir petróleo e gás russo, barato e fácil de distribuir através dos três pipelines existentes. Investe 300 mil milhões de euros para substituir as infraestruturas já disponíveis (que vão para sucata) e para importar gás e petróleo dos Estados Unidos 40% mais caro do que o russo e muito mais agressivo em termos ambientais. Investe mais umas centenas de milhões de euros em renováveis, não explicou em quais nem qual o potencial explorável: Mais barragens? Mais ventoinhas pelos montes? Hidrogénio? Energia das marés? Voltamos ao nuclear? Nem adiantou custos, julgo. Acresce ainda que, para nos libertarmos dos russos, temos de investir mais umas centenas de milhões em armamento (ela falou em desenvolver as indústrias de defesa), cujo núcleo duro de tecnologia é produzido pelos EUA.

Pelos vistos dinheiro não falta na UE e a nossa Carochinha apresentou uma meta temporal: 2030, nalguns casos 2027. Dentro de oito curtos anos, o máximo, a União Europeia, vai depender da energia fóssil dos EUA e do dos seus subordinados árabes, do escudo e dos dardos fornecidos pelo seu complexo militar industrial, e estará livre do petróleo e do gás russo! A UE poderá então soltar o grito do Ipiranga relativamente à Rússia!

É neste ponto que entra aminha descrença nas histórias da Carochinha e a lembrança das histórias americanas da minha mãe, cujo pai, o meu avô, foi um dos primeiros proprietários de automóvel no seu condado (Atwater/Merced) e já consumia gasolina nas primeiras décadas do século vinte!

A nossa Carochinha acredita que os Estados Unidos, as grandes companhias petrolíferas, as majores, que têm promovido guerras em todo o mundo: Iraque, Síria, Palestina, Líbia, Somália, Angola, Moçambique, Nigéria, Venezuela, irão deixar que os europeus diminuam drasticamente as suas necessidades de combustíveis fósseis (uma das duas grandes fontes dos lucros da oligarquia americana), que escapem sem pagar o tributo de lhes comprarem o petróleo e as armas para manter a produção sobre o seu controlo?

A nossa Carochinha acredita que a oligarquia que governa os Estados Unidos e que desenvolveu um tecido industrial altamente poluente, para quem o ambiente e a ecologia são custos e esquisitices de europeus, e não preocupações, se converterá às energias limpas, mas mais caras e menos lucrativas?

O discurso da presidente da Comissão Europeia é um discurso da Carochinha. A União Europeia, os cidadãos europeus, vão pagar com língua de palmo uma falsa autonomia energética, uma falsa transição para as energias limpas e um inútil aparelho militar de que a UE nunca dominará o núcleo principal (hard core)!

Ainda não foi desta que comecei a acreditar nas histórias da Carochinha e como já tenho pouco tempo desejo que esta tenha um final feliz. A minha mãe, bem podia ter sido uma mãe vulgar como a de tantos outros, que acreditam na bondade e generosidade das serpentes do deserto, por exemplo.

Um resumo da apresentação pode ser encontrado aqui.


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A fé na Arte de Produzir Efeitos sem Causa

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 16/05/2022)

Está muito difundida a teoria que o escritor Lourenço Mutarelli ficcionou num romance a que deu o título: A arte de produzir efeito sem causa (2008). Uma reflexão acerca dos fenómenos da desrazão (da ilógica) e do nonsense. Uma tese sobre o absurdo, que renega o princípio lógico da causalidade, que determina que todo efeito deve ser consequência de alguma causa.

A afirmação muito explorada de que na Ucrânia ocorre uma invasão determinada por um imperador louco, assenta na crença de que os grandes fenómenos sociais, como uma grande guerra, uma grande revolução, um fenómeno de domínio como o colonialismo, ou a escravatura, por exemplo, podem não ter outra causa se não o impulso emocional e descontrolado de um homem.

Há até historiadores e cientistas ditos sociais que defendem com arreganho a tese de que há uma invasão sem causa, apenas determinada por um ser diabólico que habita um palácio assombrado, com enormes mesas e tetos altos!

As centrais de manipulação de massas, que existem com vários nomes, umas públicas, diretamente dependentes dos Estados e outras privadas: Agências de Comunicação, de Relações Publicas, de Publicidade, com assessores contratados entre antigos políticos ou jornalistas avençados, conseguiram fazer passar a mensagem de que a Rússia tinha invadido a Ucrânia sem razão, apenas por puro imperialismo ou paranoia de um antigo agente do KGB apoiado por um sinistro Rasputine, a que foi dado o nome de Lavrov!

A arte de produzir este efeito sem causa tem sido um sucesso de aceitação, do tipo das igrejas evangélicas (velhas utilizadoras da doutrina da criatura não gerada). O êxito é tanto mais de exaltar quanto a falácia vendida como efeito sem causa é desmentida pelos autores dos efeitos.

A narrativa do efeito — a invasão da Rússia à Ucrânia — sem causa racional é desmentida pelos autores em declarações públicas: O atual secretário geral da NATO, um economista norueguês que já está nomeado para o Banco Central do seu país e que, de facto, é um desastrado, tem-se encarregado de descobrir as reais causas para a invasão da Rússia, obrigando os profissionais da manipulação ao duplo trabalho de inventarem causas fantasiosas — tornar o nonsense comestível pelas opiniões públicas — e de apagarem as pistas deixadas pelo senhor Jens Stoltenberg.

Lembrava o Secretário-geral da NATO com a candura de um sacristão, à entrada para a reunião extraordinária dos ministros da Defesa, em Bruxelas, a 16 de Março de 2021, que durante muitos anos (desde quando?) a NATO, treinou “dezenas de milhares de tropas ucranianas e fornecemos grandes quantidades de equipamentos críticos para ajudar a Ucrânia a defender o seu direito à autodefesa” https://rr.sapo.pt/noticia/mundo/2022/03/16/nato-permanece-unida-no-apoio-a-ucrania/276558/

Além de explicar a antiguidade da manobra de provocar a Rússia e de preparar a Ucrânia para a chamar à guerra, o cândido Secretário-geral encarregou-se de explicar a causa do efeito que é a guerra que hoje se trava na Ucrânia, causando o sofrimento que é visível nos povos e explorado até à exaustão pelos meios de propaganda.

A causa para espoletar a intervenção da Rússia pretende obter o efeito de a enfraquecer e de permitir aos Estados Unidos enfrentarem a nova ordem mundial numa posição de domínio. Numa reunião a 6 de Abril, Jens Stoltenberg explicou: “(…) seja quando for que a guerra acabe, terá implicações a longo prazo para a nossa segurança, pois vimos a disponibilidade do presidente Vladimir Putin em usar força militar para atingir os seus objetivos” (a NATO, como se sabe, não dispõe de força militar, é uma igreja missionária!), mas o esclarecedor vem a seguir: Stoltenberg abordou também um dos tópicos da reunião da Aliança de quarta-feira, o da definição de um novo “conceito estratégico da NATO” (citado pelo The Guardian): “Neste conceito, precisamos de abordar as consequências securitárias das agressivas ações russas, o equilíbrio de poder mundial em mudança, as consequências securitárias de uma China muito mais forte, e os desafios que Rússia e China estão a impor juntos a uma ordem internacional de valores democráticos baseada em regras. Definiremos a estratégia sobre como lidar com terrorismo ciber e híbrido, bem como as consequências das alterações climáticas para a segurança”, acrescentou.

Isto é bem claro: a guerra na Ucrânia, a tal do efeito sem outra causa senão a maldade do chefe russo, conduzida pelos EUA através da NATO, o seu braço armado para a Europa, faz parte de uma manobra estratégica de domínio planetário dos EUA a longo prazo, que tem como inimigos a Rússia e a China e teve como primeiras vítimas os ucranianos e o projeto de uma União Europeia autónoma, regida pelos seus valores e interesses.

Com esta apresentação em claro dos inimigos e dos objetivos talvez se perceba a causa daquela que foi considerada uma vergonhosa retirada dos EUA do Afeganistão (Agosto de 2021) após 20 anos de ocupação: Interessava concentrar forças na Europa para “desgastar” a Rússia e a China. Os “afegões” (como designava aqueles povos o escritor Luiz Pacheco) que se danassem, as mulheres que voltem à burka, as raparigas que sejam analfabetas! O decisivo é a invasão russa! Afinal havia uma causa para a retirada americana de Cabul: a guerra na Ucrânia que iria ter lugar dentro de seis meses (Fev 2022)!

Reduzir a manobra de grande estratégia da criar um casus belli na Ucrânia que levasse a Rússia a intervir a um caso de efeito sem causa, de maus invasores e infelizes invadidos, parece-me muito próximo do absurdo, mas talvez seja reconfortante para almas sensíveis.


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Aristóteles à la minute resume a guerra da Ucrânia!

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 10/05/2022)

A Odisseia de Homero vista por um agente de viagens. Há um invadido e um invasor. Um Mau e um Bom! Mas onde raio está o cavalo de Troia?

No século VIII a.C., Homero escreveu a Ilíada, apontada como o livro inicial da literatura ocidental, onde versava sobre a Guerra de Troia. O segundo livro, Odisseia, dava conta do que aconteceu depois da batalha, quando Ulisses tentava regressar.

Um dos seus aspetos mais notáveis da epopeia é o modo como está construída, com um início in media res, que foi reproduzido em inúmeras obras posteriores. Uma sofisticada técnica literária que permite entrar na metade da história, revelando os eventos que aconteceram antes através de memórias e flashbacks.

A Odisseia é uma narrativa política e histórica complexa, que que trata entre outros temas do papel da mulher na sociedade — Penélope; fantástico e que versa sobre a descoberta de outros mundos — Poseidon; do poder, do encantamento, da vingança — Ulisses.

A Odisseia coloca a eterna questão da complexidade da luta entre o destino ditado pelos deuses e o livre-arbítrio dos personagens humanos. Na versão original, em grego antigo, a palavra que inaugura a obra é “homem”.

A Odisseia, de Homero, foi sujeita a muitas criticas dos poderosos sacerdotes que defendiam o determinismo e a fé na verdade dos deus. Os manipuladores da opinião, na antiguidade como hoje, contestavam a humanidade de Ulisses, as suas dúvidas, as fraquezas. Eles tinham uma verdade e a verdade era a que Ulisses tinha realizado uma viagem de barco no Mediterrâneo. Os sacerdotes, donos da verdade, queriam que a Ilíada e a Odisseia se resumissem a uma viagem de um grego no Mediterrâneo. Um cruzeiro!

Há dois mil e trezentos anos, Aristóteles glosou essa interpretação manipuladora dos sacerdotes e dos poderosos fazendo o seguinte resumo da Odisseia, aquilo que os anglo-saxónicos designam por storyline: “Certo homem anda errante muitos anos fora do seu país, vigiado por Poseidon, entretanto em sua casa, os seus bens são desbaratados por pretendentes que conspiram também contra o seu filho. Então ele chega a casa, depois de sofrer uma tempestade e, dando-se a conhecer a alguns, ataca e salva-se matando os seus inimigos.

Quando leio resumos do que se está a passar na Ucrânia, efetuados por escritores e por críticos literários, por pessoas que por dever de ofício deviam estar habilitadas a fazer uma interpretação de um acontecimento histórico complexo, não posso deixar de me recordar do que escreveria um Aristóteles à “la minuta” a fazer a sinopse da guerra da Ucrânia: “Um malvado imperador da Rússia acordou mal disposto no dia 23 de Fevereiro de 2022 e foi ao seu Palácio. Gritou para os seus generais: Vamos invadir a Ucrânia, que me está a dar mau dormir!

Aristóteles desnudou os que acreditam que a História é feita de reações pessoais a más alvoradas (como os compreendo!). A Ilíada passa-se durante a guerra de Troia e trata da ira de Aquiles causada por uma disputa entre ele e Agamemnon, comandante dos exércitos gregos em Troia, e consumada com a morte do herói troiano Heitor. Uma questão de poder, como parecia evidente a Aristóteles, mas não aos seus émulos à la minuta, os do seu tempo e os atuais que enxameiam televisões e jornais. A Odisseia é a história de um homem que viu cidades e conheceu costumes de muitos homens e que no mar padeceu mil tormentos. É uma história de descoberta e conhecimento. Da complexidade das relações entre seres e sociedades com visões do mundo que lhes são próprias. A Odisseia, como a Ilíada, são obras da inteligência, do senso, da cultura.

A questão da Ucrânia, para os aprendizes de Aristóteles à la minuta — os do pensamento dominante, está resolvida: Há um mau agressivo que invade o território de um bom pacífico. O Aristóteles tinha toda a razão: a Odisseia é a viagem do senhor Ulisses pelo Mediterrâneo organizada por uma agência de viagens.


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